Sonho Tcheco pergunta: publicitários mentem?

Dois estudantes da Academia de Cinema de Praga (FAMU), República Tcheca, têm a ideia de produzir um documentário cínico e irônico sobre a campanha publicitária de um hipermercado. Ele se chama “Sonho Tcheco”, tem jingle, logotipo, folhetos distribuído por toda cidade, outdoors em rodovias, o rosto carismático dos gerentes em comerciais de TV, spots de rádio, mas… o hipermercado não existe! O filme “Sonho Tcheco”(Cesky Sen, 2004) nos mostra como na República Tcheca pós-comunismo os hipermercados viraram para muitos o único programa de lazer.

 E como a Publicidade e Relações Públicas, por meio de estratégias etnográficas e neuromarketing, conseguiram levar três mil pessoas a um descampado para a inauguração de um hipermercado fictício  onde apenas havia uma fachada sustentada por andaimes metálicos. De forma estranhamente engraçada, o documentário mostra como publicitários são capazes de mentir de forma consciente, sob o pretexto de apenas “atender a um cliente”.

Hoje é mais caro dizer que um produto existe do que fazê-lo efetivamente existir. A necessidade atual de mobilizar todo um aparato publicitário e de relações publicar para fazer que de fato alguma coisa exista na cabeça das pessoas, tornou a imagem um fim em si mesmo. A imagem de um produto passou a ser mais importante do que o próprio produto onde, muitas vezes, nem é necessário que fisicamente o próprio produto exista.

Foi com essa avaliação provocativa e absurda sobre a sociedade de consumo que dois estudantes da Academia de Cinema de Praga, República Tcheca, fizeram um documentário como trabalho final de curso. Filip Remunda e Vít Klusák queriam mostrar os efeitos devastadores do consumismo em uma sociedade pós-comunista.

A dupla de realizadores queria provar como, através da publicidade e relações públicas, é possível fazer as pessoas acreditarem em algo que não existe. E nesse caso, a escolha caiu sobre o hipermercado, uma verdadeira mania naquele país onde, de local onde vendem-se produtos necessários, tornou-se programa de encontros e passeios nos finais de semana. Filip e Vit basearam sua ideia em uma pesquisa feita em 2002 pela Incoma Research na República Tcheca mostrando que 30% dos tchecos compravam apenas em hipermercados como um verdadeiro programa de lazer.

Fonte: http://migre.me/vFsUK

Os estudantes conseguiram convencer uma agência de publicidade multinacional  e uma agência de relações públicas a participar do projeto de divulgar um hipermercado chamado “Sonho Tcheco” que se limitaria a ser uma fachada cenográfica sustentada por andaimes de metal em um campo na periferia de Praga.

O resultado foi uma massiva campanha com outdoors em estradas, 200 mil panfletos distribuídos em Praga em trens, ônibus e metrô, comerciais de TV com um jingle que, entre outras coisas, dizia: “Se você não tem dinheiro, faça um empréstimo para alcançar o seu sonho tcheco…”. Para no final conseguir atrair 3.000 pessoas na inauguração do falso hipermercado, numa manhã que coincidiu com um eclipse do sol.

O Filme

Sonho Tcheco começa com imagens do país na era do comunismo com longas filas nos supermercados devido a escassez de alimentos para, em seguida, mostrar cenas de 1989 onde policiais tentam conter tumultos nas ruas. Justaposto a tudo isso, cenas da abertura de um grande hipermercado em 2002 com um enxame de consumidores ávidos pelas ofertas enquanto a polícia tenta manter a ordem.

Em seguida corta para os diretores Filip e Vít que explicam o propósito do filme em um local descampado onde levantarão a cenografia do falso hipermercado chamado “Sonho Tcheco”.

O filme é extremamente didático ao mostrar todos os passos da criação da imagem de um produto que jamais existirá. Em primeiro lugar, a criação do “produto” que será vendido: Filip e Vit têm que perder o jeito de estudantes de cinema. Através de permuta, são vestidos com ternos da Hugo Boss enquanto um fotografo lhes ensina como parecerem executivos responsáveis e carismáticos. Eles viram a cara do “Sonho Tcheco”.

Fonte: http://migre.me/vFsUK

Mas um hipermercado vende o quê? Rótulos e embalagens são criados para embalarem itens prosaicos como um cacho de banana, garrafa de cerveja, caixa de leite etc. Com a marca “Sonho Tcheco”,  produtos comuns, comprados em qualquer mercadinho de praga, tornam-se produtos de grife superestimados. Eles aparecerão com ofertas absurdamente baratas nos folhetos espalhados por toda cidade.

Publicitários mentem?

Mas Filip e Vit levantam uma questão ética para os publicitários: se eles sabem que o hipermercado não existe, não estão mentindo? Acompanhamos uma verdadeiro malabarismo retórico dos profissionais da propaganda e relações públicas: para eles, Filip e Vít são apenas “clientes” que buscam os seus serviços. A responsabilidade ética para eles se resume a um produto final bem feito, sem preocupar-se nas consequências ou na existência do próprio produto.

Como diria o personagem relações públicas Nick Naylor no filme Obrigado Por Fumar “é o argumento de Nuremberg” onde no histórico tribunal nazistas se omitiam de qualquer sentimento de culpa ao dizer que apenas “cumpriam ordens”.

Com isso, Sonho Tcheco revela uma curiosa característica da publicidade atual: ela não mais representa um produto, mas reflete a ela mesma. Uma absoluta inversão non sense ou, por assim dizer, metafísica: a Publicidade não consegue mais representar características imanentes a um produto real, mas apenas divulga a seus próprios parâmetros do que um produto necessita para se tornar “real” – quer dizer, desejável porque visível.

Fonte: http://migre.me/vFsT7

Etnografia e neuromarketing

Outra parte muito didática do filme é o papel de uma doutora pesquisadora em comportamento do consumidor. Ela faz uma pesquisa etnográfica onde são gravados vídeos com depoimentos de pessoas nos hipermercados de Praga. Nas entrevistas são revelados sonhos, desejos e idiossincrasias das pessoas nesses locais de compra.

Para tudo culminar em uma inacreditável experiência de neuromarketing: em uma consumidora prototípica (uma dona de casa de meia idade) é acoplado na cabeça um dispositivo conectado a um computador e um monitor de vídeo que acompanha o movimento dos olhos enquanto a pessoa lê panfletos e anúncios impressos do hipermercado Sonho Tcheco – veja foto abaixo.

Desses dados são gerados gráficos e planilhas que orientarão os designers na escolha de cores, layout e diagramação do material visual impresso, além dos vídeos publicitários de TV.

Mas o pulo do gato da campanha foi a tática que denominaram como “publicidade reversa” com provocativas mensagens anticonsumo. Frases como “Não Venha!”, “Não Gaste!”, “Não Compre!” criaram a ambiguidade para criar o efeito viral desejado.

O que lembra a velha tática de marketing de guerrilha utilizada pelo fotógrafo Oliviero Toscani nos anos 80-90 com a marca italiana Benetton com fotos que supostamente queriam denunciar o caráter artificial da Publicidade: imagens realistas de doentes terminais de AIDS ou crianças famintas africanas. Benetton vendia porque era aparentemente anticonsumo e antissistema.

O Choque

Quando três mil pessoas apareceram no local da inauguração nas cercanias de Praga encontraram bandeiras, adereços, outdoors, um palco onde seria cortada a fita de inauguração ao som do jingle da campanha e…cadê o hipermercado?

As reações dos “consumidores” (a maioria carregando imensas sacolas e carrinhos de compras) foram as mais díspares. A mensagem dos cineastas foi entendida de diversas maneiras. Muitos queria linchar Filip e Vít – o que parece que ocorreu, como nos mostram imagens do trailer abaixo que não entraram na edição final. Outros conectaram a mentira com a campanha política naquele momento pela necessidade da República Tcheca entrar na Comunidade do Euro – assim como na publicidade, também na propaganda política compramos coisas que são falsas.

Outros condenaram um filme que enganava pessoas com dinheiro público – a FAMU (Film and TV School of Academy of Performing Arts in Prague) é mantida pelo Estado. Muitos outros, bem humorados, consideraram o evento uma oportunidade de saírem de casa mais cedo para assistirem ao eclipse do Sol que ocorreria naquela manhã.

Sonho Tcheco nos brinda ainda com imagens dos debates que se seguiram na TV da época, sobre a legalidade, ética e as conexões que analistas fizeram com a campanha da entrada do país no Euro.

Em muitos aspectos Sonho Tcheco se assemelha ao documentário brasileiro O Abraço Corporativo (2009) onde um jornalista criou um personagem fictício, enganando a grande imprensa brasileira sobre uma suposta técnica motivacional para tornar as organizações mais “humanas” – sobre isso clique aqui. Tanto o Jornalismo como a Publicidade tornaram-se instituições fechadas em si mesmas, auto-referenciais, que não conseguem mais representar seja a notícia ou o produto – na verdade criaram um jogo de espelhos onde nada mais de concreto é transmitido, a não ser imagens que refletem a si mesmas.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Diretores: Filip Remunda e Vít Klusák
Ano: 2004
País: República Checa
Gênero: Documentário

Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi. Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.