Galveston: a vida após o diagnóstico do câncer

Galveston foi o primeiro romance de Nic Pizzolatto publicado pela editora Intrínseca em 2015. A história gira em torno de um matador de aluguel com câncer terminal e nas implicações em sua vida após o diagnóstico e no encontro com uma garota no local em que foi enviado para morrer.

Roy Cady recebe a notícia sobre seus pulmões de forma paralisante; mal termina de ouvir o médico e se retira do consultório. Este é um momento de reavaliação de sua vida, mas só o que consegue pensar no momento é nos seus relacionamentos fracassados e em vista disso fumar um cigarro ali mesmo, afinal de contas, não tinha mais nada a perder. Seu chefe, Stan, o envia para uma missão e orienta ele e o seu colega a não levarem armas. Stan namora Carmen, que já havia se relacionado com Roy e com seu parceiro, isto é, Roy encara a situação como um problema pessoal de Stan.

Roy é um homem escrupuloso, mas preso à situações do passado pelas quais teve de abrir mão de pessoas importantes em sua vida. Um pai morto, mãe suicida, vida num orfanato. Tais lembranças o permeiam constantemente, como um lembrete da pessoa que é e porque faz o que faz. Parado fora do escritório, Roy ruminava sobre tais questões e começa a orientar seus pensamentos de forma diferente daqueles que tinha antes de saber da doença. Segundo Helman (2003), citado por Silva (2005, p. 141), temos que:

(…) a revelação do diagnóstico de câncer gera reformulações e mudanças nesta nova fase de sua vida. Essas mudanças (…) são tentativas de enfrentar as novas circunstâncias e de tentar se adaptar a elas. Nestas mudanças, os pressupostos básicos das pessoas sobre o seu mundo são quebrados mediante a interferência do diagnóstico de câncer, assim deixam de contar com um mundo certo e se redirecionam dentro desta nova perspectiva de vida. (grifo nosso)

Em vista da mudança de alguns hábitos para uma vida mais saudável após o diagnóstico da doença, Roy toma o caminho oposto e começa a abusar do álcool e do cigarro. Não tem família nem amigos que forneçam apoio nesse momento e isso o leva à um estado de resignação. Por outro lado, mesmo negando a vida, ele passa a olhar o outro de forma diferente.

É sob a imagem desse “outro” que Rocky surge: enviado para missão, Roy e seu parceiro são surpreendidos numa emboscada onde matadores altamente treinados o aguardam, e naquela cena, como um plano de fundo, uma garota no canto da sala assiste tudo, Rocky. Mesmo sabendo que iria morrer pela doença, Roy utiliza de todas as suas forças e experiência para sair vivo e todos aqueles que o queriam morto, morreram. Roy não sabe muito bem o que fazer com aquela garota, mas sabe que não pode deixá-la ali; ela vira seu rosto. E então, sem estabelecer um plano concreto, eles vão para fora da cidade, percorrendo no caminho bares soturnos e discretos, em direção à Galveston.

Rocky é uma prostituta de 18 anos que estava naquela casa fornecendo serviços quando foi surpreendida. Seu histórico de vida é perturbador e ela vive na constante insegurança sobre se Roy a abandonará, ainda mais naquele momento, em que tirou sua irmã mais nova da casa de seu padrasto sórdido. Do outro lado, Roy pondera se ficará com as meninas, tentando lidar com o dualismo de se sentir atraído por Rocky e pela vontade de ir embora.

Algumas mudanças se configuram na vida de um paciente oncológico, uma delas é a mudança corporal. Sob esse aspecto, temos que, “o câncer produz a modificação da imagem e ameaça a identidade corporal e  a  própria  existência  do  indivíduo.” (SILVA, 2005, p. 137). Roy começa a emagrecer, seu cabelo começa a cair. Para muitos, o cabelo é um sinal de virilidade, e nos homens os efeitos são mais específicos no que tange ao medo de serem estigmatizados (GRAY et al,. 2000; HELMAN, 2003). A respeito disso, Roy refletia: “Confrontei meu rosto. Meu reflexo sempre fora o que eu sabia que seria e nunca exatamente o que eu esperava, mas desta vez foi brutal (…) parecia que meu verdadeiro rosto sempre permanecera oculto, que havia dentro de mim outro rosto, com características mais puras e elegantes (…)” (p. 91, com modificações).

“Você está aqui porque isto aqui é um lugar. Cães ficam ofegantes nas ruas. A cerveja não continua gelada por muito tempo. A última música nova que você gostou saiu há muito, muito tempo, e o rádio nunca mais a tocou.” (p.93).

Roy tem de lidar com sua imagem que se modifica continuamente, ainda mais por não recorrer ao tratamento e por abusar de substâncias químicas. Nesse aspecto, parece se desenvolver uma clareza sobre a efemeridade da vida. Ele vai para Galveston no entendimento de que precisa eliminar todos os seus rastros e de alguma forma dar um rumo à vida daquelas meninas, mas sente o peso de estar fora da vida que vivia, de não ter laços com alguém e da ironia de ainda estar vivo.

Inicialmente, ele evita conversar com Rocky sobre sua doença e lhe persegue a sensação de falta de algo, “alguma coisa difícil de definir, mas notável pela sua ausência” (p.99). É possível que esse sentimento seja dado pela falta de vínculos afetivos, tão importantes nesse momento para o processo de enfrentamento da doença. Quando finalmente ele conta sobre sua vida à Rocky, sente que traiu a si mesmo, isto é, estava tão habituado a não compartilhar suas experiências pessoais com outra pessoa que quando o faz sente tamanho estranhamento.

Com o tempo, a sua aparente resignação toma outra forma. É descoberto no estar vivo e poder fazer os outros bem um prazer que desconhecia. A percepção sobre sua personalidade agora lhe parece uma mentira que sustentara por anos, mas que não tinha mais motivos para manter.

“O que acontece de fato é que o passado coagula como uma catarata ou uma casca, uma casca de lembranças sobre seus olhos. E, um dia, a luz a atravessa” (p. 228).

O livro é intercalado entre presente e futuro, geralmente pela visão de Roy, numa escrita em primeira pessoa. A respeito da percepção de outros leitores sobre o ar carregado e sombrio da história, experimentei a sensação de liberdade e contentamento naquelas descrições sobre os campos de algodão que Roy tinha de ir todas as manhãs, sobre o céu negro, as trilhas pantanosas, as lutas, a vida e a morte. A escrita de Nic Pizzolatto é poética, envolvente, muito bem estruturada e detalhista, de tal forma que nos inserimos completamente nos traumas e vivências dos personagens. Por fim, uma obra apurada e um tanto perturbadora.

FICHA TÉCNICA:

GALVESTON

Título Original: Galveston
Autor: Nic Pizzolatto
Tradução: Alexandre Raposo
Editora: Intrínseca
Páginas: 240
Ano: 2015

REFERÊNCIAS:

GRAY, R. E. et al. To tell or not to tell: patterns of disclosure among men with prostate cancer. Psycho-Oncology, Chichester, v. 9, n. 4, p. 273-282, aug. 2000.

SILVA, V. C. E. O impacto da revelação do diagnóstico de câncer na percepção dos pacientes. 2005. 218 p. Dissertação (Mestrado) – Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2005. Acesso em: 10 de fev. 2017. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22132/tde-11052005-112949/pt-br.php>.