‘Infiltrado na Klan’ e o racismo institucional que fere e mata

Concorre com 6 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Diretor, Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Montagem

Trata-se de uma obra de importância crucial dadas as consequências atuais em torno da adesão de parte do mundo aos discursos raivosos da extrema-direita.

Dirigido pelo lendário Spike Lee, ‘Infiltrados na Klan’ aborda o clima hostil do final dos anos 1970 nos Estados Unidos, cujo cenário reflete uma frenética luta da população negra para deixar de ser vítima dos constantes ataques institucionais sofridos por esta minoria, notadamente no que se refere à associação direta da criminalidade com a negritude. E uma das mais sintomáticas organizações resultantes do ódio coletivo americano em relação à diversidade, aquela altura, é a KKKlan – Ku Klux Klan, que pregava a superioridade da ‘raça branca’ em relação a outras etnias, sobretudo em relação aos negros.

O filme relata a trajetória de Ron Stallworth (John David Washington), um policial negro do Colorado, que de modo muito inteligente conseguiu se infiltrar na Ku Klux Klan local. Stallworth se comunicava com os membros da KKKlan através de ligações telefônicas, e quando precisava comparecer aos encontros do grupo enviava outro policial branco no seu lugar – que, curiosamente, no filme, é protagonizado por um homem de descendência judaica e que nunca havia parado para pensar no fato de também pertencer a uma minoria marginalizada. Depois de meses de investigação, Ron se tornou o líder da seita, o que acaba por lhe garantir condições de evitar uma série de crimes de ódio perpetrados pelos racistas norte-americanos.

Imagem – Universal/Divulgação

Trata-se de uma obra de importância crucial dadas as consequências atuais em torno da adesão de parte do mundo aos discursos raivosos da extrema-direita, notadamente a partir da ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos e de Jair Bolsonaro no Brasil. Não por menos, o longa retrata, em suas últimas cenas, conflitos e irrupções atuais motivados pelo racismo, com imagens de discursos de Trump e de brigas reais entre neofascistas e grupos de resistência em algumas cidades norte americanas.

Imagem – Universal/Divulgação

Racismo institucionalizado

As consequências do racismo institucionalizado, que é quando as estruturas sociais, políticas e culturais já estão impregnadas por preconceitos descabidos e, desta forma, reproduzem discursos e práticas odiosas – como associar compulsoriamente as populações negras a comportamentos intrinsecamente violentos – são vistas de modo claro na tensão étnica que há nos Estados Unidos, tensão esta muito bem explicitada no filme de Spike Lee. No Brasil, entretanto, esta mesma institucionalização do racismo é passada despercebida por causa do falacioso argumento da democracia racial criado logo após a Abolição da Escravatura, no século 19.

Em que pese as peculiaridades do processo de colonização do Brasil, massivamente conduzido por homens brancos, solteiros e europeus – poucas famílias europeias vieram para o país, nos anos ‘selvagens’ da chegada dos imperialistas –, o que acabou fazendo eclodir o fenômeno da miscigenação entre homens brancos e mulheres negras e indígenas, é notória a existência de um sistema hierárquico, neste processo, em que apenas alguns seres humanos de cor negra puderam de fato usufruir do princípio da liberdade ou, no mínimo, pertencer a um tecido social em que havia a cordialidade.

O que se viu, de modo geral, foi um sistema de exclusão que, progressivamente, passou de uma abordagem violenta para um modus operandi cada vez mais velado, até que se cristalizasse, no stabelichment, o mito da democracia racial.

Nada poderia ser mais falso. De longe, o Brasil – como pontuado recentemente por Wagner Moura – é um dos países mais racistas do mundo. E, em terras tupiniquins, este racismo se dá de forma ainda mais esdrúxula – se é que é possível comparar cenários de barbárie. No gigante sul americano, como pontua o antropólogo congolês naturalizado brasileiro Kabengele Munanga, há o chamado ‘racismo como crime perfeito’, já que os negros representam 71% das vítimas de homicídios no país, mas ninguém comenta sobre isso, num processo coletivo que naturaliza o lugar do negro como algo inscrito no campo da contravenção. E, pior, que não se busca conhecer a face dos racistas, para responsabilizá-los e puni-los.

Este mecanismo perverso pode ser traduzido em números. De acordo com um estudo feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a população negra é bem mais exposta à violência no Brasil. Os negros são 54% da população, mas representam em torno de 71% das vítimas de homicídio. O levantamento, divulgado amplamente pela TV Globo, mostrou que o abismo entre brancos e negros aumentou nos últimos dez anos. Neste sentido, entre os mortos nos homicídios registrados de 2005 a 2015, o número de brancos caiu 12% e o de negros, aumentou 18%. Estes dados são semelhantes aos do Mapa da Violência do Brasil para o mesmo período.

Psicologicamente falando, este cenário trás danos nefastos para as populações negras, sobretudo entre os jovens. De acordo com recente matéria veiculada pelo jornal Nexo, há cada dez jovens que se suicidam no Brasil, seis são negros. O dado, de 2016, está em um levantamento do Ministério da Saúde e da UnB (Universidade de Brasília), divulgado no início deste ano de 2019. O estudo também aponta que entre 2012 e 2016, a taxa de pessoas brancas entre 10 e 29 anos que tirou a própria vida permaneceu a mesma. Já entre jovens e adolescentes negros ela subiu, de 4,88 mortes para cada 100 mil, em 2012, para 5,88, quatro anos depois.

Fonte: https://bit.ly/2BGeGy1

A notícia do Nexo ainda destaca um dado do Sistema de Informação sobre Mortalidade, ao apontar que “um dos grupos vulneráveis mais afetados pelo suicídio são os jovens e sobretudo os jovens negros, devido principalmente ao preconceito e à discriminação racial e ao racismo institucional”. É importante ressaltar que, ao abordar este tema a partir das universidades, do cinema e da mídia, fortalece-se um movimento global – e que vem ganhando força no Brasil –, que reivindica o reconhecimento do preconceito e da discriminação racial como importantes causadores de problemas psíquicos.

Neste sentido, ‘Infiltrados na Klan’ é um filme fundamental para se aprofundar nos meandros dos discursos de ódio e, claro, perceber como a mobilização coletiva dos grupos oprimidos, a partir de princípios racionais, cooperativos e políticos, pode fazer uma enorme diferença. Afinal, como bem pontuava Nelson Mandela, ninguém nasce odiando o outro por sua cor de pele. Esta é uma estrutura de pensamento que foi aprendida e, como tal, pode ser superada pela educação e ampliação do reconhecimento profundo acerca do princípio da alteridade. O desafio é colossal, mas possível.

FICHA TÉCNICA:

INFILTRADO NA KLAN

Título original: BlacKkKlansman
Direção: Spike Lee
Elenco: John David Washington, Adam Driver, Topher Grace;
Ano: 2018
País: EUA
Gêneros: Biografia, Policial

REFERÊNCIAS:

Negros representam 71% das vítimas de homicídios no país, diz levantamento. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/negros-representam-71-das-vitimas-de-homicidios-no-pais-diz-levantamento.ghtml > Acesso em: 17 de fevereiro de 2019.

O impacto do racismo na saúde mental da população negra. Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/01/26/O-impacto-do-racismo-na-sa%C3%BAde-mental-da-popula%C3%A7%C3%A3o-negra > Acesso em: 17 de fevereiro de 2019.

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.