“Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham nessa imundície pedregosa?
Filho do homem não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol, e as árvores mortas já não mais te abrigam,
nem te consola o canto dos grilos, e nenhum rumor de água a latejar na pedra seca.
Apenas uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto de tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó”.
Wasteland, de T. S. Eliot por Ivan Junqueira.
O fosso da queda
Max Rockatansky não é um louco, como os títulos da franquia do personagem pressupõem. Ao menos esta não é sua estirpe essencial no início de sua concepção, nos idos de 1979, com o longa-metragem Mad Max (sabiamente não traduzido, o que manteve a força da pronúncia) de George Miller, também idealizador do argumento da obra; o que há diante de nós é um policial, já assolado pela cruel realidade vivenciada por ele e sua família, se perguntando qual a diferença entre usar ou não um uniforme nas estradas combatendo o crime. Ao final deste primeiro filme, e ao longo das duas sequências Mad Max 2: a caçada continua (Mad Max 2: The Road Warrior, 1981) e Mad Max: além da cúpula do trovão (Mad Max: Beyond Thunderdome) é que Max se tona Mad, sendo possuído por sua dor, agonia, arrependimento e ódio do mundo que lhe tirou tudo.
Estas considerações são fundamentais para entendermos o que é, ou ao menos esboçar, a significância por trás do road movie Mad Max, Estada da Fúria (Mad Max, Fury Road do original) lançado em 2015. Nas investidas originais da franquia, Mel Gibson deu corpo, força e profundidade ao ex-policial de um mundo cada vez mais decadente e, três décadas depois, após inúmeros problemas de produção e adiamentos, Tom Hardy assume o posto deixado por Gibson, e a mudança conseguiu dar vitalidade e novas facetas para personagem, o apresentando e modernizando para nossa época, linguagem e público.
Este novo Max nem que quisesse seria o mesmo do longa inicial de 1979, muito menos o guerreiro implacável dos dois filmes posteriores. Estrada da fúria é um conto sobre alguém perdido em si mesmo, quase uma negação de estudo sobre o personagem título, já que pouco dele nos é apresentado, justamente pela vontade de esquecer-se da própria vida: “Eu era um policial. Um guerreiro da estrada, em busca de uma causa justa” (Max Rockatansky), uma sombra do passado, caminhando num presente sem sentido.
Nas telas da obra de 2015 vemos a penumbra do herói que um dia viveu nas infindáveis estradas do deserto que se tornou o mundo. O que vemos nesta versão do personagem é a sua mais profunda condição de fuga, sobrevivência e introspecção, agregados ao peso de seu passado, ações e decisões: “Eu sou aquele que foge tanto dos vivos quanto dos mortos. Caçado por saqueadores. Assombrado por aqueles que não consegui proteger” (Max Rockatansky).
Mas, ao mesmo tempo, o roteiro não nos entrega uma versão anti-heroica de Max, o que seria uma via tentadora, algo reincidente na atual indústria cinematográfica. Desta forma, não uma vendeta ou grande catarse na qual o protagonista trilha seus passos, dos cenários, objetos pessoais e trejeitos não emanam pomposidade ou luminescência moral. O instinto de sobrevivência prevalece como causa e condição para seguir alimentando o andarilho das terras desoladas em Estrada da Fúria.
E, este estado em que se encontra o novo/velho Max é que intrigou boa parte do público que assistiu aos longas clássicos. Apesar da riqueza e espetacularidade – há muito não vistas nas maçantes computadorizações do cinema contemporâneo – do filme apresentado por Miller, a impressão que se teve em muitas pessoas foi de estranhamento em relação ao herói título, muito mais por resistência em mergulhar na proposta de seu renascimento do que na incontestável qualidade do filme, um dos mais premiados e elogiados dos últimos anos.
A viagem pela Estrada da Fúria
O realismo e discussões propostas por Miller só encontraram tamanho eco na indústria cinematográfica a alguns anos, com o Cavaleiro das Trevas (The Dark Night, 2008) de Christopher Nolan. Não há transparência da virtualidade nos cenários e ambientações, vemos o sangue, a ferrugem, a areia e o sol de uma maneira crível e temível, como um mundo distópico suporia ter.
O filme inicia sua jornada com uma das aberturas mais intensas já registradas por Hollywood e que, certamente, ecoará por muitos anos em obras similares. Desde a concepção de sua distopia arenosa Miller viu sua maior criação ser objeto de diversas investidas plagiosas e por vezes falíveis, como O livro de Eli (2010), O Justiceiro (2004) e o brasileiro Reza a Lenda (2015). Mas o filho pródigo retornado às mãos do seu genitor atinge um patamar ainda a ser debatido em sua totalidade.
Os temas trazidos direta e indiretamente ao longo de suas duas horas de duração não temem as reações que possam causar inquietude ao público, como o feminicídio e exploração sexual e corporal das mulheres; a crítica aos extremismos religiosos em torno de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne) e seus seguidores; toda a crítica ao armamento nuclear, causador do apocalipse que devastou o mundo; e a raridade, distribuição e consumo de petróleo e água; a adoração aos objetos acima de qualquer coisa, neste caso os carros e suas corridas representando este argumento crítico, dentre tantas outras nuances sobrepostas nas camadas de Mad Max, Estrada da Fúria.
E não menos importante que todos os pontos já levantados, há a questão do papel de coadjuvante destinado a Max em seu próprio filme, uma consequência e resultado de todos os elementos supracitados. A depreciação corporal, moral, sexual e natural do mundo em Mad Max: Estrada da Fúria é o ponto de sustentação da essência do seu protagonista, um homem que lutou até as últimas forças contra tudo e todos, mas no momento apenas se arrasta como um ser inerte à própria existência.
Era preciso dar força à desgraça de Rockatansky, e a atuação internalista e brutal de Hardy interligada à visceralidade e camadas da Furiosa de Charlize Theron para aumentar toda a potência dos momentos em que estão juntos, em lados contrários ou como aliados. Furiosa é todo o que Max foi um dia e deixou de ser, sua crença, luta e persistência remete à versão oitocentista do herói caído e, não por coincidência, a partir dela o filme se estrutura e desenvolve, aos poucos mostrando a Max uma nova chance, ou ao menos, algum propósito em seus dias terrenos. A relação dos dois é intensa, bruta, real, talvez, por estas razões, não foram poucas as notícias de conflitos entre os dois atores durante as filmagens, devido a vontade mútua de transparecer em máximo realismo possível os sentimentos e contextos de seus personagens.
E lembremos, é Furiosa quem apresenta a Max uma chance dele buscar algo, um propósito, um sentido para sua caminhada na estrada. Porque se ela é, no contexto do filme, o que Max deixou de ser, portanto, faz todo sentido que nela seja encontrada a rota para sua identidade.
“Furiosa: Você nunca vai ter uma chance melhor.
Max: Em quê?
Furiosa: Redenção.”
Theron/Furiosa é forte, convicta, justa, emocional, profunda e, assim como o personagem título, carrega consigo um peso do tempo em que viveu e vive neste mundo devastado e, mais do que isto, em meio às cores cruas do mundo em que vivem: vibrante e pulsante no cinza, amarelo e sombras, seu sonho, sua almejada redenção reside na busca pelo Vale Verde (menção intertextual à esperança).
Esperança esta também apresentada e dividida, a pós o embate inicial com Max, que passa a acreditar na chegada a este lugar. O vai e vem da história não deixa de ser uma reminiscência ao eterno retorno nietzschiano, pois mesmo negando-nos nossa essência, ela estará lá, mesmo esquecida ou relegada ao ostracismo por muito tempo. O arco envolvendo Furiosa remete a esta alegoria numa linguagem criativa e adequada para este reinício da franquia.
Portanto, devemos entender, ou tentar compreender, que Max não luta ou compete contra Imperatriz Furiosa, Immortan Joe ou Nux, até porque nenhum destes – principalmente a líder da fuga da Cidadela – precisam de outro personagem para se impor, cada qual possui sua história e complexidade. A luta de Max, o seu enfrentamento é consigo próprio, e com isto, e somente e partir disso, a força, fúria e potência de suas convicções e motivações tomam ainda mais importância para sua regeneração, após anos em meio ao seu breu pessoal.
O herói renascido de suas cinzas
Após a alucinante sequência inicial, orquestrada de maneira crível e sufocante por Miller, é possível observar, aos poucos, a maneira como o herói morto em Max começa a se reerguer, combatendo o ceticismo dele mesmo ao longo do desenvolvimento do longa. Alguns sinais desta (re)descoberta de si podem ser vistas em momentos-chave e elementos que compõem a mitologia construída ao longo da herança oitocentista de Mad Max.
Por exemplo, as aliadas, lideradas pela Imperatriz Furiosa em sua fuga; a preocupação com os mais novos e inexperientes neste mundo, sendo Nux (Nicholas Hoult) e as pariedeiras seus principais representantes; a recuperação de sua vestimenta, tal como as botas e sua icônica jaqueta, além de suas armas; por fim, mas ainda de maneira subjetiva o embate com seu carro, parte fundamental da construção da identidade do andarilho da terra devastada.
Finalmente a última consideração, não necessariamente sobre Mad Max, Estrada da Fúria, mas sob o personagem título da obra. Os pré-julgamentos e desprendimento da carga iconográfica e sígnica das atuações originais de Mel Gibson construíram uma cortina de fumaça, um velamento analítico sobre este Max do século XXI, e assim como ocorre ao novo Homem de Aço de Zack Snyder ou o Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan, neste filme temos não necessariamente o herói que queremos, mas o que merecemos. Um alguém humano, assolado por seus erros e, mesmo que relutante, em busca de um fio de esperança em meio às cinzas, sombras e derrotas.
A contemporaneidade é mais fria, descrente e hipócrita que a 30 anos atrás, no período de lançamento das primeiras obras do universo megalomaníaco de Miller. A chegada do Max de Hardy não poderia, nem deveria, ser de outra maneira. Um homem carregado pelas cicatrizes de anos a fio num deserto de decepções, enfrentamentos e sobrevivência. No fim das contas, Mad Max Estrada da Fúria é um filme de (re)começos, Furiosa e Max, representam este plot do roteiro, e todo o percurso de ida e volta que assistimos demonstram isso explícita e cruamente.
Mas não nos esqueçamos, o Max que em certo porto da fuga na estada da fúria profere sua sentença de erro sobre a esperança, é o mesmo que a mantém para o grupo de pessoas que decide ajudar. No fim da loucura e maldição do sangue e sal em que estão afundados, o herói renascido do seu fosso assume seu papel de mantenedor de uma crença no possível, uma via de desconstrução para sua realidade distópica e esquizofrênica. Este é o Max que o público, em sua maioria, deixou de apreciar, (re)ver e deixar-se (des)envolver.
“Pelo menos assim nós vamos ser capazes de, juntos,
se deparar com algum tipo de redenção.”
Max Rockatansky
FICHA TÉCNICA DO FILME:
MAD MAX: ESTRADA DA FÚRIA
Diretor: George Miller
Elenco: Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult, Hugh Keays-Byrne
País: Austrália e EUA
Ano: 2015
Classificação: 16