“Como irá ser? O Reino? E Ele disse: é como uma semente, um único grão de mostarda que uma mulher pegou e semeou em seu jardim. E ele cresceu, e cresceu.
E as aves do céu fizeram ninhos em seus galhos.”
Quem foi Maria Madalena? Pecadora, santa, apóstola, testemunha, esposa? Há mais de 2000 anos muitas teorias são criadas em torno dessa mulher, uma das mais simbólicas personagens do Novo Testamento. Sua importância é inegável na história de Jesus e para o cristianismo. Ela esteve presente em alguns dos momentos mais especiais descritos nos Evangelhos [1], na morte, sepultamento e, especialmente, foi a primeira testemunha da ressurreição de Cristo.
No início, a Igreja reconhecia sua santidade. Maria Madalena era chamada de “Apóstola dos Apóstolos”, em virtude, principalmente, de ter sido a primeira a atestar a ressurreição de Cristo – o primeiro registro desta definição é atribuído ao teólogo Hipólito de Roma (170-236) [2]. Mas quando a Igreja Católica se tornou a igreja oficial do Império Romano (por volta do ano 380), Madalena foi relegada a uma personagem bíblica secundária (pouco comentada) [3]. Seu nome só voltou à tona de forma mais preeminente no século VI e associada ao rótulo de “prostituta”, uma interpretação que perdurou por séculos (e ainda é a única versão conhecida por muitos). Isso aconteceu porque o Papa Gregório Magno oficializou essa suposição em um de seus sermões ao afirmar que Maria, a pecadora que lavou os pés de Jesus, presente no Evangelho de Lucas 7: 36-50 e Maria Madalena apresentada em Lucas 8 eram a mesma pessoa [4].
Enquanto isso romances populares (e questionáveis) como “O Código Da Vinci” trazem à tona novamente a teoria antiga presente nos evangelhos apócrifos, mais especificamente no Evangelho de Filipe, de que Maria poderia ser a esposa de Jesus, já que é descrita em alguns textos antigos como sua “companheira”.
Desde 2016, Maria Madalena é santa no calendário romano e o Papa Francisco transformou o dia 22 de julho, a data de Maria Madalena, em festa litúrgica e voltou a celebrar seu nome como “Apóstola dos Apóstolos”. Segundo artigo de Arthur Roche[5]:
O Padre Francisco tomou esta decisão exatamente no contexto do Jubileu da Misericórdia para significar a importância desta mulher, que mostrou um grande amor a Cristo e Cristo por ela, como afirmou Rabano Mauro e Santo Anselmo de Canterbury em seus escritos.
Se por um lado a ausência de fatos sobre a história de Maria Madalena trazem mais confusão do que clareza aos caminhos trilhados por quem a pesquisa, por outro a igreja lança mão das mais diversas interpretações. Ora ela é a pecadora que ao encontrar-se com Jesus foi acolhida e perdoada por Ele (dando esperança a todo pecador), ora ela é a mulher amada por Cristo, cujo reconhecimento eleva também a importância do papel feminino na história da propagação do cristianismo.
Mas quem é a Maria Madalena retratada no recente filme dirigido por Garth Davis? Segundo a jornalista Flora Carr, e de acordo com a professora Joan Taylor, do King’s College, em Londres, que trabalhou como conselheira histórica para a equipe [3]:
O filme se baseia parcialmente no Evangelho de Maria, um “documento muito misterioso” descoberto no século 19. Não tem autor conhecido, e embora seja popularmente divulgado como “evangelho”, não é tecnicamente classificado como um, já que os evangelhos geralmente relatam os eventos durante a vida de Jesus, em vez de começar depois de sua morte. Acredita-se que o texto tenha sido escrito em algum momento no século II, mas alguns estudiosos afirmam que ele se sobrepõe à vida de Jesus. [3]
Maria Madalena, vivida com extrema sensibilidade por Rooney Mara, é uma jovem de um lugar chamado Magdala, a 120 milhas ao norte de Jerusalém, às margens do Mar da Galileia, logo tem pais e irmãos pescadores. Desde o início do filme, já é possível entender o quanto a jovem está deslocada naquele universo em que o único destino de uma mulher era ser esposa e mãe. A passagem bíblica apresentada no Evangelho de Lucas 8:2, em que Jesus encontra Maria Madalena e expulsa dela sete demônios é retratado no filme a partir de um ponto de vista diferente.
J: Sua família diz que você luta com o demônio.
MM: Se há um demônio em mim, sempre esteve aqui. Queria que houvesse um demônio.
J: Por quê? O que você teme em você mesma?
MM: Os meus pensamentos. Meus desejos, minha infelicidade… Não sou como deveria ser.
J: O que você deseja?
MM: Não tenho certeza…Conhecer Deus.
Os demônios, nesse contexto, são a representação daquilo que é fora do padrão da época. Maria sente que há algo no mundo além do pedaço de chão onde mora em Magdala e do destino que uma sociedade patriarcal impõe para a mulher. Vê em Jesus uma esperança de conhecer mais o Deus que ela sente, mas pouco compreende. As palavras dEle iluminam sua fé e indicam um novo caminho, diferente daquele já determinado pela sua família, que provocava-lhe angústias e desesperança.
“No silêncio existe alguma coisa chamando? Vocês têm coragem de seguir o que ouvem? Vão se alinhar com a vontade de Deus até cada gesto de amor, cada vontade de ajudar e cada respiração estarem unidas? Isso é fé. E essa fé os fará alimentar os que sofrem para aliviar a dor deles. E é essa fé a sua fé, que os conduzirá ao Reino de Deus.”
A ligação entre Maria Madalena e Jesus no filme é representada de forma espiritual, ainda que, como descreveram tantos historiadores, parecia existir um amor maior. Esse amor é refletido na capacidade de compreensão mútua que os tirava da solidão profunda ao entender o papel de cada um na concretização do Reino de Deus. O Jesus do filme tinha fraquezas humanas, pois ficava angustiado ao sentir a dor que estava por vir, mesmo sem entender claramente o final da sua jornada. Uma de suas perguntas a Maria mostra o quanto o sentido das coisas e da vida podem ser fugazes e intangíveis às vezes, mesmo para Ele.
J: Eu via com tanta clareza. E agora está desaparecendo.
MM: O quê?
J: Esta vida.
Em sua caminhada rumo a Jerusalém, Jesus e seus apóstolos foram seguidos por outras pessoas, inclusive por mulheres [1]. O que é apresentado no filme é que Maria Madalena não era apenas mais uma mulher na comitiva de Jesus, era também um dos seus apóstolos e, especialmente, era a que tinha mais sensibilidade para entender as suas palavras. Em um dos momentos mais significativos do filme, em uma conversa entre Judas, Madalena e Jesus é apresentado o quão os pescadores, que amavam Jesus, não tinham clareza de como era o Reino de que Ele falava.
Judas: Eu O vi curar os doentes, ressuscitar os mortos. Sei que basta uma palavra Sua e Deus viraria o mundo de cabeça para baixo. Como os profetas disseram que Ele faria. Os pobres, os sofredores, os mortos, os mortos que amamos irão se levantar e Você será coroado Rei. Diga a palavra. Nós lhe demos tudo. Nossas vidas. Nossa esperança.
MM: Talvez tenhamos entendido errado. Talvez o Reino não seja…
Judas: Não! […] (Olhando para Jesus) Diga-lhe. Diga-lhe que ela está errada.
Mas Ele não diz. E Judas, retratado como uma espécie de “fã número 1” de Jesus, fica desolado. Na sua imaginação, os céus se abririam e os mortos voltariam no momento em que o Messias estalasse o dedo, com isso o mal seria vencido e os justos reinariam a terra. Ainda hoje muitos vendem a esperança de que esse Reino será erguido com doações materiais e/ou com sacrifícios extremos. A interpretação da traição de Judas, nesse filme, finalmente ganhou uma roupagem diferente, porque dessa vez, o Judas retratado era aquele que tinha a percepção mais ingênua do Reino de Deus. Os céus não se abriram como ele imaginou, nem Deus-Pai tirou seu filho do sofrimento da cruz e puniu os seus algozes.
Na versão do filme da última ceia, Jesus sentou-se ao lado de Maria Madalena, recriando uma cena semelhante ao mural de Leonardo Da Vinci. Segundo Flora Carr [3], enquanto na versão de 2006 do filme “O Código Da Vinci”, os personagens examinam o mural e debatem se a figura afeminada à direita de Jesus era de fato a Maria Madalena, como uma forma de provar que ela era a sua esposa, a importância, nesse filme, dela ocupar tal posição era pela ligação espiritual profunda que ela tinha com Jesus, e da sua capacidade em interpretar sua palavra e seus sentimentos. Isso a coloca em uma posição privilegiada, ou seja, uma mulher era apresentada como a figura mais proeminente entre os apóstolos, o que seria um absurdo para época (e, para muitos, ainda hoje).
Nenhum apóstolo ficou ao lado de Jesus nos momentos finais de sua vida, pois estes estavam sendo perseguidos. Mas Maria Madalena, com o melhor disfarce de todos (era mulher), esteve na sua morte e no seu enterro, já que era costume na época as mulheres prepararem o corpo dos mortos para ser levado ao sepulcro. Li uma vez uma reflexão de um historiador cujo nome não consigo lembrar (logo, não há credibilidade nessa informação), que possivelmente os eventos mais prováveis descritos na bíblia, mesmo para os céticos, eram aqueles mais improváveis para a época, por exemplo, uma mulher sendo testemunha da ressurreição (ou da ideia da ressurreição).
MM: Ele não se foi. Nem a morte pode detê-lo. Ficamos buscando uma mudança no mundo, mas não é o que pensávamos. O Reino é aqui e agora.
Um dos apóstolos: Nós falhamos. Não há nenhum Reino.
MM: O povo se levantaria, ele seria coroado rei? Ele disse isso a vocês? Porque o Reino não é algo que possamos ver com nossos olhos. Está dentro de nós.
Segundo o escritor e historiador Michael Haag, autor do livro “The Quest for Mary Magdalene” em entrevista para Time [3],
a Igreja historicamente tem marginalizado Maria não apenas por causa de seu gênero, mas também por causa de sua mensagem. Ele argumenta que a Igreja especificamente promulgou a ideia de que ela era uma prostituta a fim de “desvalorizar” sua mensagem. Haag acredita que as ideias alternativas de Maria Madalena se mostraram muito perigosas para a Igreja permitir que elas se espalhassem. O Evangelho de Maria Madalena, em sua opinião, mina a “burocracia da Igreja e favorece a compreensão pessoal” [3].
Diferente de filmes como “Os Dez Mandamentos” (1956), o épico dirigido por Cecil B. DeMille, “A Paixão de Cristo” (2004), a odisseia de crueldade e sofrimento de Mel Gibson, ou o ousado “A última tentação de Cristo” (1988), de Martin Scorsese, Maria Madalena (2018) de Garth Davis tem um ritmo mais lento, não tem a intenção (ao menos não deliberada) de provocar rompantes de aceitação ou repulsa. É a construção, passo a passo, da metáfora que iniciou o filme, sobre o Reino de Deus ser uma semente, um grão de mostarda, que foi semeado por uma mulher (Maria Madalena em sua Testemunha da Ressurreição) e espalhado por muitos em uma saga que perdura por mais de dois mil anos.
REFERÊNCIAS:
[1] https://www.bibliaonline.com.br/
[2] https://www.bbc.com/portuguese/geral-43381775
[3] http://time.com/5210705/mary-magdalene-controversial/
[4] http://www.bbc.co.uk/religion/religions/christianity/history/marymagdalene.shtml
[5] http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccdds/documents/articolo-roche-maddalena_po.pdf
Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=L8u8QkIy7es
FICHA TÉCNICA DO FILME
MARIA MADALENA
Diretor: Garth Davis
Elenco: Rooney Mara, Joaquin Phoenix, Chiwetel Ejiofor, Tahar Rahim
Ano: 2018