Como você se sentiria se um dia acordasse em um mundo totalmente novo e diferente e tivesse dificuldade em entender o que está acontecendo? Será que você continuaria sendo você? Para onde teria ido a pessoa que você foi, tudo que construiu ao longo da vida? Seria frustrante perceber que tudo se perdeu ou você se agradaria com a ideia da possibilidade de um novo começo?
Esses questionamentos aparecem nos pensamentos de quem assiste ao documentário My beautiful broken brain, além dos respondentes comportamentais – aperto no peito e nó na garganta – misturados à angústia em perceber que tal situação pode acontecer com qualquer um, em qualquer momento e em qualquer lugar. Disponível na Netflix, o documentário é dirigido por Lotje Sodderland e Sophie Robinson, que também fazem parte do elenco.
Lotje tinha um trabalho difícil como cineasta e documentarista, em que tinha que fazer várias coisas ao mesmo tempo e ser bem organizada. Sua vida era contar histórias através de suas gravações. Ela gostava disso, assim como gostava de ler muito. Sua sociabilidade e comunicabilidade eram notórias. Até que em um infortunado dia, Lotje acorda em um hospital e percebe que essas habilidades que ela tanto prezava e que a faziam ser ela, haviam sumido ou estavam bem prejudicadas. Lotje havia sofrido, dois dias antes, um grave acidente vascular cerebral (AVC), com hemorragia intracerebral.
Estando em um mundo novo, no qual adquiriu novas percepções da realidade, incluindo sons, cores e imagens bem mais intensas do que antes, Lotje apresentou uma reação que muitos não esperariam. Definindo sua situação como uma “viagem paralela esquisita”, teve o ímpeto de começar a gravar a sua rotina. Com a ajuda de Sophie, passou a contar a própria história. Ora com gravações que fazia com o próprio celular de si mesma, ora com gravações feitas por Sophie, o cotidiano de Lotje se tornou a pungente história vista no documentário.
Tudo começou em um repente, com Lotje sentindo fortes dores de cabeça, náuseas, tontura, confusão. Passado algum tempo, foi encontrada desmaiada no banheiro de um hotel perto de sua casa, onde foi procurar por ajuda, mas não conseguiu porque não saía palavra de sua boca e nem escrita de suas mãos. Isso se deve a área do cérebro que foi atingida pelo AVC. Segundo o médico de Lotje, a situação dela é muito rara, sendo uma hemorragia na substância cinzenta do cérebro.
Com isso, o córtex cerebral que, dentre outras, tem funções cognitivas superiores, ficou vulnerável. Além disso, a hemorragia ocorreu no lobo têmporo-parietal do cérebro de Lotje. Lesões nessa área levam à afasia sensitiva transcortical que, segundo Higashi (2011) “leva a uma compreensão prejudicada, fluência preservada e associação com hemioanopsia (perda parcial ou completa da visão). Difere-se da afasia de Wernicke porque mantem a repetição preservada”.
Desse modo, Lotje consegue falar, mas apresenta dificuldade em formular frases totalmente corretas, sempre havendo troca de palavras ou não conseguindo lembrar delas ou reproduzi-las. Também não consegue escrever e nem ler e sua visão do lado direito ficou prejudicada. Essa situação a deixou bem frustrada, pois ela tem consciência do que está acontecendo e, segundo seu irmão, ela demonstra desejo de se comunicar melhor, mas não consegue. Em uma de suas falas embaraçadas, Lotje diz que “antes era bem ocupada, normal, inteligente. Agora é tudo estranho, começar do nada”.
Esse começar do nada reflete a impressão que o documentário passa, de que Lotje está aprendendo tudo de novo, como uma criança quando está começando sua caminhada no mundo das palavras faladas, lidas e escritas. Sua frustração se dissipou um pouco quando começou a participar de uma terapia experimental, que consistia em exposição intensa à palavras e repetição dessas. Entretanto, a frustração voltou quando os resultados apontaram pouco efeito e quando uma crise de epilepsia a atingiu, devido a intensidade do tratamento.
O documentário foi gravado durante um ano, no qual Lotje passou por vários especialistas e terapias. Uma neuropsicóloga também atuou no caso, tendo ajudado Lotje a voltar a digitar, explicando que os caminhos entre essa atividade e a escrita diferem um pouco. Isso se deu porque, apesar da área cortical associativa terciária (que compreende funções motoras e sensoriais e funções cognitivas) ter sido atingida, suas funções motoras ficaram preservadas.
Passado esse tempo, depois de tantos tratamentos e algumas frustrações, Lotje se reencontrou na meditação. Se afastou um pouco do barulho e do excesso de informações da cidade. Há de se perceber que ocorreu uma mudança na vida de Lotje, entretanto, sua essência permanece, talvez até mais visível do que antes. Inclusive sua paixão como cineasta continua viva e ativa.
“O cérebro precisa de silêncio para desempenhar suas funções. Me sinto muito mais próxima da minha consciência. Uma proximidade maior do meu eu, que é a minha essência. Se o corpo físico, o cérebro, for danificado, esse dano se estendeu ao “eu”? Preciso estar à vontade com a diferença sutil, ou como diriam alguns, a diferença nada sutil, entre quem eu era antes e quem eu sou agora. Na meditação descobri a fragilidade da mente e também seus recursos infinitos. Me sinto fortalecida com essa descoberta. O silêncio. A solidão. Apenas respire. Não entre em pânico. Se liberte do medo”. Lotje Sodderland, durante suas férias em Gilette, França.
Não se recomenda sofrer de um AVC para se descobrir, mas o que Lotje ensina com sua história é que não somos apenas um amontoado organizado de órgãos ambulante, mas que todos têm sua importância, sua essência e sua história não depende necessariamente do que se faz ao longo dela, mas o que se torna com ela. É isso o que nos faz ser humanos.
Nota: Este trabalho foi realizado como requisito de avaliação na disciplina Neuropsicologia, sob docência de Gabriela Ortega Coelho Thomazi.
Referências
HIGASHI, Rafael. Afasias e lobos cerebrais. Rio de Janeiro: Slideshare, 2011. 33 slides, color. Disponível em: <https://pt.slideshare.net/RafaelHigashi/afasia-e-lobos-cerebrais>. Acesso em: 06 set. 2018.