O Corvo – Conto dos irmãos Grimm

opening-titles-10-1024
Retirado de: drunkwookieblog.wordpress.com

Houve, uma vez, uma rainha cuja filhinha pequena, ainda de colo, era impertinente até não se aguentar. Certo dia, a menina estava tão mal humorada que era impossível aturá-la; a mãe lançou meio de todos os recursos para acalmá-la, mas em vão.

Querendo distraí-la, a rainha abriu a janela e, vendo alguns corvos esvoaçando em volta do castelo, disse, num assomo de impaciência:

– Gostaria que fosses um corvo, pelo menos estarias voando e brincando lá com os outros e me deixarias em paz.

Mal acabou de pronunciar essas palavras, eis que a menina se transformou, subitamente, num corvo e saiu dos braços da mãe pondo-se a voar pela janela fora. Foi voando diretamente para a floresta, onde ficou durante muito tempo e seus pais nada mais souberam dela.

Passados alguns anos, certo dia um jovem atravessava a floresta e, de repente, ouviu uma voz; olhou para todos os lados sem descobrir ninguém. A voz tornou a fazer-se ouvir, então olhando naquela direção, viu, pouco distante, um corvo e compreendeu que era ele quem estava falando.

– Escuta, meu jovem, – dizia o corvo; – eu sou filha de um rei e alguém me encantou, transformando-me em corvo. Tu, se quisesses, poderias libertar-me!

– E que devo fazer para isso? – perguntou o jovem.

– Continua andando sempre para diante na floresta; lá ao longe, encontrarás uma casinha habitada por uma velha. Ao chegares lá, ela te virá ao encontro e te oferecerá de comer e beber, mas nada aceites; pois, se comeres ou beberes alguma coisa, cairás em sono profundo e perderás a oportunidade de me libertar. No jardim atrás da casa, há um montículo de tufo, senta-te lá em cima e fica esperando por mim. Durante três dias, às duas horas da tarde, chegarei numa carruagem. No primeiro dia, a carruagem virá puxada por quatro cavalos brancos; no segundo dia, por quatro cavalos alazões, e no terceiro dia, por quatro cavalos negros. Porém, se não estiverdes acordado e eu te encontrar dormindo, não me poderei libertar.

O jovem prometeu fazer tudo quanto ela lhe pedia, mas, ao despedir-se, o corvo disse, suspirando:

– Prevejo que não me libertarás; acabarás por aceitar qualquer coisa da velha e cairás em sono pesado!

O jovem protestou, dizendo que nada aceitaria e, mais uma vez, reiterou promessa de ajudá-la. Mas quando chegou à casa indicada, saiu de dentro a velhinha, dizendo:

– Ah, pobre homem! Como estás esfalfado! Descansa um pouco e come alguma coisa para refazer as forças.

– Não, – disse o homem, – não quero comer nem beber nada.

A velha, porém, insistiu com muita habilidade até que, sem jeito de continuar recusando, o homem aceitou um gole de bebida. Depois agradeceu e foi postar-se no monte de tufo a fim de aguardar a chegada do corvo. Assim que sentou, foi tomado de tal canseira que teve de deitar-se um pouco para descansar, mas com a firme intenção de não se deixar vencer pelo sono. Os olhos, porém, logo se lhe fecharam e ele caiu em sono tão pesado que nada deste mundo conseguiria acordá-lo. Às duas horas em ponto, chegou o corvo, na bela carruagem puxada por quatro cavalos brancos, mas vinha muito triste, dizendo para si mesmo: eu sei que o encontrarei dormindo! De fato, quando chegou ao jardim viu que ele estava dormindo realmente. Então, desceu da carruagem e, aproximando-se dele, sacudiu-o várias vezes, chamando-o em voz alta, mas em vão; o homem não acordou.

No dia seguinte, ao meio-dia, a velha foi levar-lhe comida e bebida mas ele não queria aceitar nada; contudo, a velha tanto fez e tanto disse que ele acabou por beber um pouco do copo que ela lhe apresentava. Por volta das duas horas, ele dirigiu-se ao monte de tufo no jardim a fim de aguardar o corvo; mas, também dessa vez, a canseira era tão grande que não conseguia ficar de pé, obrigando-o a deitar-se. Imediatamente, ferrou em sono profundo. As duas horas, chegou o corvo na carruagem puxada por quatro cavalos alazões; vinha tristonho, pois sabia que o encontraria dormindo. Desceu da carruagem e tentou despertá-lo; chamou-o, sacudiu-o, em vão; nada o despertava.

No dia seguinte, a velha censurou-o porque não queria comer nem beber, dizendo:

– Onde já se viu, passar tanto tempo sem comer nem beber! Quer por acaso morrer?

O homem continuava a recusar tudo; a velha, porém, colocou em frente um prato bem cheio de comida e um copo de vinho; ao sentir aroma tão apetitoso, o homem não resistiu e bebeu um gole de vinho. Em seguida, foi ao jardim a fim de aguardar a princesa encantada; mas sentiu ainda maior cansaço que nos dias precedentes; então, deitou-se um pouco e não tardou a adormecer como uma pedra. As duas horas, chegou o corvo na carruagem puxada por quatro cavalos pretos; desceu dela e fez o impossível para despertá-lo; sacudiu-o, chamou-o, inutilmente. Então, colocou junto dele um pão, um pedaço de carne e uma garrafa de vinho, que tinham a propriedade de nunca acabar. Depois, enfiou-lhe no dedo um anel, dentro do qual havia o seu nome gravado e, por último, deixou-lhe uma carta, explicando direitinho tudo o que lhe deixava e tudo o que havia acontecido, dizendo mais: “vejo bem que aqui não és capaz de me libertar; contudo, se desejas realmente fazê-lo, vem ter comigo no castelo de ouro de Stromberg. Podes bem fazê-lo, eu sei com toda a certeza.” Em seguida, voltou para a carruagem coberta de luto e rumou, velozmente, para o castelo de ouro de Stromberg. Assim que acordou, percebendo que dormira bastante, o jovem ficou extremamente aflito e murmurou:

– Certamente ela já passou por aqui e deve ter ficado aborrecida, pois não a libertei!

Nisso, caiu-lhe sob o olhar as coisas aí deixadas; pegou imediatamente na carta e leu o que continha; assim ficou sabendo o que acontecera e, também, o que ainda podia fazer. Levantou-se depressa e pôs-se a caminho em procura do castelo de ouro, embora não sabendo onde o mesmo se situasse. Já havia corrido mundo a valer, quando chegou a uma floresta muito densa; vagueou por ela durante quinze dias sem encontrar o caminho de saída. Uma tarde, em que as sombras da noite baixavam muito rapidamente, deixou-se cair junto de uns arbustos, para descansar, pois já não podia mais de tão cansado, e não tardou a adormecer. Pela manhã do dia seguinte, continuou a perambular e, ao anoitecer, quis novamente deitar-se ao pé de uma moita para descansar e dali a pouco ouviu gemidos e lamentos tão altos que o impediram de dormir. Na hora em que é costume acenderem-se as luzes, ele viu uma luzinha brilhando não muito distante; levantou-se depressa e dirigiu-se em sua direção. Andou um pouco e chegou a uma grande casa que, de longe, porém, parecia pequena, porque estava meio escondida atrás de um gigante. O jovem estacou, pensando: “Se entras e o gigante te descobre, és um homem liquidado!” Todavia, armando-se de coragem, foi-se aproximando. Assim que o gigante o viu, gritou:

– Oh, chegas em boa hora; já faz muito tempo que não como nada! Vou engulir-te já como jantar.

– Deixa disso, – respondeu o jovem, – não gosto de ser engolido; se queres comer tenho aqui o bastante para te satisfazer o apetite.

– Se é verdade o que dizes, então podes ficar sossegado que não te comerei; falei em engolir-te porque estou com muita fome e nada tenho para comer.

Sentaram-se à mesa e o homem pôs-se a servir pão, carne e vinho até não acabar mais.

– Gosto muito disto, – disse o gigante, e comeu à vontade.

Daí a pouco o jovem perguntou:

– Podes indicar-me onde fica o castelo de ouro de Stromberg?

– Vou procurar no mapa que tem todas as cidades, aldeias e casas. Foi ao quarto buscar o mapa e procurou o castelo, mas não constava.

– Não importa, – disse o gigante, – tenho outros mapas mais completos lá no armário; talvez encontremos o que procuras.

Procuraram inutilmente, o castelo não constava. O homem queria continuar o caminho, mas o gigante pediu- lhe que esperasse ainda alguns dias, até seu irmão voltar; não demoraria, fora aí por perto em busca de víveres.

Quando o irmão do gigante voltou, perguntaram-lhe se sabia onde ficava o tal castelo; ele respondeu:

– Depois do almoço, quando matar a fome, procurarei no mapa.

Mais tarde subiram os três ao quarto do segundo gigante e procuraram em todos os mapas aí existentes, em todos os velhos papéis, e tanto procuraram que acabaram por descobrir o castelo de Stromberg. Mas ficava a muitas e muitas milhas de distância.

– Ah, – disse tristemente o jovem, – como poderei chegar lá?

– Eu tenho duas horas de tempo disponíveis, – disse o gigante, – posso levar-te só até às vizinhanças, porque preciso estar de volta logo para amamentar o menino que temos.

287015_Papel-de-Parede-Corvo-Arte-Digital_1920x1080
Retirado de: ultradownloads.com.br

Assim fizeram. O gigante levou-o até um lugar que ficava a duzentas horas do castelo, dizendo que o resto do caminho podia fazê-lo sozinho. Com isso voltou, e o homem continuou a andar dia e noite até que por fim chegou ao castelo de ouro de Stromberg. O castelo porém, fora construído sobre uma montanha toda de vidro. A princesa encantada tivera de percorrer, em volta, toda a montanha até poder entrar. O homem ficou muito contente vendo-a lá e queria subir até ela, mas, cada vez que tentava subir, tornava a deslizar pelo vidro abaixo. E, vendo que não o conseguia, pensou consigo mesmo: “ficarei esperando por ela aqui em baixo.” Então, construiu uma pequena cabana e ficou aí um ano inteiro; todos os dias avistava a princesa passeando de carruagem no alto da montanha, mas ele não podia ir ter com ela. Certo dia, estando na choupana, viu três bandidos brigando e se esmurrando; então gritou-lhes:

– Deus esteja convosco!

Ao ouvir esse grito os bandidos estacaram, olhando de um lado para outro, mas, não vendo ninguém, recomeçaram a esmurrar-se com mais vigor. O homem gritou pela segunda vez:

– Deus esteja convosco!

Os bandidos tornaram a olhar em volta, mas, não vendo ninguém, voltaram à luta. O homem gritou pela terceira vez:

Deus esteja convosco! – pensando: “vou lá ver por que é que estão se esmurrando.”

Foi e perguntou aos bandidos a razão daquela luta; então um deles disse que tinha achado um pau que tinha o poder de abrir qualquer porta em que batesse. O segundo disse que tinha achado um capote e quem o vestisse se tornaria invisível, e o terceiro disse que tinha achado um cavalo com o qual era possível ir a qualquer lugar, mesmo ao cimo da montanha de vidro. E agora estavam brigando porque não chegavam a um acordo: não sabiam se ficar com os objetos em comum, ou reparti-los e cada qual ir-se com o seu achado. O homem então propôs:

– Eu quero fazer uma troca com esses objetos; dinheiro, na verdade, não tenho; mas possuo algo que vale muito mais. Antes porém, quero experimentar se o que dissestes é realmente certo.

Os três bandidos aceitaram a proposta. Deixaram- no montar no cavalo, vestiram-lhe o capote e puseram-lhe na mão o pau; de posse de tudo isso, o homem tornou-se invisível; então pegou no pau e espancou valentemente os três bandidos, gritando: – Ai tendes o que mereceis, seus vagabundos! Estais satisfeitos?

E saiu a correr pela montanha acima; quando chegou ao alto, encontrou o portão do castelo fechado; bateu-lhe com o pau e logo ele se escancarou. Entrou e subiu as escudas indo até onde se encontrava a princesa, que estava sentada numa sala, tendo em frente uma taça de ouro cheia de vinho. Como, porém, ele estivesse com o capote mágico que o tornava invisível, ela não podia vê-lo; por isso, chegando à sua presença, o homem tirou do dedo o anel que ela lhe dera e atirou-o dentro da taça, que tilintou. A princesa exclamou alegremente:

– O meu anel!… O jovem que me vem libertar deve estar aí!

Correu a procurá-lo por todo o castelo sem conseguir encontrá-lo. Ele saíra do castelo e, montando no cavalo, despira o capote. Quando a princesa foi lá fora deu com ele e ficou radiante de alegria.

Descendo do cavalo, o jovem tomou a princesa nos braços e ela beijou-o muito feliz, dizendo:

– Agora me libertaste do encanto; amanhã realizaremos nosso casamento.

__________________________________________________________________________

ravens_16516_lg
Retirado de: fairytalelandstories.wordpress.com

Esse conto mostra o motivo de redenção da princesa de sua forma animal, mostra o tema do sono paralisante, mas sendo aqui o masculino que dorme e como atua o complexo materno negativo na psique feminina e masculina.

Vou iniciar a análise do conto com a questão do complexo materno negativo. Conforme Jung (2008) o arquétipo materno é a base do chamado complexo materno. Nos contos de fadas vemos os arquétipos em sua forma mais concisa e pura (VON FRANZ, 2005). Por essa razão temos nas bruxas, madrastas e mães terríveis o lado negativo do arquétipo materno.

No inicio do conto é a própria mãe que usa enfeitiça a filha. A mãe profere as palavras e a transformação ocorre. Em termos pessoais, vemos manifesto na psique da mulher um complexo materno negativo. Essa mulher então desenvolverá uma defesa muito forte contra tudo o que é materno.

Confome Jung (2008):

“Todos os processos e necessidades instintivos encontram dificuldades inesperadas; a sexualidade não funciona ou os filhos não são bem-vindos, ou os deveres maternos lhe parecem insuportáveis, ou ainda as exigências da vida conjugal são recebidas com irritação e impaciência.”

Vê-se no inicio do conto que a rainha tem dificuldade na questão maternal. Ela não consegue aguentar impertinência infantil. Seu instinto materno é ferido. E a mulher com esse lado ferido irá passar isso para sua filhinha, como forma de maldição. Ela não reconhece seu valor enquanto mulher e acaba transmitindo isso para a filha. A maldição é que esse tipo de mulher precisa de uma grande quantidade de calor e atenção, que não encontraram como convinham em suas mães. Elas são suscetíveis e se sentem e constante estado de estarem sendo abandonadas.

the_seven_ravens_by_dunechampion-d3d3ayj
Retirado de: cadernodepoesiaseafins.blogspot.com

A maior dificuldade está em superar a ferida e o ressentimento. Carl Jung (2008) ressalta que ela casar-se por acaso, seu casamento serve apenas para livrar-se da mãe ou então o destino lhe impinge um marido com traços de caráter semelhantes ao da mãe.

O conto então mostra como a mulher com complexo materno negativo pode atravessar uma jornada iniciática e desenvolver sua personalidade entrar em um relacionamento de forma mais plena e inteira. Esse aspecto negativo do arquétipo materno irá reaparecer no conto na forma da velha que lança o feitiço do sono no rapaz.

Rainha e velha mostram o aspecto sombrio do feminino. O aspecto imperfeito da mãe natureza negligenciado pela consciência coletiva e que refletem nas mães pessoais. O rapaz também possui um complexo materno que o deixa paralisado em sua masculinidade e ação.

Esse conto então mostra uma iniciação dupla, pois ambos caem em maldição. A princesa que procurou seu salvador também terá de salvá-lo. Esse conto mostra tanto uma jornada feminina, quanto uma masculina que também está amaldiçoada. Aqui anima e animus se encontram também sob os domínios do arquétipo sombrio da mãe.

Sobre o corvo é interessante ressaltar que se trata de um animal que simboliza a morte, a solidão, o azar, o mau presságio. Mas, pode simbolizar a astúcia, a cura, a sabedoria, a fertilidade, a esperança. Essa ave está associada ao profano, à magia, à bruxaria e à metamorfose.

Vemos aqui um simbolismo profano e pagão que foi reprimido pelo cristianismo. A bruxaria e a magia na verdade se tratavam de um conhecimento da terra e não do alto; o conhecimento das ervas e dos elementos. Na verdade o corvo sempre teve uma conotação positiva para as tradições da antiguidade. O cristianismo foi um dos propulsores da acepção negativa atribuída ao corvo e, atualmente, espalhada pelo mundo. Desde então, para esse animal necrófago (que se alimenta de carne putrefata) é considerado como mensageiro da morte e então associado ao mal.

Isso mostra a maturidade do Ocidental cristão diante da morte. Na Mitologia Grega, o corvo era consagrado a Apolo, e para eles essas aves desempenhavam o papel de mensageiro dos deuses visto que possuíam funções proféticas. Por esse motivo, esse animal simbolizava a luz uma vez que para os gregos, o corvo era capaz de conjurar a má sorte.

Na Mitologia Nórdica, encontramos o corvo como o companheiro de Odin (Wotan), deus da sabedoria, da poesia, da magia, da guerra e da morte. Na Mitologia Escandinava, dois corvos aparecem empoleirados no Trono de Odin: “Hugin” que simboliza o espírito, enquanto “Munnin” representa a memória; e juntos simbolizam o princípio da criação.

Toda essa sabedoria foi perdida com o desenvolvimento de nosso lado racional, intelectual, pois com o advento do Cristianismo o homem moderno passou a ter uma atitude bastante infantil diante do mal, do feminino e da morte. Reprimimos nossa intuição e passamos a desconhecer os ciclos da vida, onde a morte e a putrefação o corpo ocorrem.

Além disso, na Índia, a caça ao corvo é proibida, já que essa ave representa a alma dos mortos, e dar de comer a um corvo significa alimentar os antepassados (Paz, 1995). Sozinha então a princesa, carrega em si a alma de seus antepassados, fazendo não apenas uma redenção pessoal, mas uma coletiva e familiar.

Ela pede ajuda a um jovem (animus) que enfrenta a velha (arquétipo materno negativo). Pois, bem para ajudar a princesa ele deve ir à casa da velha e não comer nada durante a estadia lá. Mas ele falha e por três vezes a princesa parece e ele está dormindo. Ela prevê que isso iria ocorrer e mesmo assim continua sua jornada, sabendo que a falha dele faz parte de sua iniciação e redenção.

Essa é uma compreensão difícil para um ego imaturo. Queremos resultados rápidos e instantâneos e temos pouca consideração pela falha, principalmente quando se trata de relacionamentos. Saber que se está no caminho certo, mesmo diante de obstáculos e desafios e mesmo assim manter a integridade e a certeza é um empreendimento para poucos.

NigredoAlbedoRubedo copia
Retirado de: themaskofgod.blogspot.com

Ela chega a primeira vez com uma carruagem com quatro cavalos brancos, depois com cavalos alazões (avermelhado) e por fim com cavalos pretos. Temos aqui alusões a uma transformação alquímica que ocorre com o sono do jovem. O número quatro para Jung está associado a totalidade. O cavalo está associado ao instinto sexual, libido. Suas acepções simbólicas são provenientes de figuras lunares, em que associa a Terra ao seu papel de mãe suprema, e à Lua, por isso relaciona-se com a vegetação, as renovações cíclicas, a sexualidade, os sonhos e as adivinhações.

O branco, o vermelho e o preto fazem uma alusão as fases alquímicas denominadas: albedo, rubedo e nigredo. A Albedo é um estado de paz, paradisíaco, de inocência. Simboliza a purificação. No entanto, esse estado não é passível de durar, pois é irreal. Representa a brancura, o clareamento, o entendimento, o conhecimento, a tranqüilidade. Mas essa fase não deve durar para sempre, ela deve ser colorida por outra cor, para incitar vida.

A Rubedo é a fase do vermelho, que significa vida, paixão e fogo. É a libido em atuação plena. Simboliza a iluminação, pois passar pelo fogo é deixar queimar as escórias que ainda existem. A Nigredo significa a ignorância e o acordar, bem como as fases críticas, como nascimento e morte, ou as transformações que o corpo sofre na transição entre a infância e a adolescência e, ou deste a jovem e daí à clássica crise dos quarenta ou à velhice. Psicologicamente está associada à morte, mas a morte das ilusões egóicas.

Durante vidas nos identificamos a uma infinidade de conceitos e costumamos tomá-los como verdade absoluta; rígida e estática. Na Nigredo há a morte desses apegos ilusórios e padrões que já não nos servem mais. Isso significa que a consciência entra então na Nigredo, na noite escura da alma. A moça deixa para o rapaz uma garrafa de vinho, um pedaço de pão e carne. E lhe escreve dizendo que esse alimento era inesgotável. Esta parece ser uma alusão ao mito de Cristo e a Santa Ceia, onde comemos o pão e a carne, que simbolizam a carne e o sangue de Cristo. E assim foi instituída a eucaristia.

Aqui então temos uma alusão ao alimento espiritual, onde se alimenta do próprio Deus. Além do Cristianismo, nos Mistérios Eleusinos, os adeptos consumiam o pão, alimento associado à Deméter (a deusa arquetípica do poder materno da terra), e o vinho – associado a Dioniso – a bebida divina que eleva a pessoa, mediante a embriaguez extática, a um estado de júbilo que a destacava de sua condição comum do cotidiano, ou, em outras palavras, a eleva a uma fusão com o divino; tal experiência sagrada seria proporcionada pela ação dionisíaca.

Isso representa a assimilação da potência simbólica da divindade. Em termos psicológicos é o contato com o Self. O rapaz ao se alimentar anteriormente cai no sono, pois aquele alimento não o satisfaz. Isso significa que enquanto a consciência se alimenta de algo transitório, como os desejos egóicos, ela cai no sono da inconsciência e se sente constantemente insatisfeita. O propósito advém desse centro da totalidade.

Ela lhe da um anel com seu nome. O anel também é um símbolo do Self e simboliza o casamento, o compromisso que ele precisa estabelecer com a anima. Após isso ele sai em busca dela e segue em direção ao castelo de ouro de Stromberg. Aqui temos um caso de redenção dupla. A princesa enfeitiçada precisa libertar seu salvador, para que ele possa cumprir sua missão. O herói nesse caso precisa antes da ajuda da anima, pois ele ainda se encontra preso a um complexo materno, onde a anciã lhe oferece prazer. Esse prazer infantil o deixa na preguiça e na inconsciência.

Ele então encontra um gigante que quer devorá-lo. Ele lhe dá a comida e o gigante lhe indica o caminho até a princesa. Os gigantes representam a natureza em estado selvagem, em seu estado primitivo antes de ter sido anexada à civilização. É a força da natureza que pode ser destrutiva, pois gigantes são muitas vezes desajeitados e mal-intencionados. Representa então a força da nossa própria natureza que foi reprimida e renegada. Nossa parte destrutiva, devoradora, desajeitada, mas que possui muita força.

2015 Outubro 02 Alquimia IMG 12
Retirado de: maiconttamps.blogspot.com

E o herói faz dessa parte de sua natureza sua amiga, pois o gigante não comia, ou seja, a consciência parou de alimentar esses aspectos e assim ele se tornou perigoso. Então o gigante lhe indica o caminho do castelo. Ele passa a viver ao sopé da montanha a espera do momento certo, e aguarda por um ano. Até que ele engana três ladrões e adquire um cajado que abre as portas, capa que o torna invisível e o cavalo que vai a qualquer lugar. E assim culmina na libertação e casamento.

O número três se repete nesse conto, e em outros contos também é bem recorrente. O três é o número da salvação, resolução harmônica do conflito da queda, é o desdobramento do Uno em trindade. Isso significa que em cada alma humana, existe a possibilidade de salvação. Aqui Logos – animus e Eros – anima se encontram em conflito. O Logos preso no complexo materno e imaturo e Eros amaldiçoado pelo mesmo complexo materno disfuncional.

Um ano – tempo que o salvador aguarda – simboliza os 12 meses do ano. Na Astrologia, o tempo que o Sol leva para passar pelas 12 casas zodiacais. Isso significa passar por uma iniciação e realizar um ciclo de conhecimento da vida. O amadurecimento que antes não havia. Apenas após aprender os mistérios da vida nos 12 meses, ele está apto a agir.

REFERÊNCIAS:

EDINGER, E.F. – Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

PAZ, N. Mitos e ritos de iniciação nos contos de fadas. Cultrix – Pensamento. São Paulo: 1995.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

Psicanalista Clínica com pós-graduação em Psicologia Analítica pela FACIS-RIBEHE, São Paulo. Especialista em Mitologia e Contos de Fada. Colaboradora do (En)Cena.