Com quatro indicações ao OSCAR:
Filme, Diretor (Lenny Abrahamson), Atriz (Brie Larson) e Roteiro Adaptado (Emma Donoghue)
Era uma vez…
antes de eu chegar, você só chorava e via TV o dia inteiro, até virar zumbi.
Mas eu desci do Céu pela Claraboia até o Quarto. E eu estava te chutando por dentro.
Boom boom! E daí eu saí no Tapete com os olhos bem abertos,
e você cortou o cordão e disse “Olá, Jack.”
(Jack, 5 anos)
Imagine viver toda sua vida em um pequeno quarto. Cercado por alguns objetos velhos, como uma TV, uma pia, um abajur, um armário, uma cobra-de-casca-de-ovo e uma cama. Só conhecer uma pessoa, além de você mesmo. Não ter a noção de fora e dentro porque nunca viu o “lá fora”. Acreditar que o quarto é o mundo e todo o resto não é real ou está no espaço sideral, longe demais do seu alcance. Imaginou? Esse é o mundo de Jack, um menino de 5 anos.
E, ao contrário do que se possa pensar inicialmente, esse não é um filme metafórico ou surreal. “O quarto de Jack” é uma adaptação do livro “Room”, da escritora de origem irlandesa Emma Donoghue (que também escreveu o roteiro do filme). Ela deu ao livro/filme uma áurea de contos de fada, já que é narrado por uma criança de 5 anos, mas a cada cena vem à tona de forma mais explícita todo o horror que a história, de fato, esconde. A realidade, às vezes, é mais surpreendente que a imaginação. Vários casos reais embasaram o livro, em especial, o caso de Felix Fritz, de 5 anos, filho mais novo da mulher austríaca que foi mantida em cativeiro pelo seu próprio pai por 24 anos e teve 8 filhos dele, um caso que veio à tona em 2008 [1].
Quando o mundo é tão pequeno quanto um quarto, todas as coisas desse mundo passam a ter um sentido muito mais profundo. Ao narrar sua história, Jack apresenta cada objeto do quarto como se fosse único (porque na verdade, para ele, é). Então, o artigo indefinido não tem muito sentido quando ele se refere às coisas que o cercam, logo é A Cadeira, O Abajur, O Tapete. No livro essas palavras são apresentadas com as iniciais em maiúsculo, porque Jack as designa como nome próprio. O que corrobora a tese de Wittgenstein (1958), quando ele afirma que o princípio do uso é a base para o entendimento do significado de uma expressão, ou seja, “a significação de uma palavra é seu uso na linguagem”[2]. Naquele pequeno mundo, os significados das coisas são singulares, de certa forma sentido e significado se equiparam. Fazendo uma alusão a Vytotsky, para Jack, cada coisa ali nomeada era um microcosmo da sua consciência.
Existe o Quarto e o Espaço Sideral com todos os planetas da TV e depois o Céu.
A Planta é real, mas as árvores não. […] Esquilos e cachorros só existem na TV.
Menos o Lucky. Ele é meu cachorro que talvez venha um dia.
As montanhas são grandes demais para serem de verdade.
[…] Mas eu e você existimos. (Jack)
O psiquiatra Augusto Carreira [3] fez o seguinte comentário em relação às crianças encarceradas no caso austríaco [1], “para percebermos como será a vida daquelas crianças daqui para a frente, é muito importante sabermos quais as qualidades daquela mulher como mãe. Que capacidades teve ela para proteger os filhos, para lhes proporcionar uma sensação mínima de conforto?”. Inclusive exemplifica isso através da história apresentada no filme de Roberto Benigni “A vida é bela”, em que o pai consegue poupar o filho de alguns horrores do campo de concentração apresentando-lhe as situações a partir de um prisma lúdico.
Alice começou a pensar que pouquíssimas coisas eram realmente impossíveis.
Não havia muito sentido em ficar esperando ao lado da portinha
e então Alice voltou em direção à mesa, com esperança de poder encontrar outra chave sobre ela ou,
quem sabe, um livro de regras para ensinar as pessoas a encolherem.
(Alice no País das Maravilhas, Lewis Carrol) [4]
Mesmo em meio ao horror que a mãe era submetida durante as visitas do velho Nick (seu sequestrador e carcereiro), ela tentava proteger Jack, mantendo-o distante do seu olhar, colocando o menino em um armário fechado (adaptado em seu interior para parecer um berço). Mas à medida que o menino crescia, crescia também o interesse do carcereiro nele, logo era necessário agir. Enquanto Jack lia “Alice no País das Maravilhas” em voz alta, a mãe pensava em como criar meios para lidar com o seu “impossível” particular, que era sair do quarto.
Mas como não enlouquecer nesse processo? Segundo o psiquiatra Augusto Carreira [3], há um conceito muito importante da Psicologia que deve ser trazido à tona: a resiliência, que é “a capacidade que algumas crianças e adultos têm para suportar embates sem ficarem destruídos”. A resiliência é o resultado de uma combinação de fatores que visa à proteção do sujeito. Os resultados positivos na forma como a criança percebe o mundo, mesmo em meio a adversidades, são conseguidos, geralmente, na junção de características individuais e das relações que são estabelecidas com o ambiente social (por mais restrito que esse seja). “É a interação entre biologia e o ambiente que constrói a capacidade da criança para lidar com a adversidade e superar ameaças para o desenvolvimento saudável” [5].
Uma pesquisa realizada no Centro de Desenvolvimento da Criança em Harvard identificou um conjunto de fatores que predispõe as crianças a resultados positivos em face a adversidades significativas. Esses fatores incluem [5]: construir um senso de auto eficácia e controle; proporcionar oportunidades para fortalecer habilidades adaptativas e capacidades de autorregularão; e encorajar fontes de fé, esperança e tradições culturais.
No filme, a mãe cria uma rotina para a criança construir um senso de organização e controle, conta-lhe histórias com frequência, constrói brinquedos mesmo com os poucos objetos que possui (p. ex. a cobra-feita-de-casca-de-ovo), encoraja-o a escrever e desenhar suas próprias histórias, faz exercícios diariamente no espaço diminuto do quarto para que ele possa crescer com o corpo e a mente minimamente saudáveis. Por isso, Jack consegue ser feliz dentro do quarto, acreditando, por exemplo, que com o seu cabelo grande pode ser tão forte como o personagem bíblico Sansão.
Ma: uma parede tem dois lados. E nós estamos do lado de dentro e o Rato está do lado de fora.
Jack: no Espaço Sideral?
Ma: Não, no mundo! É muito mais perto do que o Espaço Sideral.
Jack: Eu não consigo ver o lado de fora.
Mas, Jack vai crescer e logo fará questionamentos sobre a realidade que lhe é apresentada, mesmo que permaneça ali para sempre. E isso acontecerá porque questionamentos são parte da nossa natureza. Questionamos sobre a nossa existência, sobre o propósito da vida, sobre a morte. O que nos diferencia do Jack e seus questionamentos é que não temos um Deus ao lado para nos dar respostas concretas, mas Jack tem a figura de um deus, no conhecimento que a mãe tem da vida lá fora, e de um demônio, que o é Velho Nick, o homem que os mantem no cativeiro, e que imprime as piores impressões em seu imaginário e em sua realidade.
Quando eu era pequeno, eu só sabia de coisas pequenas. Mas agora eu tenho 5 anos e sei de tudo. (Jack)
Para escapar do cárcere, a mãe teve que descontruir toda a realidade que ela havia criado para o filho, porque o menino era necessário para a estratégia de fuga. O impossível, tal qual aconteceu em Alice, só seria refutado se houvesse um meio de fazê-los sair da caixa fechada e a prova de som que era o quarto. Jack era o meio. Assim, o menino de 5 anos, que não conhecia o universo além do seu quarto, passou a compreender, aos poucos, que havia mais gente no mundo, além dele e da mãe, que árvores e animais existiam fora da televisão e eram reais.
Uma das cenas mais comoventes do filme é o primeiro olhar do Jack, interpretado com maestria por Jacob Tremblay, para o mundo do lado de fora do quarto. Cada detalhe é captado pela criança, desde o sol, o vento, as folhas, as expressões dos rostos das pessoas, o cheiro até a sensação de velocidade e urgência. De certa forma, o quarto era uma prisão, mas também um abrigo. Estar do lado de fora significava, também, cortar o cordão umbilical com a mãe, já que ele terá outras referências, percorrerá novos espaços.
No filme, a transição entre os dois mundos é mais complexa para a mãe (interpretada de forma tocante por Brie Larson), já que por muito tempo ela manteve-se viva para garantir a proteção do filho. Ao sair do quarto, de certa forma, seu maior propósito de vida lhe foi tirado. Jack agora tinha avós, parentes e ela podia finalmente descansar ou cair. O que vemos na segunda parte do filme é um retrato profundo de alguém com transtorno de estresse pós-traumático.
Ma: Você vai amar isto.
Jack: O quê?
Ma: O mundo.
Acompanhar a visão de Jack sobre o mundo nos faz refletir sobre a fluidez das nossas vidas. Como descreveu Bauman em Vida Líquida, a velocidade com que transitamos entre o amor e o desapego, entre o essencial e o desnecessário provocou um aumento exponencial do lixo, daquilo que existe em nossos mundos, mas que perde o valor facilmente. Ao final, o que nos define como pessoa? O que precisamos para viver? O que nos torna menos ou mais suscetível a sofrer as consequências das adversidades? Talvez nos falta tempo para responder a essas questões, a abundância do mundo de fora fecha-nos em quartos cada vez mais homogêneos e escassos de sentido.
REFERÊNCIAS:
[2] WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations (Philosophische Untersuschungen). Tradução de G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1958.
[3] http://www.publico.pt/temas/jornal/os-filhos-de-fritzl-estao-ca-fora-e-agora-261274
[4] CARROLL, Lewis. Alice (Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá). Ilustrações John Tenniel. Editora Zahar.
[5] http://developingchild.harvard.edu/science/key-concepts/resilience/
FICHA TÉCNICA
O QUARTO DE JACK
Título Original: Room
Direção: Lenny Abrahamson
Roteiro: Emma Donoghue
Direção de Fotografia: Danny Cohen
Elenco Principal: Brie Larson e Jacob Tremblay
Ano: 2015