A violência não está em noticiários sangrentos e apelativos; a violência está aqui, ao seu lado, nesse momento, tão próxima que você e ela brutalmente se esbarram e você sequer percebe. Seja na legítima luta por terras indígenas que têm suas demarcações cada vez mais raras em virtude dos interesses do agronegócio; seja por seu vizinho, ou seu amigo, ou sua irmã, ou você que é homossexual e, apenas por isso, tem que carregar o fardo do medo de ser morto por uma sociedade patriarcal, heteronormativa e machista; seja porque as garantias que o Estado lhe dá são quase nenhuma para uma vida digna. Tudo isso é violência e merece ser abordado. Aquilo para o qual não se consegue olhar está olhando para nós o tempo todo com o dedo no gatilho do revólver apontado para o alvo que somos você e eu. Não nos acostumemos jamais com as barbáries nossas de cada dia.
Ariana Campana Rodrigues
Na madrugada de 17 de julho de 2015, em Dourados, dentro de uma caminhonete VW Amarok, a travesti “Érica”, tratada pelo discurso midiático como Israel Pereira Alcântara – e então aspeada no feminino – foi morta com três disparos à queima-roupa pelo garagista Marlon. Um disparo pelas costas nas costas, outro no peito e outro no rosto. O rosto é um dos lugares privilegiados para que simbolicamente a homofobia, a transfobia e o machismo marquem seus territórios. Eis a terra mais transfóbica do centro-oeste e a que mais mata homossexuais, não esquecendo as estatísticas que nos fizeram receber a primeira Casa da Mulher Brasileira.
Em solo sul mato-grossense esse é um dos indicadores da intolerância e do ódio que verte seu sangue, tal como se marca a ferro e a fogo o gado, mas, é claro sem que esses objetos corporificados e generificados no feminino, como travestis, gays, transexuais, mulheres tenham o valor que o gado assume por aqui.
Nossas lideranças no ranking das barbáries não se esgotam aí. Não ganhamos apenas no fuzilamento de corpos performatizados na transversalidade do que restritamente atribuímos ao dueto sexo/gênero. Se falar de gênero é falar de etnia, raça e classe social, como nos ensina e motiva Judith Butler, desde o dia 14 de junho de 2016 a bancada da Bala, do Boi e da Bíblia, com a passagem famigerada de Bolsonaro pelo Estado e suas falas de intolerância, os Kaiowá e Guarani foram alvejados por balas em verdadeiras emboscadas. É claro, nada que a mídia impressa e televisa local e nacional aborde de maneira menos compromissada com este seleto seguimento. São vários tiros pelas costas, em emboscadas de quem tem seus parcos meios de transportes queimados, com as estradas fechadas, inviabilizando o acesso ao auxílio e ao socorro. Há um boato de que não havia sangue no hospital público aos indígenas feridos, só a eles. Os tiros são no abdômen e no tórax, indistintamente em crianças e em adultos de ambos os sexos/gêneros. O que noticiam as mídias globais nacionais? Os policiais machucados de terras “invadidas” por índios vagabundos, alcóolatras, preguiçosos e etc. Eis uma vez mais os aprendizados de Judith Butler em “Marcos de Guerra: las vidas lloradas….” para quem há vidas mais dignas de serem choradas e honradas do que outras. Aqui se diz, sem pudores que “Índio bom é índio morto” e/ou “um boi vale mais que um índio“.
A invisibilidade midiática, a seletividade das informações veiculadas, a desumanidade como são retratados os corpos das vítimas das diferentes violências – que tem em comum o ódio contra a diferença – nos faz pensar, para além da ideologia machista, heteronormativa, racista e sexista que predomina na sociedade brasileira, todo o aparato econômico por detrás de tantos atos de barbárie. A violência contra gays, travestis, mulheres, indígenas no Mato Grosso do Sul anda de mãos dadas com um capital econômico que dita a política do Estado. Tudo isso nos faz remontar à história do Brasil e pensar que a sociedade descrita com densidade por diferentes autores da literatura brasileira em tempos pretéritos, marcado pela política dos coronéis, dos senhores de engenho, como o contexto narrado por Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala”, ainda não ficou no passado. O passado encontra eco e existência, por meio de práticas, discursos e representações, nas relações sociais sul-matrogrossenses. Numa representação nacional, que diz que o Mato Grosso do Sul, por meio do agronegócio, é o principal responsável pelo desenvolvimento do país – alguns afirmando que “literalmente” é a região que leva o país nas costas – , esquece-se à que preço tal “desenvolvimento” é tão ufanado. Um desenvolvimento à qualquer custo: à custo do Cerrado, bioma já em risco, à custo das populações indígenas, povos originários, que expulsos de suas terras, tem sua forma de vida devastada pela ganância dos grandes latifundiários. Ganância sem fim, que invisibiliza, violenta, cala, confina e mata. Cala cotidianamente. Mata se for preciso, mata como se abate um animal, mata com a certeza da impunidade, de uma conivência coletiva, da morosidade das instituições que deveriam resguardar, mas que se fazem calar diante do poder econômico e político ideológico do agronegócio.
As notícias sobre os feridos e mortos indígenas seja nas disputas de terra, seja nas demais violações de direitos ecoam com certa frequência entre nós, sob as bênçãos de um Estado omisso porque racista. Existência que nem sempre é falada, por que falar é dar vida, é denunciar, é colocar em evidência o que é querem esconder. Mas que nem sempre é velada. Em alguns casos, é preciso manter a violência de modo disfarçado e silencioso. Em outros é preciso publicizar as barbáries para tornar o ato hediondo um caso exemplar – veja o genocídio dos Guarani e Kaiowá. Em se tratando de violências contra LGBTs, ninguém parece estar à salvo: travestis, lésbicas, gays, são permanentemente rechaçados. Há mais ou menos um mês, a mídia alternativa[1] noticiou o caso de um casal homossexual expulso de lanchonete em Dourados a base de socos e tiros. O fato em si já causa perplexidade, mas não para por aí. A perplexidade aumenta ainda mais quando nos defrontamos com a indiferença dos outros clientes e funcionários do estabelecimento: diante dos “socos e chutes”, não houve quem interviesse! Assistimos a mesma conivência coletiva quando os comércios das cidades se fecham para venda de alimentos aos povos indígenas nos momentos de acirramento das disputas de terra. Atos que se consubstanciam enquanto estratégias práticas de um racismo de Estado voltado ao genocídio desses povos.
Em nosso entender, essa mistura de silenciamentos, indiferenças, medos e cumplicidades revelam muito das representações correntes na sociedade dourandense e que sustentam a ideologia da violência. Algumas imagens são icônicas desse imaginário: a figura do desbravador/pioneiro (aqui muito associada aos migrantes do sul do Brasil que colonizaram a região), a figura do homem do campo (rústico, másculo, macho e “sistemático”), a figura do agroboy (jovens que pertencem às famílias ligadas ao agronegócio e que fazem questão de evidenciar o capital econômico e simbólico de sua condição). Todas essas imagens realçam e refletem o caráter machista dos imaginários e relações engendradas nessa região do Estado e que se, em si mesmas, não dão conta de todos os aspectos das violências que mencionamos, revelam por seu turno uma dimensão importante dessas relações violentas: a dominação masculina – conforme nos aponta Bourdieu.
Em cena a necessidade de afirmar a masculinidade pelo uso da força, pelo abuso de poder, pela violência, pelo sadismo das relações que estabelece e busca estabelecer. Se a fala é um pressuposto de humanidade – lembrando que entre os Guarani e Kaiowá a fala é um dos princípios fundamentais de constituição da pessoa – há que se negar por meio da violação de direitos, da negação da cidadania e do acesso aos elementos/aspectos fundamentais da existência que constituem o jeito de ser de um povo, grupo, indivíduo, tudo o que possibilite que ele se torne pessoa, sujeito, humano. Portanto, uma das outras faces das diferentes violências contra grupos minoritários presentes no Estado é justamente a despersonalização, descaracterização, desumanização dos sujeitos e grupos. Aí passamos a entender o que já nos é comum e não deveria sê-lo; o confinamento dos Guarani e Kaiowá, o genocídio historicamente praticado contra eles, o homicídio violento de travestis, o espancamento de homossexuais, o estupro de mulheres, a violência no trânsito, a prática dos rachas e etc.
A monocultura de grãos empobrece não só o solo, mas produz uns tantos desertos para a invenção e expressão dos diferentes modos de viver e de ser. Uma das muitas questões para as quais buscamos construir uma resposta: até quando? Embora pareça que a sequência de barbáries e de violações de direitos não tenha fim, estamos acordados e apostamos que o coro dos que sabem que é urgente (re)aprender a viver (guiados pela pluralidade de sentidos) ganha novas vozes.
Sobre os autores
Simone Becker: graduação em direito (PUC-PR), mestrado em Antropologia Social (UFPR), doutorado em Antropologia Social (UFSC), professora da graduação em direito e pós-graduações em Antropologia Sociocultural e Sociologia da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados). É contadora de histórias, pesquisadora dos/nos núcleos de pesquisa DIVERSO e TRANSES, alquimista, pescadora e costuradora das pa-la-vras.
Esmael Alves de Oliveira: graduação em filosofia (UFAM), especialização em Antropologia (UFAM), mestrado em Antropologia Social (UFAM), doutorado em Antropologia Social (UFSC) com estágio doutoral na Universidade Eduardo Mondlane (UEM/Moçambique), professor do curso de graduação em Ciências Sociais e da pós-graduação em Antropologia da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados).
Catia Paranhos Martins: graduação em Psicologia, mestrado e doutorado em Psicologia (UNESP-Assis), professora do curso de Psicologia da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), docente da Residência Multiprofissional do Hospital Universitário da UFGD em Saúde Indígena e Atenção Cardiovascular.
NOTA:
[1] Entendida como mídia não oficial, ou seja, não vinculada às grandes redes televisivas/jornalísticas locais e/ou nacionais.