Spotlight – Segredos Revelados: quando a verdade se oculta na manipulação da fé

Com sete indicações ao OSCAR:

Filme, Diretor (Tom McCarthy ), Ator Coadjuvante (Mark Ruffalo), Atriz Coadjuvante (Rachel McAddams), Roteiro Original (Josh Singer e Tom McCarthy), Edição (Tom McArdle), Montagem 

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Porque não há coisa oculta que não acabe por se manifestar,
nem secreta que não venha a ser descoberta.
Lucas, 8:17, Bíblia

Esse filme apresenta a história real e recente de um grupo de jornalistas da cidade de Boston (EUA) que trouxe à tona denúncias de casos de abuso infantil por padres católicos. Esses casos foram encobertos por décadas tanto pela igreja quanto por uma série de instituições e grupos.  A história se passa em 2001, quando uma equipe de investigação denominada “Spotlight”, do principal jornal de Boston, Boston Globe, começa a juntar as peças de um monstruoso quebra-cabeças sobre abusos e omissões.

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A “Spotlight”, na época, era composta por quatro jornalistas: Robby Robinson (Michael Keaton), Michael Rezendes (Mark Ruffalo), Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams ) e Matt Carroll (Brian d’Arcy James). O trabalho de investigação minucioso realizado por essa pequena equipe resultou em um conjunto de reportagens que foi premiado com o Pulitzer (essas reportagens podem ser acessadas em [1]). Mas o maior impacto dessas matérias foi o esclarecimento dado à população (não apenas de Boston) sobre a situação abominável de abuso infantil, que era silenciada há décadas, o que provocou um novo posicionamento da igreja católica sobre o assunto e uma série de mudanças que se seguiram a partir disso.

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Em 2001, a Arquidiocese de Boston exercia um importante papel na cidade, e isso é trazido à tona no filme pela figura imponente do cardeal Bernard Francis Law e pela condução das cenas abertas, mostrando enfaticamente as catedrais durante as entrevistas realizadas ao ar livre. Os Estados Unidos, nesse ano, viviam sob o forte impacto do 11 de Setembro e a participação de membros das igrejas em programas locais com mensagens de esperança e fé eram frequentes. Assim, o Cardeal Bernard Law era uma estrela e estava constantemente nos programas de TV, seja trazendo alguma mensagem de esperança para a comunidade, seja interagindo com políticos sobre os mais diversos assuntos. Era inegável a força da igreja católica em Boston, assim qualquer investigação que trouxesse à tona casos que pudessem macular sua imagem deveria ser muito bem embasada, não havia espaço para fatos sem provas.

Para Justin Chang, crítico da Variety [2], um diferencial desse filme é que não há flashbacks de estupros ou passagens sensacionalistas para promover uma conspiração clerical sinistra por trás de portas fechadas. Há apenas o recolhimento lento e constante da informação, a comprovação meticulosa de palpites e pistas, seguida por um entendimento lento da abrangência do horror, tal qual ocorre quando os cientistas começam a inferir a escala que pode atingir uma determinada epidemia.  Os jornalistas começaram investigando a possibilidade de 13 padres estarem promovendo abusos infantis na cidade e terminaram com a comprovação assustadora de mais de 70 casos em Boston.

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O filme apresenta uma narrativa que explora em minúcias o trabalho da equipe na busca e sistematização das informações. É uma ode ao jornalismo investigativo. Além disso, a direção sensível de Tom McCarthy mostra como esse trabalho tão intenso pode provocar uma crescente mudança nas verdades construída por cada um deles ao longo da vida. São apresentadas, de forma sutil, essas mudanças, como a irritação em casa, a falta de vida social, a perda da fé na religião.  Agrega-se a isso a angústia de ter que manter um silêncio estratégico até que seja possível amarrar os pontos necessários para trazer à tona verdades tão duras.

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“É importante compreender que este não é apenas o abuso físico, mas também é o abuso espiritual.
Quando um padre faz isso para você, rouba-lhe a sua fé. ”
(Phil Saviano)

Nas entrevistas é que podemos acompanhar a narrativa a partir do ângulo de quem sofreu o abuso, de como essa situação provocou uma distância entre a pessoa que o sujeito poderia ser e a figura quebrada que se tornou. Segundo Smith e Segal (2013), “o abuso sexual infantil é uma forma especialmente complicada de abuso por causa de suas camadas de culpa e vergonha, pois além do dano físico que o abuso sexual pode causar, o componente emocional é poderoso e de longo alcance” [3].

Uma das vítimas apresentadas no filme (Phil Saviano), diz em uma das entrevistas que ele era uma criança de um bairro pobre, de uma família católica que se sentiu agraciada pela atenção que um sacerdote importante dava ao seu filho. Mas a atenção aos poucos foi mudando de perspectiva, deixando-o confuso, sem entender qual o limite que separava a atenção positiva de um ato criminoso, afinal a pessoa que estava lhe causando tanto sofrimento e conflito era um “representante” de Deus. Ele então diz: “Como você diz não a Deus?”.  Se crianças abusadas sexualmente já são atormentadas por vergonha e culpa, imagina quando seu algoz tem tanta representatividade em seu imaginário, como um pai, ou um representante da igreja.

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Temos duas histórias aqui: uma história sobre o clero em geral, e uma história sobre um grupo de advogados que transformou o abuso de crianças em uma indústria lucrativa.  Agora, que história você quer que escrevamos? Por que uma delas nós iremos escrever. ” (Robby Robinson)

Uma das questões que sempre estava em pauta durante a investigação era qual o momento certo de trazer as descobertas à tona. Quais informações eram necessárias para causar uma ruptura no sistema e não apenas gerar uma denúncia isolada de alguns padres, o que poderia ser um assunto mais facilmente esquecido. Muitas entidades estavam envolvidas no esquema de obstrução da verdade, desde os advogados que promoviam mediações sigilosas fora do tribunal com o intuito de manter o silêncio das vítimas, até os juízes que tiravam do alcance da população documentos comprometedores. Os padres acusados saíam de cena através de “licenças médica” e transferências para outras paróquias. Era uma cadeia de interesses gerando histórias de sofrimento e abandono, repleta de vítimas silenciosas, seja pela morte ainda jovem, seja pela vida continuamente assombrada pelo passado de abusos.

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De posse das informações e provas necessárias, a matéria foi escrita e na manhã do dia 6 de janeiro de 2002, os assinantes do Boston Globe receberam em suas casas o jornal com a manchete que dizia que a igreja tinha conhecimento há anos dos abusos infantis cometidos pelos padres. Em dezembro de 2002, o Cardeal Bernard Law, acusado de acobertar tais abusos, renunciou ao seu cargo na arquidiocese de Boston e pediu perdão a ” todos os que sofreram por minhas insuficiências e erros”.

O impacto dessas reportagens provocou, de imediato, a convocação por parte do papa João Paulo II de uma reunião com todos os cardeais americano. Depois disso, os bispos norte-americanos, com a aprovação do Vaticano, adotaram uma política de “tolerância zero”, de forma a melhor responder às alegações de má conduta sexual do clero, tornando obrigatória a denúncia dos abusos às autoridades (Conselho dos Bispos, 2002a [4], 2002b [5]).

Plante e Daniels (2004), do Departamento de Psiquiatria e Ciência do Comportamento de Stanford, abordam em seu artigo sobre esse tema a seguinte questão: se a porcentagem de padres católicos que abusam sexualmente de menores não é significativamente maior do que os percentuais de clero masculino de outras tradições religiosas que também pratica o mesmo tipo de abuso, então por que houve tanta atenção da mídia sobre a Igreja Católica? Para eles, há provavelmente uma variedade de razões, em síntese podemos elencar [6]:

  • Historicamente, a forma de agir da Igreja Católica nessas situações tem sido altamente defensiva e arrogante, ou seja, em muitos casos as vítimas e suas famílias não foram tratadas com compreensão e compaixão, e isso tende a provocar, de forma muito mais intensa, o sentimento de raiva e perplexidade das pessoas (de dentro e fora da igreja).
  • Ao contrário de outras tradições religiosas e a maioria das organizações nos Estados Unidos, a Igreja Católica não tem um processo administrativo de contratar, demitir e avaliar sacerdotes ou outros funcionários da Igreja. Bispos e outros superiores religiosos não são eleitos para seus cargos, estes cargos lhes são atribuídos. Portanto, se um determinado religioso em uma posição tão superior como um bispo faz más decisões sobre como gerenciar situações relacionados a padres problemáticos, o problema não será detectado em seu início e este pode vir a espalhar-se sem controle, como um vírus.
  • Além disso, segundo Cozzens, 2002 (apud Plante e Daniels, 2004), a Igreja Católica é a maior organização que opera continuamente no mundo, representando cerca de 20% dos 6 bilhões de pessoas no planeta. Ela também tem procurado ser a voz ética da autoridade moral por cerca de 2000 anos. Tem posicionamentos, muitas vezes, impopulares relacionados a normas sobre o comportamento sexual associado ao uso de contraceptivos, a atividade sexual entre pessoas não casadas, homossexualidade etc. Ao contrário de outras religiões, adota o celibato sacerdotal e votos de obediência e pobreza. Assim, questões associadas a abuso sexual nesse contexto provoca uma perplexidade ainda maior.

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Ao final, temos um filme que conta uma história densa, mas sem apelar para exposições bizarras. No entanto, mesmo com esse tom mais jornalístico e menos passional (ainda que sensível), em momento algum a crítica sobre o posicionamento da igreja em relação aos abusos foi atenuada. Por isso, o momento em que uma das vítimas fala, em uma entrevista por telefone, que “eu ainda me considero um católico” torna-se tão emblemático. E quando o repórter questiona o motivo, recebe como explicação: “Bem, a Igreja é uma instituição, ela é feita por homens, eles passam, mas minha fé é eterna”.

REFERÊNCIAS:

[1] https://www.bostonglobe.com/news/special-reports/2015/10/26/bcom-spotlight/Lpj4dYVIppnWLVqEzyr5bK/story.html

[2] http://variety.com/2015/film/reviews/spotlight-review-michael-keaton-tom-mccarthy-venice-film-festival-1201580933/

[3] ROBINSON, Lawrence;SMITH, Melinda; SEGAL, Jeanne. Emotional and Psychological Trauma.Symptoms, Treatment, and Recovery. Disponível em: http://www.helpguide.org/mental/emotional_psychological_trauma.htm

[4] United States Conference of Catholic Bishops. (2002a). Charter for the protection of children and young people. Washington, DC: USCCB.

[5] United States Conference of Catholic Bishops. (2002b). Essential norms for diocesan/eparchial policies dealing with allegations of sexual abuse of minors by priests or deasons. Washington, DC:USCCB.

[6] PLANTE, T. G., DANIELS, C. “The Sexual Abuse Crisis in the Roman Catholic Church: What Psychologists and Counselors Should Know”, Pastoral Psychology, Vol. 52, No. 5, May 2004 (2004), pp. 381-393. Available in PDF format at Psychology Today: https://www.psychologytoday.com/sites/default/files/attachments/34033/pp3article.pdf

Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016

FICHA TÉCNICA DO FILME: 

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SPOTLIGHT: SEGREDOS REVELADOS

Direção: Tom McCarthy
Elenco: Michael Keaton, Rachel McAdams, Mark Ruffalo John Slattery;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 12

Doutora em Psicologia (PUC/GO). Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Ciência da Computação pela UFSC, especialista em Informática Para Aplicações Empresariais pela ULBRA. Graduada em Processamento de Dados pela Universidade do Tocantins. Bacharel em Psicologia pelo CEULP/ULBRA. Coordenadora e professora dos cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação do CEULP/ULBRA.