Patrícia Orfila: patriciaorfila@uft.edu.br
Este texto foi escrito pensando especialmente nas meninas e mulheres que se sentem atormentadas por dúvidas a respeito da maternidade, mas, é preciso pontuar que falo do lugar de mulher branca, bissexual e de classe média, que tem consciência da branquitude como lugar de privilégio e que muitas das escolhas realizadas a partir deste lugar específico, ainda estão longe de ser opções concretas para a maioria das mulheres negras da classe trabalhadora.
Se seguirmos a lógica do essencialismo de gênero, que atribui qualidades inatas a mulheres e homens, ter tantas dúvidas sobre a maternidade, já representa em si um sinal de alerta, pois, se fosse algo tão natural, como pregam os religiosos, não deveria ser um tema envolto de polêmicas e sofrimentos. A obra “Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno”, de Elisabeth Badinter (1985), nos traz subsídios para compreendermos como o amor materno não é inato à natureza feminina e que faz parte de um comportamento social que varia ao longo da história, da geografia e dos costumes.
A necessidade de demonstrar que se leva uma vida dentro da normativa social, o medo de ser chamada de louca, o desejo de ser aceita pela comunidade ou de ter o afeto e a proteção masculina, leva mulheres a se vigiarem mutuamente, a julgarem-se e a competirem entre si.
Todas fomos tão inundadas pelos dispositivos amorosos e maternos, um deles simbolizado na metanarrativa do “sagrado amor de mãe”, que quando uma mulher se diz feliz sem filhos, irrita absurdamente o coletivo. Já se perguntaram o porquê essa felicidade incomoda tanto? Já pararam para pensar no sofrimento que poderia ter sido poupado, se pudéssemos ter tido contato com narrativas de mulheres insurgentes, para além da maternidade, caso nossa sociedade não fosse tão conservadora e silenciasse ou estigmatizasse essas mulheres nas normas da estrutura patriarcal?
A socialização feminina é uma construção histórica, cultural e política e precisa ser amplamente discutida, portanto, quando mulheres relatam suas experiências divergentes, abrem possibilidades de conhecimento e partilha com outras que buscam informações sobre o tema. Precisamos construir condições para que se sintam livres para negar a maternidade e aprenderem com outras mulheres, como a vida pode ser gratificante sem ela.
Para grande parte das mulheres não é fácil expor suas experiências pessoais e contar as pressões sociais que sofreram, logo, aconselhar outras mulheres a reagirem à maternidade compulsória e até mesmo a repensarem o estatuto do casamento, deveria ser algo tão normal quanto o contrário. Não deveríamos subestimar a inteligência das mulheres e sim termos liberdade de dialogar com as que se sentem inseguras com a ideia de se tornarem mães e sobre a obrigatoriedade social do casamento. Lembrando que a duração de um matrimônio depende bastante do comportamento feminino, pois são as mulheres sempre a fazer as maiores concessões e algumas pagam com a própria vida, conforme comprovam as estatísticas de feminicídio.
As religiões continuam a forjar o futuro da maioria das mulheres e devemos levar em conta que podemos nos enganar muito sobre o destino de muitas delas, pois o futuro de nenhuma está predeterminado. A educação de base feminista precisa fazer parte das novas formas de socialização nas escolas e no ambiente familiar, incentivando a escrita e as narrativas de mulheres sem qualquer tipo de censura, incluindo o tratamento do aborto como questão de saúde pública.
Podemos ver as expressões de felicidade das outras mulheres diante da maternidade e nos solidarizarmos com elas, mas isso não pode ser um fator que impeça que outras possam falar abertamente sobre o desejo contrário, mostrando que a vida sem filhos pode ser tão agradável quanto a vida com eles.
Mães se sentem atacadas quando outras mulheres tornam público o desejo de não procriarem, argumentam que não é necessário deixar tão explícita a questão, pois isso fomenta o preconceito contra elas e as crianças. Estaríamos, então, prejudicando mães e crianças quando abordamos sobre a ditadura da maternidade? A busca por conhecimento é o princípio básico de uma educação libertadora e no acolhimento de meninas e mulheres que podem se sentir inadequadas aos padrões sociais.
Medo da solidão? Nem filho e nem marido aplacam a solidão, sabemos de muitas histórias ao nosso redor que comprovam isso. É possível nos sentirmos muito solitárias mesmo fazendo parte de uma grande família. Talvez, algumas que me leem não tenham coragem de assumir que se sentem deprimidas mesmo cercadas de filhos.
A solidão só é insuportável se não nos propomos a enfrentá-la e só é dilacerante se deixarmos a opinião pública guiar nossos passos. A solidão só massacra se não tolerarmos a nossa própria companhia; ademais, o tema da solidão é um clássico da filosofia, faz parte da nossa eterna contradição humana.
Quantas e quantas vezes mulheres são chamadas de egoístas pelo fato de terem escolhido a não maternidade? E por que essas mulheres deveriam carregar culpa por dispor de tempo para cuidar de si? Por que estão erradas em não quererem adotar? Por que são arrogantes se apreciam viajar? Por que são estranhas se preferem estar sozinhas? Por que são egoístas se gostam de se presentar? Por que são inadequadas se resolvem não serem escravas de um homem?
O fim de semana de uma mulher solteira e sem filhos pode ser muito saudável e satisfatório, pois, poder fazer escolhas é um privilégio, como dormir até mais tarde ou passear na praia, limpar a casa ou andar de bicicleta, trabalhar ou descansar, afagar o gato ou molhar as plantas. Talvez o egoísmo esteja no oposto, imaginar que filhos sejam a garantia de companhia no envelhecimento.
Ainda podemos falar sobre a maternidade redentora, aquela que aos olhos do senso comum, torna a mulher um ser humano iluminado, agora que adquiriu a autoridade por gerar uma vida no seu ventre e até mesmo de cura para aquelas que ainda não tiveram filhos.
Inveja da maternidade? É possível se sentir ótima sem engravidar, parir e cuidar de filhos, talvez o único problema seja não falarmos sobre o assunto sem tabus e com mais frequência.
Mas por que inundar as mulheres com imagens negativas sobre o envelhecimento? Será que não podemos sonhar com uma velhice satisfatória, com saúde, acesso a cultura e o mínimo de dignidade? Também é possível acreditar no casamento, mas não apenas nesse casamento tradicional; acreditar no amor, mas não nesse afeto submisso, que apaga a mulher e exalta o homem; acreditar na monogamia, não na monogamia baseada na opressão machista; acreditar nas diversas formas de família, não apenas na heteronormativa e até na vontade de ser mãe, mas não de forma compulsória e que coloca as mulheres em uma corrida insana contra o tempo.
A socialização feminina também motiva mulheres a engravidarem, com o objetivo de induzir casamentos ou até mesmo para mantê-los. A hipervalorização das características fisiológicas das mulheres, centrada no aspecto da reprodução, coloca as mulheres como meras reprodutoras, incapazes de tomar decisões racionais por razões hormonais, sempre preocupadas com o período fértil e cuja “voz da natureza” surge como um imperativo essencialista, que pesa bem mais para as mulheres do que para os homens.
Em algum período da vida, elas podem ser vorazes na busca de parceiros sexuais e por isso serem consideradas verdadeiras caçadoras, mas com o tempo descobrem que elas próprias eram a caça, pois embora valentes e cheias de vontades, nunca conseguiam penetrar, tampouco pertencer aos territórios masculinos. Mulheres assertivas e que vão atrás das suas próprias conquistas podem amargar uma busca eterna por parceiros de vida, tentando encaixá-los em amplos aspectos dos seus interesses pessoais e políticos, enquanto esses mesmos homens só as enxergavam como parceiras sexuais.
Para a psicóloga Vasleska Zanello, “os homens aprendem a amar muitas coisas, enquanto as mulheres aprendem a amar os homens” (ZANELLO, 2018, p.269), uma boa parte delas passa grande parte da vida buscando parcerias masculinas, que podem nunca encontrar, sobretudo no campo intelectual. A socialização masculina acontece no formato de clubes onde mulheres não são bem-vindas e quando entram servem meramente de objetos sexuais. Quando feministas fazem campanhas contra o assédio sexual, a favor da legalização do aborto e mostram dados reais sobre feminicídio são acusadas de misandria, por homens que se sentem ameaçados, isso apenas nos mostra que o machismo e a misoginia são problemas estruturais referentes ao patriarcado.
Há quem diga que mulheres com muita autonomia são infelizes por suas escolhas divergentes, nada mais salutar do que elas próprias narrem suas histórias. Devem escrever para aquelas que não sonham com o status de procriadoras e cuidadoras; para aquelas que se sentem desamparadas pela religião, pela família, pela escola e pelo Estado; escrever simplesmente porque gostariam de ter lido sobre o assunto quando eram elas as que tinham dúvidas e destacar que num planeta com 7,5 bilhões de habitantes, incentivar a maternidade compulsória é um grande contrassenso. Por esse e tantos outros motivos incômodos, meninas e mulheres com muitas dúvidas sobre a maternidade deveriam optar por não terem filhos.
O texto enviado pela cronista Leila Guerriero a escritora Lina Meruane, autora do livro Contra os Filhos, é o desfecho deste artigo: “Nunca me comoveu a ideia de parir. Ainda me diverte o assombro que as palavras não quero produzem. Há aqueles que elaboram um consolo (Bom, logo a vontade vem), ensaiam suspeitas (talvez ela não possa e diz que não quer) ou se zangam (você não pode ir contra o instinto materno). Meu caso é mais simples. Não quero. Nunca quis. Não tenho vontade. Nem sequer penso nisso todos os dias. Diria que nem sequer penso nisso todos os anos.”
Referências:
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
MERUANE, Lina. Contra os filhos. Tradução Paloma Vidal. São Paulo: Editora Todavia, 2018.
ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos. Cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.