Tarsila de Níchile: tarsiladenichile@gmail.com
Santina Rodrigues: santina.rodrigues.oliveira@gmail.com
Na sociedade em que vivemos hoje ser ou não ser mãe ainda é um tabu quase proibido de se questionar. É claro que algumas mulheres e homens podem contestar, mas a realidade é que a maior parte da sociedade, ao menos a brasileira e não só, enaltece a maternidade como destino natural da vida de uma mulher, o que pode ser visto na mídia, em comerciais com mulheres carregando seus lindos bebês no colo; ou nos finais de novela que apresentam casais formados e as mulheres grávidas; por fim, em famílias e entre amigos que normalmente perguntam: Quando virá o primeiro filho? E o segundo? Ou ainda quando lançam comentários diante de uma mulher que tem uma leve barriguinha: Está grávida de quantos meses? Ainda que muitas vezes elas possam não estar grávidas ou sequer pensando nisso…
Estamos envoltos por uma cultura patriarcal que, de forma geral, pressiona para que todas as mulheres sejam mães e ameaçam as que não são com mensagens diretas ou subliminares do tipo: “Você só saberá o que é ser mulher de verdade quando for mãe”; “Se você não for mãe será uma mulher incompleta”; “Se você não tiver filhos irá se arrepender”; “Sem filhos quem cuidará de você na velhice?”; Por fim, a ameaça final associada ao esgotamento biológico: “Daqui a pouco seu relógio biológico vai tocar e você vai querer ter filhos e, se demorar demais, não terá mais tempo de gerá-los”. E por aí se vão as pressões implícitas (ou explícitas?) do culto à maternidade que aliás, vêm com frequência das próprias mulheres, inconscientes que estão de uma identificação sombria com o primado patriarcal.
É claro que a maternidade é algo de suma importância para a preservação da espécie humana, sem ela nenhum de nós estaríamos aqui e a sociedade fatalmente desapareceria. E é claro, também, que muitas das mulheres experimentam momentos de felicidade sendo, entre outras coisas, mães. Mas, podemos questionar se a maternidade deveria continuar sendo pensada como destino irrefutável para todas as mulheres, independentemente de sua subjetividade. E este é o objetivo do presente artigo, afinal, nem toda mulher deseja ser mãe. No Brasil, por exemplo, segundo o artigo online da revista Bem Estar, o IBGE levantou que o arranjo familiar de casais sem filhos correspondia em 2014 a 19,9%, ou seja, 5,2% maior do que em 2004. Além disso, nem todas as mulheres podem ser mães biologicamente, e assim vemos as clínicas de fertilização terem um aumento anual no mundo da ordem de 9% (FERNANDEZ, 2019). Por fim, nem todas as que se tornam mães se sentem realizadas com a sua experiência de maternidade, como é relatado no livro “Mães Arrependidas”,
de Orna Donath (2017). De qualquer forma, as imposições culturais valem para todas as mulheres e cabe a cada uma perceber como são afetadas e como lidar com essas exigências sociais.
A maternidade, enquanto tema arquetípico, faz parte, além da consciência coletiva, também do inconsciente coletivo. Esse, por sua vez, possui conteúdos e modos de comportamento similares em toda a parte e em todos os indivíduos e tem a forma de categorias herdadas, as quais Jung chamou de arquétipos. Ele referiu-se aos arquétipos, também, como imagens universais, que possuem uma infinidade de aspectos, dentre eles o fato de existirem desde os tempos mais remotos, ressurgindo espontaneamente, sem a influência de uma transmissão externa. Entretanto, Jung esclarece que uma imagem primordial tem o seu conteúdo definido mais conscientemente a partir da experiência vivida de cada um.
A psique coletiva, em parte de forma inconsciente e em parte de forma consciente, definiu culturalmente o corpo da mulher pela capacidade de conceber filhos ou não, a qual é considerada a essência de sua vida e a justificativa para sua existência, conforme os cânones do primado patriarcal. (Cf. DONATH, 2017, p. 27). No livro “Mães Arrependidas” (2017, p. 28), essa autora diz: “presume-se que a transição para a maternidade se deve estritamente ao desejo da mulher de experimentar seu corpo, seu ser e sua vida de uma nova maneira, preferível à anterior”. Ela continua, refletindo sobre o que a psique coletiva promete para a futura mãe: uma feminilidade madura, uma oportunidade de evolução, um sentimento de pertencimento, uma visita a sua própria infância, a oportunidade de corrigir os erros de sua criação e reforçar os aspectos positivos, a criação de vínculos mais profundos com seu parceiro, a possibilidade de ela vivenciar o amor incondicional, o fim da solidão, um envelhecimento respeitoso e até uma forma de escapar a um hipotético presente sem sentido. A autora também toca na sombra da psique coletiva, no que não é abertamente falado, quando menciona sobre como as mulheres que não são mães são julgadas de forma crítica, independentemente dos motivos que tiveram para não viverem a maternidade, seja por viverem sozinhas e não escolherem ser mães solteiras; seja por terem limitações econômicas, físicas ou psíquicas; ou mesmo por viverem com um parceiro que não deseja ser pai. Enfim, seja lá por qual motivo for, há sempre um olhar de soslaio, uma inquietação no ar, um questionamento retido ou declarado direcionado à mulher que não se tornou mãe. (Cf. DONATH, 2017, p. 29).
Naturalmente, as mulheres que são “mães de ninguém” também estão imersas na psique coletiva, sendo levadas a sentir e a questionar não só a si mesmas, como também as demais, sobre esse tema. O termo “mães de ninguém” tem o intuito de alterar a linguagem relacionada às “mulheres que não são mães”, que já traz uma carga negativa e depreciativa como se algo que fosse natural às mulheres não fosse cumprido por elas. As “mães de ninguém” buscam a adaptação ao meio social, tentando cumprir exigências e opiniões, internas e externas e, para isso, buscam ativamente criar uma determinada personalidade dentro deste contexto, a qual tenta e pode vir a convencer aos outros e às vezes até a si mesmas de que são mesmo daquela maneira socialmente pré-definida.
Essa criação que cada pessoa faz ao longo do seu desenvolvimento, principalmente na primeira metade da vida, Jung chamou de persona: uma máscara constituída conforme os ideais normativos da consciência coletiva, que serve para nortear a relação de cada indivíduo, particularmente, com os objetos e espaços sociais externos. Mas, como alerta Jung, a persona não condiz integralmente com a essência da personalidade individual. Ou seja, ela raramente abarca quem a pessoa realmente é como um ser mais integral (Cf. JUNG, 2013, p. 426).
Pois, conforme ele esclarece, a persona é uma máscara da psique coletiva, que aparenta falsamente uma individualidade, construída com base no que as pessoas acham que são e como elas gostariam de ser vistas pelos demais para se sentirem seguras e amadas. Entretanto, a consciência egóica do indivíduo pode se identificar com a persona, apesar de ela não ser a verdadeira individualidade. Isso pode ser percebido de forma indireta nos conteúdos contrastantes e compensadores do inconsciente que aparecem nos sonhos e nas falhas de linguagem, por exemplo (Cf. JUNG, 2015, p. 47). Jung aponta ainda que:
O indivíduo não é apenas um ser singular e separado, mas também um ser social, a psique humana também não é algo isolado e totalmente individual, mas também um fenômeno coletivo. E assim como certas funções sociais ou instintos se opõem aos interesses dos indivíduos particulares, do mesmo modo a psique humana é dotada de certas funções ou tendências que, devido à sua natureza coletiva, se opõem às necessidades individuais. (JUNG, 2015 p.35, grifos do autor)
Tomando por base o argumento acima de Jung, podemos entender que quando as pessoas se identificam com a psique coletiva, elas tentam impor aos outros as exigências do seu inconsciente, pois assim ficam com o sentimento de uma validez geral, em função da universalidade da psique coletiva, ignorando as diferenças das psiques individuais (Cf. JUNG, 2015, p. 40). Nas palavras de Jung (2015, p.40) “Tal desprezo pela individualidade significa a asfixia do ser individual, em consequência da qual o elemento de diferenciação é suprimido na comunidade… As mais altas realizações da virtude, assim como os maiores crimes são individuais”.
Portanto, segundo Jung, quando há a identificação da pessoa com a psique coletiva só prospera no indivíduo o que é coletivo, e então, o que for individual torna-se reprimido, podendo se tornar algo destrutivo que adquire força por ter sido depositado inconscientemente na sombra. Isso porque a sombra é composta pelos aspectos que consideramos que não se encaixam na nossa persona, na imagem que gostaríamos de ter para atender às demandas coletivas. Ela abrange os aspectos que são considerados desagradáveis ou imorais pelo nosso ego, e que por isso mesmo, gostaríamos de fingir que não existem, por se referirem a nossas inferioridades e impulsos inaceitáveis, atos e desejos vergonhosos, ou talvez considerados assim, ao menos em parte, por não estarem de acordo com o que a psique coletiva entende como socialmente honroso e adequado (Cf. HOPCKE, 95-97)
Assim, apesar da imagem mágica que a psique coletiva impõe sobre a maternidade, e, embora uma grande parte das mulheres encontre realização no papel maternal, há também muitas mulheres que confundem seus reais desejos com os da persona que construíram, além de outras que preferem ser “mães de ninguém”, e até as que se arrependem de terem tido filhos. As ameaças dessa imagem idealizada às mulheres que não querem ou não podem ser mães biológicas, e o silêncio que ainda predomina entre nós sobre as ansiedades, angústias e sofrimentos relacionados à experiencia de uma maternidade real precisam ser trazidos à luz para que possamos refletir, não só como terapeutas, mas também como homens e mulheres.
Essa reflexão é feita para que nós, como seres individuais e coletivos simultaneamente, possamos ter a chance de perceber como nos sentimos e como nos colocamos no mundo a respeito desse tabu, assim como para que possamos ter maior consciência de como tratamos a nós mesmas, sendo mães ou não. Refletindo sobre esse tema, podemos elaborar algumas coisas: todos temos uma individualidade, pois a Natureza nos fez tão múltiplos quanto seres humanos existem e assim estamos abarcados pelo nosso inconsciente e consciente pessoais; todos estamos inseridos num contexto social e coletivo, em uma cultura e, por isso, estamos mergulhados no inconsciente e na consciência coletivos; assim, somos seres individuais e coletivos ao mesmo tempo e teremos situações em nossas vidas que o nosso ser individual entrará em conflito com o nosso ser coletivo.
Quanto mais percebermos que somos indivíduos inseridos em uma cultura, mais podemos trazer para a luz da consciência nossos aspectos que não se encaixam nos padrões coletivos e assim menos nos sentiremos ameaçados por eles. Dessa forma, trabalhamos no sentido da individuação, segundo Jung (2015 p.63-64) “de tornar-se um ser único”, cuja meta é “despojar o si-mesmo dos invólucros falsos da persona, assim como do poder sugestivo das imagens primordiais”.
Referências:
DONATH, Orna. Mães Arrependidas Uma outra visão da maternidade. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
FERNANDEZ, Maria; SEVILLANO, Elena G. O custo de ser mãe aos 40 faz prosperar uma bilionária indústria de reprodução assistida. El país, Madri, 22 jul 2019. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/19/actualidad/1563549009_803035.html#: ~:text=Aos%2040%20anos%2C%20cai%20para,o%20neg%C3%B3cio%20da% 20reprodu%C3%A7%C3%A3o%20assistida. Acesso em: 26 dez 2020
HOPCKE, Robert H. Guia para a obra completa de C.G. Jung. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2012
JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
______Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11.ed. Petrópolis: Vozes, 2014. ______O eu e o inconsciente. 27.ed. Petrópolis: Vozes, 2015.