Fabiana Scoleso: fscoleso@uft.edu.br
Fabiana Scoleso é professora adjunta II do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins e coordenadora do Grupo de Estudos Globais e América Latina (GEGAL-UFT).
Sempre falam sobre a experiência de ser mãe como algo que todas deveriam ter. Como se uma mulher não estivesse completa se não engravidar ou “cuidar” de suas filhas e filhos. E a família cumpre papel central nesta suposta experiência de completude. Quando alguma mulher ousa em escrever ou diz algo sobre como é viver em uma outra possibilidade, sem filhos, ela passa para um outro status na sociedade. Quando ela ousa criticar a família patriarcal que vive de sugar as forças das mulheres e controlar seus corpos e suas ideias, são vistas como “loucas”, “anormais” e “histéricas”. Como poderia uma mulher viver fora dos padrões e dos parâmetros tão sublimes da família e da maternidade?
O primeiro ponto a se destacar em uma decisão como esta, a de não se acomodar em padrões, é dizer que nem sempre mulheres têm escolha. Não é fácil viver sobre a pressão da sociedade patriarcal e do seu reforço, sempre poderoso e sobrenatural, que é a religião. Para muitas são duas potências quase que intransponíveis. A família é o lugar de organização e controle da sexualidade e da capacidade reprodutiva da mulher exercida pelo homem como reafirmação dos valores morais do Estado. As leis sobre casamento, previdência social, aposentadorias e pensões são provas da condição da mulher dentro desta esfera. Não precisamos ir muito longe na legislação brasileira para encontrar registros sobre o como a mulher se tornava propriedade de um homem e de como quando ela o “traía” a ele pertencia o legítimo direito à defesa da honra o colocando, inclusive, na prerrogativa de cometer violência sobre ela. Não precisa muito para encontrar outros similares na história mundial ao longo da história.
É sobre quatro pilares (partes da totalidade sistêmica do capitalismo) que colocamos foco sobre a decisão de não ter filhos: o Estado, o capital, a família e a religião. Como já mencionado acima, o status da mulher na sociedade está sim definido por um Estado Patriarcal. Suas leis colocam as mulheres em condição de subordinação e subserviência. Demorou muito para que as mulheres superassem a educação como mera prática das “prendas domésticas”. Quando a mulher foi integrada ao mercado de trabalho foi força barata, flexível e sem qualificação, o que a colocava em situação de grande vulnerabilidade e abuso dos patrões, já que o medo de perder seus empregos e de não conseguir sustentar seus filhos era tudo que o que um patrão queria para super explorar suas capacidades sem limites. Como força de trabalho barata e precária e reprodutora do capital, foi se constituindo o que hoje chamamos de duplas e triplas jornadas de trabalho. Nem mesmo uma mulher sem filhos consegue se equiparar a um homem, porque a tarefa do cuidado (da casa, do homem, dos filhos, dos mais velhos) continua sendo seu destino e seu fardo.
Podemos falar também do ponto de vista da geopolítica. Países centrais e países periféricos também têm relações distintas sobre este tema. Ainda que não deixemos para trás as relações de classe e raça que estão absolutamente impingidas em todos os lugares do mundo, a relação de subordinação, dependência e desigualdade em que vivem os países periféricos, em especial os da América Latina e Caribe, torna a vida das mulheres ainda mais polivalente, multifuncional, consequentemente vulnerável e perigosa.
As “qualidades” e “virtudes” femininas são transformadas em meios para fazê-las mais super exploradas e violentadas. Ser mulher é o exercício da política do sofrimento cotidiano, e a função materna, quando rechaçada, a coloca em situação de maior mal estar ainda. Em muitas ocasiões, quando explicações como essa aparecem em tela para outras mulheres, criam-se situações de conflito entre elas. Como se a defesa da não maternidade, do não querer ser mãe, fosse uma agressão profunda àquelas que estão e exercem esta condição.
O fato é que ninguém deveria sentir qualquer mal estar em tomar decisões se vivêssemos em uma sociedade verdadeiramente justa, igualitária e respeitadora da diversidade e da diferença. Quando as próprias mulheres adotam essa postura de coerção em relação a outra é a prova mais iminente de que suas vidas foram confiscadas pelo capital e pelo patriarcado. A maternidade compulsória ou qualquer outra de suas expressões não pode e nem deve ser usada como parâmetro ou como única forma de existência das mulheres. Existem outras possibilidades e nenhuma delas deveria ser problema alheio. A lógica do patriarcado é implacável: coloca, inclusive, mulheres contra mulheres.
A consolidação do Estado burguês ainda no século XIX impôs, dentre tantas outras coisas, uma ideologia de classe que definiu de maneira mais proeminente os papéis de homens e de mulheres na sociedade. O discurso sobre a maternidade e a veneração da feminilidade se tornou o status mais alto e nobre que uma mulher poderia alcançar. Zelar pela educação, pela saúde e pela família consolidou a mulher casada como fortaleza moral da família. Mulheres tratadas como unidades reprodutoras, simulacro dos imperativos políticos e religiosos, colaboravam com a manutenção de uma sociedade e de uma situação que, em verdade, era (e continua sendo!) sua própria escravidão. A religião opera como reforço da opressão e o Estado legitima juridicamente a condição de subalternidade da mulher. Nem quando alcança uma posição no mercado de trabalho, ela está desassociada ao que chamavam de “instinto natural” ligado ao cuidado: são professoras, enfermeira, secretárias, cuidadoras. Sigmund Freud ao tratar sobre a questão das mulheres, forneceu as bases científicas que sustentariam a ideologia burguesa de que a mulher nasceu para ser mãe.
Este é um conjunto amplo de reflexões que apresentamos sem a pretensão de esgotar o tema. Recorrer à história também nos pareceu uma metodologia válida para compreender que a libertação das mulheres não é uma tarefa individual, nem uma decisão unilateral. Se trata de uma mudança mais radical da sociedade, de refletir sobre os seus seculares pilares e propor alternativas. Se trata de olharmos e enxergarmos todas as camadas e suas respectivas densidades. Vai desde repensar os currículos escolares e questionar se a religião tem o direito de impor qualquer barreira às nossas decisões, sobre o que queremos fazer das nossas vidas e dos nossos corpos. Às mulheres que reforçam as vozes do patriarcado sustentando as posições de submissão das quais aceitam sem questionar, essas talvez sejam o nosso maior desafio. Essa potência fragmentada e em rota de colisão talvez seja o mais puro caldo que o patriarcado adora beber para se alimentar. Aquilo que contorna a base econômica e social do sistema capitalista e que fortalece ideologias, religiões e costumes precisa ser controlado para manter a lógica da exploração da nossa condição de gênero.
A decisão de não ter filhos não pode estar dissociada a uma simples análise sobre as correntes que nos impedem de avançar, de se movimentar. A decisão de não gerar e não gerir uma família nos moldes tradicionais precisa ultrapassar a ideia de que é apenas uma rebeldia de quem não conseguiu um “bom casamento” ou não “encontrou um bom homem”. A decisão passa pela consciência de si e da outra, passa pela capacidade de desobstruir o olhar, enxergar mais além, ver as camadas de opressão e encontrar os caminhos de luta e construção da emancipação das mulheres. Certamente muito disso passa pelo feminismo. O que está em questão não é aceitar ou não os papéis que nos foram definidos. É fomentar lugares de práxis que rompam com qualquer tentativa que ameace nossa livre existência.
Não ter filhos é um desses lugares que muitas de nós ocupamos, mas que somos sistematicamente tachadas de tudo e de nada ao mesmo tempo. O simples fato de ser feliz nesta condição é matéria de comentários violentos e discriminatórios, quase como uma doença que precisa de cura. Diversidade e fluidez são bons mecanismos para abalar as estruturas de uma sociedade perversa e opressora. O século XXI tem sim sido capaz de grandes insurgências e transgressões e de construção de novas identidades políticas. Como substantivo feminino, as insurgências estão no campo dos movimentos capazes de gerar novas formas de organização social, culturas e identidades.
O pensamento feminista e os debates com mulheres na sua diversidade têm colaborado muito para fortalecer decisões e posições. Escolher não ser mãe tem sido o debate de mulheres brancas e negras que, conscientes das opressões que sofrem e do caráter político de suas decisões, escolhem não ser mães e não fornecer força de trabalho barata, precarizada e sem direitos para satisfazer o capital e os capitalistas. Escolhem superar a condição de unidade reprodutora para a manutenção do sistema. Escolhem por si e para si uma vida cujas atividades práticas possam ir além de cuidar de filhas e filhos. Escolhem suas profissões, seus amores, lugares e outras bandeiras de lutas por e para perspectivas diversas a fim de emancipar a si e outras tantas que não conseguem enxergar alternativas. Elas existem!
arquivo pessoal: Fabiana Scoleso
Devemos também destacar que no capitalismo de cariz neoliberal, termos como meritocracia, individualidade e consumo se irradiaram como ideias de exaltação do particular, do bem estar individual. A predominância de conceitos como estes, que valorizam a experiência pessoal, secundarizando as noções de classe e de luta coletiva, foram ganhando terreno no campo político e cultural. Podemos dizer que pressupostos como esses dão novo fôlego às ideias de família e religião, como se o esforço pessoal, a dedicação e a devoção fossem os únicos caminhos para a liberdade e para uma vida plena. Podemos dizer que a maternidade segue esta mesma linha de raciocínio. O que temos visto é a atualização dos valores éticos e morais do capital e o recrudescimento das violências, objetivas e subjetivas, que permeiam as relações e decisões sobre nossos corpos, sobre o que queremos e o que somos. O que conseguimos nesta caminhada foram vozes dissonantes e que se rivalizam sistematicamente, nos afastando do nosso verdadeiro inimigo e das nossas vias de emancipação.
A opressão é uma categoria social que define a existência de uma relação de subordinação entre grupos sociais distintos e por diferentes processos históricos. Acrescentamos que tem sido categoria comum em todo o tecido social e de nós contra nós. Assim, vão sendo retiradas de todas o potencial contestatório e nossas capacidades de refletir e aceitar outras formas de existência. Desestabilizar as normas hegemônicas não é tarefa fácil. Cada mãe e cada mulher sem filhos, que não pode ou não deseja tê-los, precisa compreender que estamos nas mesmas batalhas e nas mesmas trincheiras.
Enquanto dialogamos aqui, a Marcha Mundial de Mulheres está discutindo salário igual e justo entre homens e mulheres, o direito à previdência social (incluindo licença maternidade e paternidade), a adoção de políticas públicas de apoio à reprodução social, como creches, lavanderias e restaurantes coletivos. Essas atividades nem sequer são conhecidas por mulheres. O feminismo é tão refutado e descredibilizado que debates deste tipo são invisibilizados e totalmente desconhecidos por muitas delas. Mulheres com e sem filhos estão nessas batalhas, mas outras tantas estão alheias a este debate e concentrando suas forças em defender a família e a religião como verdades absolutas. A maternidade não é um imperativo biológico indiscutível e os debates em torno dela são muito mais complexos do que podemos imaginar. Esperamos que os apontamentos acima colaborem para um debate mais amplo e profundo e que saia do simples campo pessoal.
Para nortear reflexões…
AGUIAR, Neuma. Mulheres na força de trabalho na América Latina: análises qualitativas. Petrópolis: Vozes, 1984.
ASSUNÇÃO, Diana. (org). A precarização tem rosto de mulher. 3 ed. São Paulo: Iskras, 2020.
BORGES, Maria de Lourdes, TIBURI, Marcia, CASTRO, Susana. (orgs). Filosofia feminista. São Paulo: Senac, 2023.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista brasileiro. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2019.
SCHNEIDER, Graziela (org). Emancipação feminina na Rússia soviética: artigos, atas, panfletos, ensaios. São Paulo: Boitempo, 2017.
TOLEDO, Cecília. Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide. Cadernos marxistas. São Paulo: Editora Xamã, 2001.