O sofrimento causado pela sexualização de Britney Spears

Os efeitos da sexualização extrema a qual Britney Spears foi submetida desde os seus dezesseis anos de idade deixaram marcas de traumas e a fizeram viver sob a tutela de seu pai (igualmente abusivo) por treze anos.
Giovanna Gomes

Britney Spears é uma cantora de música pop americana que marcou gerações e se tornou um dos ícones de mulheres e da comunidade LGBT+. Aos dezesseis anos com o seu início de carreira com a música baby, one more time, ela foi exposta à mídia mundial sexista. Infelizmente, o histórico de sofrimento com a misoginia e a sexualização datam muito antes do seu debut na indústria musical. É dito pela mídia e por diversos fãs, que antes de se tornar uma mulher antes de ao menos se tornar uma pessoa. 

Quando ela tinha 10 anos de idade, ao participar do programa americano Star Search, o apresentador do programa perguntou para ela se ela possuía um namorado. O apresentador Ed McMahon, de 69 anos, ao ouvir a resposta “não” de Britney, então disse “e quanto a mim, eu não sou mal?”. Assim, assediando uma menina que além de menor de idade, tinha 59 anos a menos do que ele.

O clipe de baby, one more time, foi o início de uma narrativa pública, montada por outros e que forçou Britney a se tornar a personagem principal de objetificação sexual. No vídeo clipe em que Britney tem apenas 16 anos, ela aparece com um uniforme escolar católico, com a camisa sugestivamente amarrada e com o cabelo preso no estilo maria chiquinha por scrunchies rosas. Look que hoje é usado como fantasias de festa, a própria empresa que a gerenciava utilizou desses dispositivos de sexualização para divulgá-la. A chamaram de “North America’s unspoken Lolita”, ou seja, a Lolita norte americana não mencionada.

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Sem a existência de mídias sociais, a imagem da jovem Britney Spears foi vendida como a versão americana de Lolita, por Vladimir Nakobov.

Quem é Lolita? A edição feita pela Editora Alfaguara descreve o livro como: “Polêmico, irônico e tocante, este romance narra o amor obsessivo de Humbert Humbert, um cínico intelectual de meia-idade, por Dolores Haze, Lolita, 12 anos, uma ninfeta que inflama suas loucuras e seus desejos mais agudos. Através da voz de Humbert Humbert, o leitor nunca sabe ao certo quem é a caça, quem é o caçador.”. O livro se passa no ponto de vista de Humbert Humbert, que abusa sexualmente de uma menor de idade. Atualmente rotulado como um “romance”, o livro gerou o termo “Lolita”, que serve para rotular mulheres menores de idade no início da puberdade que são vistas como objetos de desejo sexual.

Depois do lançamento de baby, one more time, a cantora foi cada vez mais encurralada como uma figura sexualizada. A construção de sua carreira usando roupas curtas e justas, os conceitos desenvolvidos através dos clipes e de suas aparições públicas, e até mesmo o uso de sua voz em uma tonalidade muito similar a de gemidos foram como dar abertura para homens maiores de idade a verem como um objeto sexual. Aos dezessete anos de idade, ela estampou a capa da edição americana da revista Rolling Stones, usando um sutiã de biquíni e shorts justos de cetim. Em paralelo ao look do qual a artista utilizou, a menção ao quão jovem ela é, é clara e forte na foto de capa: Britney ‘embalando’ um urso de pelúcia dos Teletubbies, mais especificamente Tinky Winky.

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Tal exposição não seria aceitável nos dias de hoje, porém em 1999, ano em que haviam pouquíssimas leis que protegessem mulheres e crianças, não havia nada que impedisse a revista e a empresa que a gerenciava de impedir ou simplesmente não expô-la de tal forma. Os conflitos de identidade em relação a Britney começaram a surgir, não pelo seu talento, mas sim pelo seu corpo — de uma menor de idade, em um momento no qual a diziam quem ela deveria ser.

  A partir desse momento, a virgindade de Britney se tornou um ponto focal de matérias e histórias relacionadas a ela. Não havia espaço para que ela falasse sobre sua arte sem que os repórteres perguntassem a ela se ela havia feito ou não. Quase atingindo a idade de dezoito anos, diversos homens adultos fizeram contagens regressivas para que ela atingisse a maioridade — fato que também aconteceu com as gêmeas Olsen alguns anos depois. As pessoas ao redor dela, incluindo seus produtores e familiares, incentivaram esse comportamento. 

Alguns anos depois, várias performances sexualizadas em premiações de fim de ano depois, o relacionamento de Justin Timberlake e Britney Spears chegou ao fim. E como diversas outras pessoas ao redor de Britney, Justin Timberlake teve sua parte de lucro em cima da sexualização de Britney. Na tour 20/20 em 2002 ele revelou ao mundo que Britney não era, de fato, ainda mais virgem.

Sexualidade, sensualidade e desejo se confirmaram como as principais características da figura de Britney Spears, e ela se tornou nada além disso para o público. Em um processo de identidade e autoconhecimento em frente a um público de milhões que a acompanhavam, Britney que já não era vista como uma pessoa desde os seus dezesseis anos de idade, ficou atrelada à essa personalidade.

Traumas relacionados à performances e ao comportamento das pessoas ao seu redor depois, Britney começou a lutar para ser vista como uma pessoa durante os anos de 2004-2007, o que o público geralmente chama de meltdown era (em português conhecido como era de colapso). Em busca de ter uma família nuclear que não a veria como um objeto de desejo, ela se casou e teve dois filhos. Depois de uma vida toda perdida na persona pública que ela construiu, sem realmente se conhecer e completamente silenciada pelas pessoas ao seu redor, Britney se divorciou do marido e se tornou ‘meme’ pela sua falta de saúde mental. Memes são feitos para serem engraçados, e o público da época se divertiu ao chamá-la de louca da mesma forma que se divertiu ao chamar uma menor de idade de “sexy” e “gostosa”. 

Cabeça raspada, com diversas crises psicológicas, Britney já não era mais uma figura sexy, ela havia perdido o seu sex appeal. A Lolita da nação se tornou uma chacota, estampas de camiseta, debochada e criticada. Destruindo carros de paparazzi que a perseguiam, fazendo uso de substâncias, a saúde mental de Britney foi aos poucos sendo consumida.

Um ano depois, entre internações clínicas e psiquiátricas, ela foi colocada sob a tutela de seu pai, Jamie Spears.

O movimento ‘Free Britney’

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A tutela mantida pelo pai garantia a ele restrição a todos os aspectos da vida dela, incluindo monetário e também controle sobre o próprio corpo da Britney. Durante essa tutela que durou treze anos, o pai a obrigou até mesmo a fazer uso de métodos contraceptivos para que ela, de hipótese alguma, pudesse ter mais filhos. 

Britney já afirmou diversas vezes o seu desejo de ter mais filhos, de construir uma família. Porém esse desejo foi impedido pelo pai através da inserção e manutenção de um DIU contra a vontade de Britney. Jamie Spears dizia que isso era para o bem da saúde mental dela. Além disso, o controle do pai dela sob a sua vida também afetava até mesmo a liberdade da artista de namorar outras pessoas, de quais músicas ela lançava e o que ela vestiria. A tutela se tornou uma força opressiva e controladora na vida dela, Britney Spears até mesmo disse que o tutor tinha “muito, muito controle”.

No julgamento do caso, Britney Spears contou também que foi drogada e forçada a se apresentar em shows contra a sua vontade. Ela não possuía acesso livre ao seu celular e documentos, fazia exames de sangue semanalmente, e até mesmo não poderia ter uma porta no próprio quarto. Caso ela não fizesse os shows, ela seria impedida de ver os filhos e o atual namorado. 

O movimento Free Britney surgiu promovido pelos fãs e apoiado pela própria Britney Spears para acabar com a tutela do pai (tutela que atualmente foi passada para o contador John Zabel por um período provisório). Vários artistas, por motivos claros, também apoiaram a hashtag como Khloe Kardashian e Sarah Jessica Parker. O movimento surgiu oficialmente em Abril de 2020, mas tomou força em Junho e Julho de 2020. Nesse período, houveram mais de 100,000 posts na hashtag #FreeBritney no Instagram, e mais de 100 milhões de views nessa mesma hashtag no Tiktok.

Em Fevereiro de 2021 houve também a publicação do documentário Framing Britney Spears (que está disponível na Google Play). O documentário mostra várias falas de pessoas que acompanharam a carreira e a vida de Britney, e também mostra através da visão atual como foi o processo de hipersexualização sofrido por Britney desde os seus dezesseis anos de idade. O documentário serviu para alimentar a chama do movimento Free Britney, e mostrou também ao público que não sabia dos acontecimentos os reais motivos do sofrimento ao qual Britney passou.

É com alegria que se pode dizer que atualmente, ela está livre da tutela de Jamie Spears e que logo, após treze anos de ‘cárcere’, poderá realmente ir de encontro com a sua liberdade.

 

REFERÊNCIAS

Bodacious Britney Spears on Rolling Stone. Disponível em: <https://www.popsugar.com/love/photo-gallery/21173344/image/21174427/Bodacious-Britney-Spears-Rolling-Stone>. Acesso em 22 de Out. de 2021.

Britney Spears: Singer’s conservatorship case explained. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-us-canada-53494405>. Acesso em 18 de Out. de 2021.

Fans fuming after Framing Britney Spears documentary exposes sexualisation of her during her teenage years. Disponível em: <https://www.perthnow.com.au/entertainment/celebrity/fans-fuming-after-framing-britney-spears-documentary-exposes-sexualisation-of-her-during-her-teenage-years-ng-b881791636z>. Acesso em 22 de Out. de 2021.

On Britney Spears, sexual agency, and the construction of a pop star. Disponível em: <https://ontheaside.com/music/on-britney-spears-sexual-agency-and-the-construction-of-a-pop-star/>. Acesso em 18 de Out. de 2021.

O que significa o movimento Free Britney. Disponível em: <https://vogue.globo.com/atualidades/noticia/2021/06/o-que-significa-o-movimento-free-britney-aqui-esta-tudo-o-que-voce-precisa-saber.html>. Acesso em 22 de Out. de 2021.