Uma anatomia da dor

Compartilhe este conteúdo:

Ah, o espirito ultrarromântico que toma conta da alma perturbada. Cedo demais comecei a compreender meus ídolos literários. Eu compreendia as dores de Álvares de Azevedo, a inconstância magnifica e tenebrosa de Augustos dos Anjos, a lascividade do Marquês de Sade e explosões do Lord Byron. Tudo me fazia sentido, não era o primeiro e muito menos seria o último.

Uma vez diagnosticado com depressão maior, eu vi que realmente a situação era séria e já não poderia mais passar despercebida. As coisas corriqueiras ainda não faziam muito sentido, a felicidade alheia me incomodava demais e eu não entendia o fato de eu ser o único em todos ambientes que não conseguia rir ou ficar feliz. Ausência de prazer. Sabe, falsas risadas, drinks, sexo sem prazer tudo se torna automático, e é possível perder a vontade.

Eu já não levantava mais da cama, de uma pessoa excessivamente caprichosa, cuidadosa e asseada para um monstro descuidado e com repugnância de sua própria aparência. Não tinha forças nem se quer para me barbear e ainda me pergunto como havia conseguido uma namorada.

No mesmo ano tomei uma decisão drástica que alteraria minha visão de vida: eu decidi me matar.

Em um dia especifico de agosto de 2010, havia uma festa, onde com muito esforço minha namorada e eu participamos. Encontrei vários amigos lá. Conversei com todos, em tom de despedida. Ninguém entendia muito bem o que estava acontecendo, pois só minha família tinha conhecimento da minha doença e para o resto do mundo eu era apenas um excêntrico.

Lembro que foi uma festa incrível, eu não estava triste no dia, o sentimento que persegue a pessoa na depressão maior não é bem a tristeza e sim a ausência de qualquer sentimento. Eu não me sentia angustiado e nem com vontade de chorar, não sentia nada. Estava decidido a me matar.

Ao final da noite fui embora para a casa. Tomei um belo banho, acho que permaneci umas duas horas dentro do chuveiro. Comi um sanduiche incrível e assisti TV. Logo, eu sabia que já era hora, busquei um copo d’água e fui para meu quarto.

Peguei todos os meus comprimidos controlados (que não vou citar nomes). E fui removendo das cartelas, fazendo assim, uma pilha de comprimidos da morte. Fui colocando todos os comprimidos na boca e tomava um gole de água a cada momento.

Ao terminar eu não senti nada, fui para frente do computador e comecei a encerrar todas minhas redes sociais, ao passo que olhava para minhas coisas, para meu quarto, sabendo que nunca mais eu veria nada. Não pensava em vida após a morte ou em qualquer coisa, nada me impediria. O suicídio é um sentimento egoísta, onde você não liga para nada e ninguém.

Em mais ou menos meia hora eu comecei a me sentir literalmente burro, meus pensamentos já não faziam mais sentido. Eu pensava em coisas avulsas e junto com isso me deu uma moleza nas pernas e braços. Fui para a cama e me deitei, fitando o teto do meu quarto.

Meu telefone tocou. Um amigo do outro lado queria saber se eu ainda estava na festa, eu não me lembro exatamente o que falei para ele e desliguei e dormi.

Acordei dois dias depois, entubado no hospital da minha cidade. Lembro de abrir os olhos bem devagar e me deparar com toda minha família reunida, o único pensamento claro que me veio foi: merda.

O ato de tentar se matar e não conseguir é tão ruim em diversos aspectos, mas o pior é ter de encarar as pessoas e tentar explicar o que aconteceu, no meu caso foi a negação, quanto menos eu falasse ou fingisse que não aconteceu, melhor.

Ao fechar os olhos novamente, eu dormi, dormi por mais um dia inteiro. Eu acordava levemente diversas vezes, conseguia sentir o tubo na minha garganta e o desconforto daquilo.

Ao acordar definitivamente, eu vi o médico, ele conversou comigo, eu não entendi nada e respondi algo que ele possivelmente não entendeu também. Não foi frutífero.

Me levantaram da cama e me deram alta, eu saí do hospital em uma cadeira de rodas, eu vi vários estagiários de enfermagem da minha faculdade lá, eu achava que estava ferrado, que todos iam saber.

Um suicida realmente não quer falar sobre o assunto, ele evita, ainda mais quando a última coisa que eu queria era chamar atenção.

Ao chegar em casa, minha visão estava embaçada. Minha namorada foi me visitar, eu não falava nada com nada, eu me sentia burro, não conseguia pensar. Eu comecei a mostrar pra ela fotos de quando eu era criança, filmes, acho que no fundo eu queria desviar a atenção da tentativa de suicídio.

Fiquei por quase seis meses evitando festas familiares, todos me tratavam como uma boneca de porcelana, tinha medo do que poderiam falar. Achei a princípio ridículo, eu não era fraco e sabia disso, eu havia suportado a doença do século e havia sobrevivido a ela.

Meu problema não se resumia ao mundo exterior, mas a eu mesmo. Era existencial.

O médico que me atendeu achou que eu poderia ter ficado com sequelas cerebrais, pois havia faltado oxigenação no meu cérebro.

Então, resolvi conversar com minha mãe sobre o que havia acontecido naquela noite. Ela me disse que por volta das quatro horas da manhã o telefone tocou, e era meu amigo, pedindo que ela fosse ao meu quarto e verificasse se estava tudo bem, pois ele havia me ligado e eu desliguei.

Minha mãe disse que ao chegar no quarto, viu uma cena que ela jamais esquecerá, eu estava caído no chão, de costas pra cima e sem reagir a nada. Ela então apavorada, ligou para o corpo de bombeiros que veio imediatamente e me socorreu.

Isso explicou como de um sono “gostoso” eu fui parar no hospital.

Com esse episódio finalizado, eu havia chegado a uma conclusão: Sobrevivi, se estou aqui, agora quero ver o que acontece, quero ir até o final.

Todos estamos fadados a morrer, seja rico ou pobre, feio ou bonito, isso nos faz sentir estranhos e ao mesmo tempo como se não pudéssemos enganar o destino, a diferença é que uns veem isso, outros não.

Minha conversa com a psiquiatra foi, pela primeira vez boa, ela me recomendou Terapia Cognitiva Comportamental. Eu nunca fui fã de terapias.

Eu estava completamente consciente que meu cérebro deveria encontrar uma maneira de se restaurar. Comecei a ler “Curar” do Dr. David Servan-Schreiber e “O demônio do meio dia” de Andrew Solomon, nos dois livros encontrei experiências incríveis sobre o estresse, a depressão e a ansiedade e como eles se manifestavam nas outras pessoas.

E eu havia achado a minha chave para sair disso…

Compartilhe este conteúdo:

Uma anatomia do ódio

Compartilhe este conteúdo:

Como disse anteriormente, houve o funeral do meu primo, um funeral ao qual eu tive meu primeiro e único colapso nervoso público. Haviam tantos sentimentos perturbadores dentro de mim, que naquele lugar eu era o que mais gritava, o que mais chorava. Ainda tento analisar de uma forma menos parcial o que me aconteceu naquele dia. Estava eu tentando chamar atenção? Chamar atenção para o meu problema?

Os dias na faculdade de Alfenas estavam se tornando tenebrosos. Havia voltado para São Lourenço, para estudar na faculdade local. Pois meus problemas com a depressão haviam se tornado mais peculiares. Toda essa mudança gerou uma grande frustração, uma vez que se eu tivesse concluído o curso na faculdade de Alfenas, eu poderia ter tido grandes oportunidades em São Paulo. Pensamentos sobre a garota que eu deveria ter me casado voltavam a tomar minha mente de uma forma sombria e eu tinha a ideia que deveria guardar dinheiro para poder vê-la. O que não aconteceu.

Voltar para São Lourenço foi de longe a pior das minhas escolhas.

Com vergonha pela minha escolha errada, eu decidi criar uma segunda versão da minha história, para justificar meu fracasso como pessoa. Dizia a todos que eu estava muito envolvido com álcool e que precisava me tratar, por isso voltei para a minha cidade natal.

Sonhos abomináveis eram os donos de meu sono. Terror noturno. Desejo de estar morto. Esses eram os novos sintomas dessa temporada. A noite que deveria ser meu único momento de paz, passou a ser assombrada por sentimentos negativos. Eu não tinha mais paz, evitava dormir para não ter que acordar. Evitava dormir para não sonhar.

Na faculdade nova, haviam vários olhos curiosos sobre mim. São Lourenço é uma cidade pequena. E como em toda cidade pequena a curiosidade é algo muito frequente. Todos me questionavam do porque eu havia voltado. Eu sempre sorria e entregava a segunda versão, com medo de ser crucificado por ter amado. O amor, o mais belo sentimento, o sentimento da união perfeita entre Deus e o homem, havia se tornado um motivo de vergonha e desprezo para mim.

Envolvi-me novamente com grupos ligeiramente misantrópicos, encontrei comunidades virtuais que adoravam publicar, identificar e constatar óbitos de pessoas estranhas. Meu maior e único prazer era fruto da estranheza e da desgraça. Era um reflexo de como eu me sentia perturbado por dentro.

Eu comecei a ficar doente frequentemente, e então descobri o transtorno obsessivo compulsivo que iria reinar sobre minha vida: Eu tinha TOC com doença.

Virei um fã de carteirinha de convênios de saúde, de laboratórios de coleta de sangue e hospitais. No início, ao desenvolver meu TOC, eu sofria calado. Achava que estava com meningite, AIDS, tuberculose e câncer. Passava horas pesquisando os sintomas e meu corpo passava por um período de psicossomatização. Toda semana eu estava morrendo, eu iria morrer. Não havia paz.

Jamais me livrei desse Transtorno, apenas evito os gatilhos que me levam a ele.

Certa vez – um fato curioso -, eu dei dinheiro a um sem teto que clamava ter AIDS. Achei que havia sido contaminado. Acredite se quiser, até a contagem dos meus leucócitos diminuíram.

Eu tinha fé sem fato.

Eu não conseguia mais ter relações sexuais normais sem achar que seria contaminado, na minha cabeça o HIV poderia ser transmitido pelo ar.

De três em três meses eu estava lá, presente, sentadinho no laboratório de coleta de sangue e mesmo quando recebia os exames, todos negativados, eu ainda achava que algo poderia ter dado errado e o exame me mostrara um falso negativo.

Naquela altura, eu só saia de casa para ir para a faculdade. Não conseguia mais frequentar academia. Eu evitava aparecer em qualquer lugar que fosse. Não queria ser visto, nem tocado. Eu estava conhecendo a agorafobia.

O terceiro psiquiatra me diagnosticou com depressão maior e transtorno de ansiedade generalizada. Um decorrente do outro. A medicação foi risperidona® com venlafaxina (e eu sempre dava um jeito de conseguir mais receitas azuis para meu ansiolítico para sustentar o vício).

Eu não conseguia mais sair da cama, permanecia inerte, assistindo filmes de terror o dia todo, sem disposição.

Comecei a ganhar muito peso, em mais ou menos um ano, ganhei 30 quilos. Isso me afetou diretamente e contribuiu para que eu não quisesse mesmo sair de casa. Fiquei isolado. Aquilo não era tão ruim. O isolamento até me fazia bem.

Obtive uma onda de criatividade, onde eu desenhava, pintava e escrevia muito.

Compartilhe este conteúdo:

Uma anatomia da destruição

Compartilhe este conteúdo:

Primeiramente, eu diria, minha história é mais extensa do que eu poderia descrever aqui. Sempre haverá uma brecha, um espaço vazio para mais algumas palavras. Eu me lembro bem da minha infância, na verdade eu me lembro do meu primeiro dia de vida, achava que isso não era possível até ver um programa de televisão sobre memórias e traumas.

Nascer é um trauma.

Lembro-me das luzes no teto do hospital e de enxergar tudo de maneira embaçada, como me lembro dos meus gostos estranhos quando ainda possuía pouco (ou quase nenhum) discernimento. Diferente das outras crianças que gostavam de ouvir histórias infantis na TV Cultura, eu preferia histórias sobre assombrações, demônios e lobisomens contadas pela minha avó. Casinhas, sol, flores e um morro gramado não eram nem de perto meus alvos artísticos, eu gostava mais de esqueletos e cemitérios os quais eram basicamente a composição de meus desenhos.

Quando criança eu queria ter sido um cientista ou escritor. Meu desejo era ficar mexendo com frascos coloridos, misturando formulas, inventando remédios ou debruçado em cima de um monte de folhas, colocando as mais absurdas ideias para fora. Não imaginava que o absurdo iria se tornar parte da minha vida.

A minha doença, como sempre e com todo mundo, passou despercebida durante quase toda minha vida e só obteve a atenção necessária quando finalmente eu comecei a ceder.

Na escola, nunca fui dos melhores alunos e as matérias que mais me atraiam eram história e literatura. As outras disciplinas eu banalizava, assim como quaisquer outras coisas em minha vida que eu julgava trivial.

Então, como um fantasma, ela apareceu quando eu menos esperava. Começou leve, como uma brisa. Eu a ignorava, apesar de sentir pouco entusiasmado com a vida. Eu a descreveria como aquela preguiça de domingo – qual adolescente não é preguiçoso? Entretanto, a fadiga era permanente, por dias, semanas e às vezes, até meses.

Eu que havia sido uma criança feliz, correndo para cima e para baixo nas ruas pequenas da cidade que nasci, uma criança que se sentia completa simplesmente por tomar café com leite pela manhã e assistir desenhos, não conseguia mais ter prazeres, tanto nas coisas simples, quanto nas mais complexas.

Aos quinze anos minha vida já estava bagunçada suficientemente para eu perceber que estava sendo devorado pelo mal do século. Minha família passava por problemas financeiros, perda de entes queridos e meu mundo estava sendo atordoado por relações amorosas infernais.

A solução para mim? Comecei a me envolver com pessoas extremamente problemáticas, que como eu, estavam perdidos dentro da própria mente. Participei por curtos períodos de gangues juvenis e sem propósitos, que viam graça na violência. Automutilação nunca foi algo que me atraiu, mas um humor mórbido tomava conta de mim e eu me deleitava. Talvez eu ainda conseguisse encontrar certo tipo de prazer no obscuro.

Arte: Michael Taylor -Lumen

O meu primeiro psiquiatra era, com certeza, mais louco que eu. Ele parecia querer me provocar e me deu na época o meu primeiro antipsicótico junto com outro remédio para dormir. O resultado foi: o antipsicótico não fazia efeito e o para dormir me dava alucinações.

Explosões de ódio começavam a se tornar parte do meu dia a dia cujas horas eu passava irritado. Minha reação aos outros e suas palavras eram quase sempre agressiva, verbal ou física.

O segundo psiquiatra era um homem mais estranho ainda. Obcecado por Don Quixote, o consultório dele aparentava um livro encenado, qual me causava incômodo. Mas nada incomodava mais que os atrasos frequentes das consultas e o riso irônico que ele sempre carregava em sua boca.

O diagnóstico dele para mim foi interessante: bipolar.

O remédio obviamente foi o depakote, quase um padrão na psiquiatria moderna para os transtornos de humor.

No entanto, meu temperamento não houve melhoras. Oscilava entre a calma e a ira. Eu desconhecia a alegria, desconhecia a felicidade.

Então comecei a faculdade. Fui cursar direito na cidade de Alfenas em Minas Gerais, e como todo adolescente, fiz muitos amigos, fui a festas, bebi e namorei. Tenho a sensação de ter tido um sorriso ensaiado por quase todo esse tempo. Fingindo estar tudo bem, cedendo à pressão de amigos e no fundo, almejando a solidão e o isolamento.

Arte: Salvador Dali – Antropomorphic Cabinet (1936)

Os sentimentos negativos durante os dois primeiros anos desaceleraram e quando senti que eu estava obtendo o controle da minha vida novamente, decidi sair em tour pelo mundo. Coloquei a mochila nas costas e fui para a Europa.

Na Europa conheci o que deveria ter sido o amor da minha vida e como dizem, tudo que é bom, sempre acaba. Isso marcava o início da segunda temporada da minha doença. A culpa não foi dela nem minha. Havia nisso tudo uma disposição genética e os acontecimentos daquele ano marcavam o início, apenas o início, da minha luta.

No primeiro ano após voltar da Europa, eu me sentia deprimido. Achava que era pelo simples fato de ter um relacionamento que deveria ter sido bom, finalizado de maneira brusca. Após longos 10 meses, eu já não pensava mais nela, mas também eu não havia retomado minha energia. Eu permanecia inerte. Um estado lisérgico permanente.

Então conheci meu terceiro psiquiatra. Fui diagnosticado com depressão leve e ansiedade. Comecei a tomar uma bomba de tricíclicos que não me faziam efeitos positivos, apenas me tornavam mais violento e inconstante. Viciei-me no Frontal®. Achava que não conseguiria viver sem tomar ao menos seis comprimidos da dosagem mais alta por dia. Além disso, gostava da sensação de estar bem com o mundo, de estar bem comigo mesmo. Eu descreveria a sensação como: Se chovesse meteoros eu apenas me maravilharia ao olhar. Na ausência de tal medicamento eu ficava ainda mais irritadiço, tonto, nauseado, com sudorese e com mãos bem tremulas.

Houve uma vez em que uma simples briga com minha mãe, me levou a destruir um jarro de vidro grosso na cabeça. Minha mão havia sido dilacerada e eu me comportava feito um lunático. Não conseguia dormir.

 

No ano de dois mil e dez, perdi um primo que era muito próximo e quase um irmão (eu sou filho único). Aquilo pareceu não ter me atingindo da maneira que deveria, fiquei em choque e tive um ataque de nervos em seu funeral. Não era necessariamente pela morte dele, mas junto aos meus próprios sentimentos que eu já não podia mais controlar, estava tudo mudando.

Eu estava obcecado pela morte.

Compartilhe este conteúdo: