Transtorno do Espectro Autista: abordagem histórica e social

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A neurodiversidade que hoje compreendemos de forma mais ampla, ainda que não tão conhecida pela sociedade por completo, por tempos fora taxada como doença mental, homens, mulheres e crianças que não se encaixavam nos padrões de comportamento da sociedade eram enviados a manicômios para viver alheios à sociedade, perdendo seus direitos, cerceando sua liberdade e as forçando a viver sem o mínimo de dignidade, tudo isso alicerçado no discurso médico da época que “subtrai a totalidade subjetiva e histórico-social a uma leitura classificatória do limite dado pelo saber médico […] uma leitura produtora da redução, exclusão e morte social” (CARVALHO, 1995).

Após a luta do movimento antimanicomial, esses homens e mulheres que eram encarcerados com o rótulo de doentes mentais começaram a ter sua dignidade restituída, e passou-se a encontrar novas formas de tratamentos e diagnóstico de transtornos mentais de forma correta, para o melhor tratamento destes indivíduos. Dentre estes encontramos o transtorno do espectro autista que apresenta os seus sintomas já na primeira infância, sendo caracterizado como uma neurodiversidade que pode apresentar diferentes formas de manifestação de sintomas.

Em 1943 foi diagnosticado pela primeira vez em 11 crianças o transtorno do espectro autista, que na época fora denominado pelo Dr. Leo Kanner como um “distúrbio inato do contato afetivo”, ainda que condições idênticas tais como a destes casos.

Para Kanner essas crianças nasciam com um desinteresse pelo contato social, apresentando também resistência a mudança, caracterizou as como portadoras de uma “insistência nas mesmas coisas” pois apresentavam comportamentos de pânico e séria perturbação gerada pela desordem ou mudança de rotina, podendo também apresentar rigidez quanto ao tipo de roupa e comida, comportamentos motores aparentemente sem função específica, conhecido como estereotipias, bem como comportamentos de repetição de fala tardia ou imediata, ou até mesmo a emissão de apenas uma parte da ecolalia com a alteração no restante do conteúdo da fala, a ecolalia mitigada.

Fonte: Autoria de José Nicolas, Crianças em hospital psiquiátrico no Líbano em 1982

Para Kanner, o diagnóstico de autismo se dava por meio de duas grandes características, sendo eles em primeiro lugar o isolamento social, e em segundo os “comportamentos anormais” e a insistência nas mesmas coisas (DO AUTISMO, Federação Portuguesa. Autismo. 2017.).

A medida que os anos foram passando, o nosso conhecimento enquanto sociedade foi se aprofundado acerca dos mais diversos temas, entre eles o conhecimento sobre o TEA, já em 1970 chegou-se ao consenso de que o autismo era caracterizado por déficit no desenvolvimento social de um tipo muito diferente em comparação ao das crianças típicas; déficit na linguagem e em habilidades de comunicação; resistência à mudança, rigidez comportamental atrelada a rotinas, estereotipias; início nos primeiros anos de vida. (DO AUTISMO, Federação Portuguesa. Autismo. 2017)

Durante muito tempo foi acreditou que todos os autistas apresentavam também deficiência intelectual o que na realidade mostrou-se falso, e que o que realmente se apresentava como fator determinante para o desenvolvimento cognitivo desses indivíduos é a adesão precoce a intervenções que estimulem as áreas que apresentem atraso, proporcionando o desenvolvimento esperado para cada marco do desenvolvimento.Por outro lado, a mídia por vezes buscou fortalecer a mentalidade de que todos os indivíduos autistas têm capacidades cognitivas acima do esperado para atividades específicas, como música, desenho, memória, ou até mesmo calcular calendário para eventos do passado ou futuro, como podemos perceber no filme Rain Man. No entanto, este tipo de habilidade é rara entre os indivíduos com TEA.

Atualmente com a evolução das nossas descobertas científicas, e estudos mais aprofundados e conscientização social, é possível perceber que os indivíduos com autismo passam a ter lugar de fala na sociedade, já não há mais a sensação de que é algum tipo de fenômeno que acontece longe de nós, e que estas crianças, homens e mulheres, apenas apresentam uma forma diferente da nosso de estar no mundo, o sentem e respondem a ele de uma forma diferente, a sua neurodiversidade por vezes os fará capaz de ter compreensões mais profundas sobre algumas realidades que mundo enfrenta, como a crise ecológica que vivemos e tão bem interpretada por Greta Thunberg e passa a lutar pelo nosso meio ambiente, buscando a preservação da vida no nosso planeta.

Faz-se necessário compreender mais e acolher estes indivíduos neurodiversos, promover políticas públicas que auxiliem as famílias que não conseguem arcar com o tratamento para gerar dignidade para estes indivíduos, fortalecendo as redes de apoio, preparando as escolas para que possam ter oportunidades como os indivíduos considerados como típicos.

Referências

CARVALHO, Andréa da Luz; AMARANTE, Paulo. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. In: Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 1995. p. 143-143.

DO AUTISMO, Federação Portuguesa. Autismo. 2017.

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Como é ser mãe de um autista?

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“Minha vida mudou”. Há três anos, Raquel Balsini Rossi recebeu a notícia de que o filho Ricardo, 6, é autista. A advogada, que mora com a família em Chapecó – SC, mudou rotina, comportamentos e compreensão de vida. “Ricardo me fez perceber que o que importa é solidariedade e um olhar carinhoso”.

Raquel conta ao (En)Cena como é a vida de uma mãe que tem filho autista. Aceitação, dificuldades, rotina, gastos. O universo é especial e o sentimento é digno de elogios. “Eu amo ser mãe de um autista”.

(En)Cena – Raquel, quando você descobriu que seu filho é autista?

Raquel Rossi – Quando o Ricardo tinha uns três anos, estava com a fala muito atrasada, levei-o em uma fonoaudióloga. Ela achava o comportamento dele muito diferente e sugeriu que levássemos a um neurologista. A neuro não achou nada de anormal, pensou que pudesse ser uma hiperatividade. Então, ficamos tranquilos fazendo a fono para melhorar a fala. Um ano depois a professora dele conversou comigo comentando sobre o comportamento dele muito diferente das outras crianças. Não seguia ordens, parecia que não escutava, não parava na cadeira etc. Levamos a um outro neurologista que afirmou que ele não tinha nada, e muito provavelmente aos sete anos estaria acompanhando as demais crianças. Mais uma vez ficamos tranquilos achando que ele era um pouco diferente, mais mal educado porque não obedecia tanto, mas nada de anormal. Passou-se mais um tempo, ele estava com um pouco mais de 4 anos, e outra professora conversou comigo, delicadamente, afirmando que sabia que já tínhamos ido ao médico, e sugeriu que levássemos em uma especialista. Pensamos então, vamos logo nessa grande especialista para tirarmos qualquer dúvida. Na verdade, acreditávamos que não era nada, que ele era apenas alguém fora do padrão. No dia da consulta, quando ele entrou no consultório, passou direto pela médica, e foi em uma sala de brinquedos, eu mesma percebi seu comportamento diferenciado, e naquele momento já sabia o que ela iria me dizer. Autismo.

(En)Cena – Como foi sua reação ao saber disso? Como foi o processo de aceitação?

Raquel Rossi – Fiquei com muito medo. Chorei o dia inteiro. Simplesmente não sabia o que fazer, porque a verdade é que não sabemos nada sobre o autismo, só algo que ouvimos falar, um filme em que vimos, e achamos que todos são iguais. O que é uma grande mentira.

Em relação à aceitação, pra mim ela foi instantânea. Nunca passou pela minha cabeça as perguntas: por que aconteceu isso comigo? O que vai ser da minha vida agora? Eu só estava preocupada em saber como lidar com isso para fazer o melhor para ele. Pensava em como ser uma boa mãe. Sei que tem muitas mães têm dificuldade de aceitação, e nesse caso, acredito que o melhor e buscarem tratamento, porque uma mãe que não consegue aceitar as imperfeições do seu filho, não conseguira ser uma pessoa plena. E ela precisa ser feliz para criar um filho feliz.

(En)Cena – Em quê sua vida é diferente por ter o Ricardo como filho especial?

Raquel Rossi – Meu olhar para o mundo mudou. Vemos como os pais valorizam e incentivam a competitividade, sempre buscando que seus filhos sejam os melhores.  Esquecem de incentivar a solidariedade, que é justamente o valor que propicia que a nossa sociedade evolua. De que adianta criarmos pessoas iguais a nós mesmos, já tão competitivos? Precisamos de amigos e não concorrentes.

Claro que no dia a dia dá trabalho. Tenho que levá-lo em várias terapias, deixo de fazer coisas que gostaria para prestar atenção nele. Selecionamos lugares que podemos ir, outros que é impossível levá-lo. E custa caro também.  Mas consigo levar tudo isso de uma maneira bem leve. Isso é uma coisa que mudou também na minha vida: ela é mais leve.

(En)Cena – Você sofre preconceitos, discriminação por essa condição?

Raquel Rossi – Nunca aconteceu nada específico comigo, mas tenho certeza que muitas pessoas pensam: coitado desse casal, tem um filho autista. Eram tão felizes! Ou então: nossa, tem uma vida boa e foi acontecer uma coisa dessas! E olham para o Ricardo de um jeito, procurando algo que vá lhes dizer: é estranho mesmo esse menino.

(En)Cena – Em um texto seu recentemente publicado, você diz que se diverte muito com o Ricardo e, pela disfunção da criança, sabemos que ele tem algumas limitações. Como vocês se divertem?

Raquel Rossi – Bom, o Ricardo é considerado um autista leve, ele tem uma interação, ela é limitada, mas ela existe. Eu aprendi a lidar com essa limitação de uma maneira divertida. Ele quase nunca quer brincar de nada, e quando tem alguma ideia para brincar eu deixo ele tomar conta da brincadeira e sigo suas regras. Se você for seguir as instruções de um terapeuta ele vai te dizer pra não deixar ele tomar conta, porque eles tem que aprender a flexibilizar e tal. Mas eu deixo, e me divirto. E ele se diverte e evolui. Ele aprende que é bom interagir.

Se ele quer tirar todas as cobertas do armário pra fazer uma brincadeira eu deixo. Se quer apagar todas as luzes pra brincar de lanterna, eu apago. Ou simplesmente fico vendo desenhos e filminhos na televisão ao lado dele, fazendo perguntas. Às vezes incomodo tanto ele que ele diz – tá bom, mãe, agora com licença que eu tô vendo meu filme. Isso pra mim é uma curtição.

Além disso, tudo que ele faz que é típico de um autista eu levo como uma característica dele e me divirto. Outro dia ele comentou: “mãe, como a casa do seu amigo é grande e chique né?” “É sim, Ricardo”. Ele perguntou: “os ricos têm casas grandes e chiques?” Eu disse que sim, a maioria tem. E ele: “quem é a maioria mãe, sua amiga?” Ao invés de eu ficar preocupada porque ele não tem o entendimento adequado das palavras, eu morri de rir! E adoro contar essa história.

Em julho fizemos uma viagem para um hotel muito legal na beira da praia, eu achei que ia ser ótimo, as crianças iam adorar! Mas tirar o Ricardo do quarto foi um parto! Queria tomar café da manhã no quarto, ficar vendo televisão. Um dia amanheceu chovendo e ele ficou feliz da vida, falou – Yes! , com aquela puxadinha do braço pra baixo. Eu rachei de rir e fiquei vendo televisão no quarto com ele, sem frustração. É uma entrega.

A alimentação dele é muito restrita, não gosta de nada, e o que gosta é tudo porcaria que engorda. Eu digo que ele esta virando um gorduchinho, e pego a barriga dele. É uma preocupação que eu tenho, a alimentação dele? Sim, e bem forte. Mas não faço disso um drama, e acho um jeito de me relacionar com ele em relação a isso. Ele mesmo já faz graça disso quando eu falo para ele parar de comer. – Por que, mãe? Eu tô ficando gordinho… E faz uma bochechona e pega na barriga dele mesmo. Não vou deixar ele comer tudo que quer e nem de fazer um trabalho para mudar sua alimentação (estou começando esse projeto agora), é só uma questão de não dramatizar tudo.

E eu faço um monte de pegadinhas com ele pela falta de entendimento dele de algumas coisas, sem o menor drama! Ele não gosta de ir pra aula, chega no sábado eu falo: agora vai botar a roupa pra eu te levar pra escola. Ele fica parado me olhando… “É brincadeira, mãe?”

E não é que ele pegou o jeito e faz pegadinhas também? Outro dia a professora me contou que ele descobriu onde era o disjuntor que apagava as luzes da escola e combinou com ela que ele iria desligar e fingir que tinha faltado luz!

(En)Cena – E de que forma a sociedade pode contribuir para o desenvolvimento e inclusão de crianças autistas?

Raquel Rossi – Temos uma dificuldade muito grande, porque a maioria das pessoas acha que o mundo é competitivo e temos que criar nossos filhos para esse mundo, senão, serão engolidos. Bom, mas se é ruim essa sociedade tão competitiva, por que repetir esse padrão? Não deveríamos ensinar o contrário para nossas crianças, para elas mudarem o que está errado?

Temos muito que avançar ainda. E a inclusão nas escolas tem que ser o começo. A convivência com as diferenças desde cedo é que faz elas desaparecerem. Tenho um filho típico mais novo que o Ricardo, e vejo que ele, em razão da convivência, não percebe uma diferença. Aliás, percebe, mas é tão natural aquilo que não lhe chama atenção. Já está acostumado com aquele comportamento do irmão. – O Ricardo não gosta de brincar né, mãe?

Quanto mais cedo as crianças conviverem com as diferenças, menos elas vão estereotipar, e a aceitação passa a ser natural.

(En)Cena – Qual o seu recado para pessoas que convivem com crianças autistas?

Raquel Rossi – Cada criança é muito diferente da outra. Não existe um padrão. Não fique preso aos textos técnicos, aos tratamentos, aos métodos. Vá aprendendo dia a dia com ela, no sistema erro acerto. O que deu certo pra mim pode não dar certo pra você. Ah, mas o método X diz isso. Tudo bem, mas pode ser que não funcione com seu filho. Temos que ter essa percepção.

E não a veja como um autista, que tem que ser tratada como um autista. Você tem que libertá-la. Veja uma criança. Uma criança com dificuldades que precisa de você para superá-las. E digo que se você não está conseguindo aceitá-la, não está conseguindo amá-la, vá procurar tratamento urgente, porque quando conseguir se liberar dessa barreira, tenha certeza que muita coisa vai mudar pra você, e pra melhor.

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