Transtorno do Espectro Autista: abordagem histórica e social
1 de setembro de 2022 Glaub Silva dos Santos
Insight
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A neurodiversidade que hoje compreendemos de forma mais ampla, ainda que não tão conhecida pela sociedade por completo, por tempos fora taxada como doença mental, homens, mulheres e crianças que não se encaixavam nos padrões de comportamento da sociedade eram enviados a manicômios para viver alheios à sociedade, perdendo seus direitos, cerceando sua liberdade e as forçando a viver sem o mínimo de dignidade, tudo isso alicerçado no discurso médico da época que “subtrai a totalidade subjetiva e histórico-social a uma leitura classificatória do limite dado pelo saber médico […] uma leitura produtora da redução, exclusão e morte social” (CARVALHO, 1995).
Após a luta do movimento antimanicomial, esses homens e mulheres que eram encarcerados com o rótulo de doentes mentais começaram a ter sua dignidade restituída, e passou-se a encontrar novas formas de tratamentos e diagnóstico de transtornos mentais de forma correta, para o melhor tratamento destes indivíduos. Dentre estes encontramos o transtorno do espectro autista que apresenta os seus sintomas já na primeira infância, sendo caracterizado como uma neurodiversidade que pode apresentar diferentes formas de manifestação de sintomas.
Em 1943 foi diagnosticado pela primeira vez em 11 crianças o transtorno do espectro autista, que na época fora denominado pelo Dr. Leo Kanner como um “distúrbio inato do contato afetivo”, ainda que condições idênticas tais como a destes casos.
Para Kanner essas crianças nasciam com um desinteresse pelo contato social, apresentando também resistência a mudança, caracterizou as como portadoras de uma “insistência nas mesmas coisas” pois apresentavam comportamentos de pânico e séria perturbação gerada pela desordem ou mudança de rotina, podendo também apresentar rigidez quanto ao tipo de roupa e comida, comportamentos motores aparentemente sem função específica, conhecido como estereotipias, bem como comportamentos de repetição de fala tardia ou imediata, ou até mesmo a emissão de apenas uma parte da ecolalia com a alteração no restante do conteúdo da fala, a ecolalia mitigada.
Fonte: Autoria de José Nicolas, Crianças em hospital psiquiátrico no Líbano em 1982
Para Kanner, o diagnóstico de autismo se dava por meio de duas grandes características, sendo eles em primeiro lugar o isolamento social, e em segundo os “comportamentos anormais” e a insistência nas mesmas coisas (DO AUTISMO, Federação Portuguesa. Autismo. 2017.).
A medida que os anos foram passando, o nosso conhecimento enquanto sociedade foi se aprofundado acerca dos mais diversos temas, entre eles o conhecimento sobre o TEA, já em 1970 chegou-se ao consenso de que o autismo era caracterizado por déficit no desenvolvimento social de um tipo muito diferente em comparação ao das crianças típicas; déficit na linguagem e em habilidades de comunicação; resistência à mudança, rigidez comportamental atrelada a rotinas, estereotipias; início nos primeiros anos de vida. (DO AUTISMO, Federação Portuguesa. Autismo. 2017)
Durante muito tempo foi acreditou que todos os autistas apresentavam também deficiência intelectual o que na realidade mostrou-se falso, e que o que realmente se apresentava como fator determinante para o desenvolvimento cognitivo desses indivíduos é a adesão precoce a intervenções que estimulem as áreas que apresentem atraso, proporcionando o desenvolvimento esperado para cada marco do desenvolvimento.Por outro lado, a mídia por vezes buscou fortalecer a mentalidade de que todos os indivíduos autistas têm capacidades cognitivas acima do esperado para atividades específicas, como música, desenho, memória, ou até mesmo calcular calendário para eventos do passado ou futuro, como podemos perceber no filme Rain Man. No entanto, este tipo de habilidade é rara entre os indivíduos com TEA.
Atualmente com a evolução das nossas descobertas científicas, e estudos mais aprofundados e conscientização social, é possível perceber que os indivíduos com autismo passam a ter lugar de fala na sociedade, já não há mais a sensação de que é algum tipo de fenômeno que acontece longe de nós, e que estas crianças, homens e mulheres, apenas apresentam uma forma diferente da nosso de estar no mundo, o sentem e respondem a ele de uma forma diferente, a sua neurodiversidade por vezes os fará capaz de ter compreensões mais profundas sobre algumas realidades que mundo enfrenta, como a crise ecológica que vivemos e tão bem interpretada por Greta Thunberg e passa a lutar pelo nosso meio ambiente, buscando a preservação da vida no nosso planeta.
Faz-se necessário compreender mais e acolher estes indivíduos neurodiversos, promover políticas públicas que auxiliem as famílias que não conseguem arcar com o tratamento para gerar dignidade para estes indivíduos, fortalecendo as redes de apoio, preparando as escolas para que possam ter oportunidades como os indivíduos considerados como típicos.
Referências
CARVALHO, Andréa da Luz; AMARANTE, Paulo. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. In: Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 1995. p. 143-143.
Eu sou diferente, não inferior Dra. Temple Grandin
A princípio parece difícil relacionar pessoas com algum transtorno do desenvolvimento, principalmente mulheres, em áreas de conhecimento que por muito tempo a prevalência de homens era total, a saber, o manejo de animais. Pois bem o filme Temple Grandin apresenta a história real de Temple, uma mulher autista (de alto funcionamento) que conseguiu se desenvolver com a ajuda de sua mãe e família, ter acesso à educação e uma vida dentro de suas possibilidades, que aliás foram incríveis, pois se tornou um nome importante na história da ciência animal.
Fonte: https://bit.ly/3eVDUsR
O filme conta a história de sua vida: aos 4 anos ainda não falava, emitia comportamentos de birra, tinha dificuldades de socialização e interação com outras crianças, não gostava de receber toques, apresentava hipersensibilidade a barulhos e seletividade alimentar. Foi nesse momento que Temple recebeu o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) de um médico e, junto dele, a proposta para que sua mãe a internasse, uma vez que não havia tratamento para tal. A mãe de Temple recusou a proposta e seguiu tentando ensinar a ela repertórios comportamentais (falar, reconhecer imagens). Mesmo sozinha e com dificuldades teve ótimos resultados, pois a filha desenvolveu um bom repertório verbal e intelectual.
O TEA, de acordo com o DSM-5, caracteriza-se por déficits na comunicação e na interação social em diversos contextos, engloba dificuldades na reciprocidade social, em comportamentos não verbais de comunicação usados para interação social e em habilidades para desenvolver, manter e compreender relacionamentos. Também pela presença de padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades, dificuldades em movimentos motores, uso de objetos ou fala estereotipados ou repetitivos, padrões comportamentais verbais ou não verbais, interesses fixos e extremamente restritos que são anormais em intensidade ou foco e hiper ou hipo reatividade a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente (APA, 2014).
A avaliação realizada pelo médico para identificar e realizar o diagnóstico foi baseado numa entrevista com a mãe, solicitando que explicasse os comportamentos que a criança emitia ou não e, segundo o médico, não havia terapias voltadas para o desenvolvimento de crianças autistas e que a solução seria a internação. Atualmente, existem diversos métodos de avaliação e tratamento para crianças autistas. Os mais comuns à realidade da Psicologia (e equipes multidisciplinares) brasileira serão apresentados a seguir.
Para a avaliação podem ser usadas as Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com TEA, do Ministério da Saúde, voltadas para equipes multiprofissionais, e que servem como instrumento de auxílio nos atendimentos, uma vez que oferecem orientações ao cuidado da saúde de pessoas com TEA e seus familiares (BRASIL, 2014). Outra ferramenta é o Protea-R Sistema de Avaliação da Suspeita de TEA, também direcionado a vários profissionais da saúde, que serve como instrumento de rastreio, tanto para identificar sinais suspeitos de TEA como de transtornos da comunicação em crianças de 24 a 60 meses (BOSA; SALLES, 2018). Tem-se, ainda, o VB-MAPP – Avaliação de marcos do comportamento verbal e programa de nivelamento, usado como instrumento de rastreio para avaliar os comportamentos e habilidades os quais a criança já adquiriu, bem como as dificuldades que a impedem de aprender (MARTONE, 2016).
Fonte: https://bit.ly/2CMKpBl
Logo, após a avaliação, o profissional consegue planejar o atendimento voltado para estimulação e ensino de repertórios comportamentais. Dentre os tratamentos comumente utilizados nas práticas de terapia de estimulação de crianças autistas em nossa realidade, tem-se a terapia baseada na Análise do Comportamento Aplicada (ABA) e o Modelo Denver, um método de intervenção precoce. Ambos são voltados para o ensino de repertórios de comportamentos pautados em ciências comportamentais e, por meio dessas práticas, as crianças conseguem aumentar seu leque de comportamentos e habilidades sociais, bem como ampliar suas possibilidades (BORBA; BARROS 2018; LOHR, 2016).
O filme inicia com Temple já adulta se apresentando: “eu não sou como as outras pessoas, penso com imagens e as conecto”, e durante a narrativa é possível identificar como o cérebro dela funciona e como se comporta. No verão de 1966, no Arizona, ela foi passar as férias na fazenda de sua tia, para pensar na possibilidade de ir para a faculdade, pois naquele momento estava com uma certa resistência à ideia, devido a sua dificuldade em ter contato com outras pessoas, e foi lá que descobriu seu gosto por animais, especificamente suas habilidades com vacas.
Até então, foi possível observar comportamentos relacionados ao autismo, como pouco repertório social para cumprimentar as pessoas, sentar-se à mesa, só se alimentar de gelatina e iogurte, compreender qual era seu quarto naquele contexto (tanto que foi preciso identificar a porta do seu quarto), e um pouco resistente a mudanças. No seu contato direto com a rotina e atividades da fazenda e do gado, Temple aprendeu com o vaqueiro um método utilizado para acalmar o gado antes da aplicação de vacina: o animal, em fila, passava por um corredor, no próprio curral, até chegar à uma máquina de madeira que o imobilizava, tranquilizando-o. Logo, diante de situações que lhe causavam pânico, ela passou a reproduzir o comportamento das vacas, passando pelo corredor até chegar no objeto de madeira e se sentir abraçada pela máquina para que pudesse se acalmar.
Ao final do verão, Temple retornou para a cidade, indo para a Universidade Franklin Pierce para cursar Psicologia; no entanto, teve dificuldades de adaptação: o barulho dos universitários, o contato com as pessoas e o método de ensino a incomodavam tanto que a levou a construir uma máquina de madeira (máquina do abraço) para se acalmar, semelhante à usada na fazenda com as vacas. Porém, essa máquina não foi aceita no campus, pois no dormitório não podia ter objetos grandes e, além de tudo, ela dividia o quarto com outra pessoa que não a compreendia.
Fonte: https://bit.ly/32RO3oc
Ela chegou a explicar a necessidade da máquina para o coordenador da universidade, mas ele não aderiu à ideia, o que a levou a fazer uma pesquisa que justificasse que tal máquina poderia ajudar as pessoas a relaxar. Muito tempo depois, ela conseguiu provar sua teoria e o mesmo homem a elogiou pela pesquisa e método utilizado. Ela foi readmitida à universidade e passou a ter uma companheira de quarto cega, e ambas mantiveram um bom relacionamento, que favoreceu Temple a desenvolver repertórios sociais, pois teve que aceitar o toque ao ajudar a guiar sua amiga e narrar filmes enquanto assistiam juntas.
Quando concluiu o curso, Temple fez o discurso de formatura, mostrando o quanto evoluiu, pois, falar e estar em ambientes com muitas pessoas era difícil para ela. Após a graduação, por incentivo do professor Carlock, ela seguiu os estudos naquilo que mais gostava, o manejo de animais, e passou a desenvolver pesquisas na área, se tornando mestre em ciência animal.
Durante suas pesquisas no mestrado, Temple foi ignorada e motivo de piada por muitos fazendeiros importantes para a sociedade da época, simplesmente por ser uma mulher nessa área de conhecimento; chegaram a falar que ela deveria considerar outra área de trabalho. Foi barrada de entrar no abatedouro no qual fazia a pesquisa, vinculado a universidade, a mesma chegou a vestir trajes de fazendeiros e trocou de carro por uma camionete para entrar no ambiente. Ela sempre os ignorava e seguia com seus objetivos, algumas piadas ela não entendia, fato que está relacionado a características autistas, pois possuem dificuldades na compreensão de metáforas e palavras abstratas.
Outras dificuldades surgiram pelo mesmo motivo, como ter sua pesquisa rejeitada por fazendeiros vinculados a instituição, mas ela insistiu até conseguir. Ao ter contato com formas agressivas de tratar o gado antes do abate, ela desenvolveu um projeto que tornava esse momento menos agressivo ao gado, dizendo que “criamos o gado para nós, a natureza é cruel, mas não deve ser. Devemos-lhe algum respeito”. Apesar de tudo, Temple continuou desenvolvendo pesquisas, alcançando pessoas com interesse no seu trabalho e, após seu título de mestrado, Temple iniciou seu doutorado, se tornando uma pessoa extremamente importante para a área de manejo animal.
Temple Grandin e sua intérprete Claire Danes. Fonte: https://bit.ly/3eVFf2R
O filme encerra com Temple na Convenção Nacional de Autismo em 1981, falando sobre sua trajetória de vida, da autoestimulação, do acesso à educação e dos seus títulos, o que surpreendeu muitas mães, inclusive a sua própria mãe, por estar falando em público. Por fim, o filme levanta pautas importantes: uma mulher autista, que por muito esforço e paciência de sua mãe conseguiu se desenvolver e ser uma autista de alto funcionamento e que revolucionou as práticas de manejo racional de animais em fazendas e abatedouros, relacionando a psicologia com o manejo de animais, por meio de estudo do comportamento do gado.
FICHA TÉCNICA:
Título Original: Temple Grandin Direção: Mick Jackson Elenco: Claire Danes,Julia Ormond,Catherine O’Hara,David Strathairn; Origem: EUA Ano: 2010 Gênero: Biografia, drama;
REFERÊNCIAS:
ASSOCIAÇÃO DE PSIQUIATRIA AMERICANA (APA). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2014.
BOSA, Cleonice Alves; SALLES, J. F. D. Sistema PROTEA-R de avaliação da suspeita de Transtorno do Espectro Autista. 1. ed. São Paulo: Vetor, 2018. p. 1-183.
BORBA, M. M. C.; BARROS, R. S. Ele é autista: como posso ajudar na intervenção? Um guia para profissionais e pais com crianças sob intervenção analítico-comportamental ao autismo. Cartilha da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental (ABPMC), 2018.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo (TEA). Brasília, 2014. 86 p.
LOHR, T. Resenha. Educ. rev., Curitiba, n. 59, p. 293-297, março de 2016. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602016000100293&lng=en&nrm=iso>. acesso em 05 de julho de 2020. https://doi.org/10.1590/0104-4060.44618 .
MARTONE, M.C.C. Adaptação para a língua portuguesa do Verbal Behavior Milestones Assessment and Placement Program (VB-MAPP) e a efetividade do treino de habilidades comportamentais para qualificar profissionais. 2016. 265f. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de São Carlos. 2017.