O Brasil e a banalidade do mal

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A maioria dos genocídios ao longo da história se deu por meio de ações declaradamente violentas, sangrentas e por uso da força. Já o genocídio Bolsonarista acontece sem que os assassinos precisem sujar suas mãos ou se exporem. Basta não fazerem nada, basta deixarem que aconteça. Mesmo as ações utilizadas para acelerar o processo, são sutis e singelas. Podem até serem confundidas com um pequeno engano, uma piada, uma ignorância inocente ou uma preocupação legítima: “esquecer” do uso da máscara, compartilhar ou inventar mentiras, falar uma bobagem qualquer usando a si próprio como exemplo de validação,  indicar terapêuticas aparentemente inofensivas, criticar o isolamento social em prol do direito ao trabalho e a renda.

O genocídio Bolsonarista não precisa provocar muito barulho e nem se colocar na cena das mortes; é limpo e covarde. Sua perversão e crueldade está sobretudo, na sutileza e na invisibilidade  As pessoas podem ser enviadas para a morte com uma “inocente” mensagem de WhatsApp ou um vídeo na TV.

Hannah Arendt, em sua leitura sobre o julgamento de Eichmann por crimes de genocídio contra os judeus, afirmou que não foi necessário um monstro cruel e perverso para instrumentalizar as atrocidades comandadas por Hitler e o Nazismo, durante o Holocausto. Bastou um burocrata obediente, sensato e disciplinado, disposto a cumprir ordens e fazer o seu trabalho de modo eficiente. Bastou que Eichmann cumprisse seu papel e se deixasse levar pelo que Arendt chamou de “banalidade do mal”. O que não faz dele menos responsável, vale salientar.

Fonte: encurtador.com.br/uvA08

O Brasil de 2020 e 2021 está infestado de Eichmanns. São médicos e instituições médicas que não se pronunciam frontalmente contra o negacionismo e o uso indiscriminado de medicamentos e terapêuticas sem prescrição devida. São Universidades, instituições de ensino e pesquisa, cientistas e pesquisadores que silenciam diante de um governo que não respeita a ciência e a invalida. São empresários e comerciantes que fazem manifestação pelo direito de colocar seus trabalhadores e clientes em risco, ao invés de se mobilizarem pela vacinação em massa.  São oportunistas de toda ordem que fecham os olhos para aceitarem cargos, privilégios e promoções dentro desse governo. É o Centrão que insiste em apoiar um governo sem condições morais, éticas, intelectuais, políticas e nem mesmo estéticas, para governar nosso país. São homens da lei que se escondem atrás da legalidade e da burocracia, para promoverem mais mortes. São os cínicos que assistem o massacre do alto de seus privilégios ricos e brancos, sem nada fazer. São os veículos de comunicação que se escondem atrás da “isenção jornalística”, a fim de sustentarem os discursos que lhes convém. São os artistas, os comunicadores e influenciadores de toda ordem que “não querem se meter em política”. São padres, pastores, guias, mestres e líderes religiosos que usam o nome de Deus para matar sem culpa. São todos que, munidos de algum privilégio, influência ou poder, decidem apenas lavar suas mãos, nesse caso, literalmente. E, finalmente, temos ainda os débeis, os deliroides e os idiotas que parecem gozar e se gabar, enquanto seguem convictos e crentes, em direção à própria morte e a dos seus.

O Brasil caminha a passos largos para 400 mil mortes, e sabemos que muitas delas poderiam e podem ainda serem evitadas. Bolsonaro não é responsável por todas essas mortes sozinho, deverão ser julgados juntos com ele, todos aqueles que, como Eichmann decidiram apenas “contribuir com sua parte para o nosso belo quadro social”.

Então, se você se percebe anestesiado pela “banalidade do mal”, mas não quer ser cumplice de todas essas mortes, desperte, se mova e grite: FORA, BOLSONARO GENOCIDA!

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Urso Branco: o culto à violência e a banalização do sofrimento

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Imagine acordar e não saber onde está e nem quem você é. A ideia por si só parece assustadora o bastante para alguém conseguir lidar – mas imagine acordar nessas condições e se deparar com uma situação caótica de caça, sendo você a presa. É nesse cenário que Victoria Skillane se encontra, protagonista do episódio Urso Branco (White Bear).

Considerado pelos telespectadores da série um dos episódios mais perturbadores da série Black Mirror, White Bear constrói uma atmosfera de tensão do começo ao fim, levantando muitas dúvidas ao longo das cenas, devido não só à situação apocalíptica que se desenrola por boa parte do episódio, mas principalmente pelo desconhecimento em torno da identidade de Victoria, que se apresenta como uma estranha até para si mesma.

Permeado por muitas cenas de ação e perseguição, o episódio prende facilmente o telespectador, que é guiado por uma jornada de mistérios. O desenrolar das cenas provoca muita confusão e tensão e nos prepara para o clímax: a revelação da identidade de Victoria e os motivos da perseguição em massa. A grande reviravolta no final do episódio nos leva a colocar na balanças nossos valores e a repensá-los.

Fonte: https://goo.gl/rhmtHn

Para entender melhor o desenvolvimento do enredo e a mensagem por trás da história de Victoria, é preciso que nos situemos em relação ao episódio. Sendo assim, ele pode ser dividido em duas partes. Ambas funcionam como críticas massivas à determinadas condutas observadas atualmente na sociedade, mas abordam esse tema de maneiras diferentes.

Primeira Parte: A Perseguição e a Documentação.

O episódio começa com cenas da personagem acordando e aparentando estar muito atordoada. Seus pulsos estão enfaixados e pílulas estão no chão, fazendo-nos concluir que ela havia tentado cometer suicídio. Ela anda pela casa e tenta reconhecer o ambiente, mas é perceptível a sua confusão. Victoria encontra dois televisores ligados, mostrando apenas um símbolo em um fundo preto. Encontra também duas imagens: uma dela com outra pessoa e outra de uma criança. Ao tocar a imagem da criança, ela tem um rápido flashback de seu rosto. A personagem sai então para explorar o ambiente fora da casa e encontra um homem com um celular na mão, filmando-a, além de pessoas na janela de um prédio fazendo o mesmo. Ela tenta conseguir respostas, mas ninguém diz nada.

O silêncio das pessoas com seus celulares e o clima de suspense já instalado desde o início do episódio é seguido por uma cena perturbadora que desencadeia uma série de eventos. Victoria observa um carro à distância, e quando o motorista sai, ele está usando uma máscara (com o mesmo símbolo apresentado na televisão) e segura uma arma de fogo. A perseguição é iniciada: a personagem corre pela cidade e é cercada por espectadores silenciosos, documentando cada passo dado por ela, sem interesse em ajudá-la e sem demonstrar qualquer sensação de medo perante a situação. Quando Victoria chega a um posto de gasolina, encontra duas pessoas que aparentemente agem de maneira normal. Os três correm para uma loja de conveniência e fecham a porta.

O atirador quebra a porta com a arma e uma das pessoas do posto, um homem chamado Damien, tenta detê-lo, enquanto Victoria e a outra mulher escapam pelos fundos. Damien leva um tiro e fica para trás, sendo filmado pelas pessoas. Victoria e a mulher se escondem em uma casa. A mulher apresenta uma breve explicação da situação em que elas se encontram e, de repente, parecemos entender o que acontece no episódio: um sinal apareceu em todas as telas de televisores, computadores e celulares e fez uma espécie de lavagem cerebral nas pessoas, hipnotizando-as para apenas documentar tudo e não dizer ou fazer nada. Alguns não foram afetados pelo sinal e outros aproveitaram a situação caótica para roubar coisas, assustar e até mesmo matar pessoas. Sendo assim, a mulher apresenta um plano de fuga para Victoria e aponta um lugar no mapa chamado Urso Branco. Ao mesmo tempo, Victoria continua tendo flashbacks com a criança, algumas imagens dela mesma e de um homem.

Fonte: https://goo.gl/9Do7JU

As duas continuam fugindo dos caçadores, que surgem com bastões e outras ferramentas, quando quase são atropeladas por um carro. O motorista oferece carona para as duas. Victoria parece se lembrar dele e se lembrar de seu esconderijo na floresta antes que ele o mencione. Quando eles chegam ao esconderijo, o homem pega uma espingarda no carro, coloca uma máscara em Victoria e a obriga a se apoiar na mulher enquanto as duas caminham até uma espécie de matadouro humano, com pessoas crucificadas em árvores.

O homem amarra Victoria em um tronco de árvore e fala ao telefone com alguém, explicando que prenderá as duas nas árvores, como fez com as outras pessoas. Enquanto isso, a outra mulher foge e escapa de um tiro. Victoria clama pela ajuda das pessoas, mas elas continuam observando e filmando enquanto o torturador tira uma furadeira e a ameaça. Ela se safa quando sua companheira volta e atira no torturador, matando-o. As duas continuam a fuga até Urso Branco.

Victoria continua tendo flashbacks, dessa vez envolvendo um carro, fogo, a criança com um ursinho branco de pelúcia e um homem. Quando as duas chegam ao local, colocam em execução o plano de destruir a torre de transmissão e consequentemente desligar o sinal que aparece nas telas. Quando a mulher está prestes a incendiar o lugar, os caçadores chegam e ameaçam as duas com armas. A mulher é atacada e Victoria rouba a espingarda, atira em um dos caçadores, e, ao invés da bala, confetes saem do cano da arma e o cenário da torre se abre revelando um palco de teatro, com pessoas do outro lado aplaudindo calorosamente. Os caçadores e até mesmo a amiga de Victoria reverenciam o público, para logo após amarrarem-na em uma cadeira.

Parte Dois: O Julgamento

O apresentador do espetáculo mostra à Victoria a sua história, enquanto o público assiste silenciosamente. É revelado que Victoria e seu namorado Iain raptaram uma criança chamada Jemima (a criança dos flashbacks). Por meses, a única pista de seu desaparecimento era o seu ursinho branco encontrado nas investigações. O corpo de Jemima foi encontrado queimado e enrolado em um plástico na floresta. Iain cometeu suicídio na prisão, e é revelado também que o símbolo nas televisões se tratava de uma tatuagem do criminoso.

Fonte: https://goo.gl/JHeE53

Tudo o que Victoria fez foi documentar o sofrimento da criança em seus momentos finais. Ao ter consciência das informações, Victoria chora e pede desculpas ao público, desesperada. Logo após, ela é colocada numa redoma e transportada pela cidade, exposta aos xingamentos e humilhações do público, que se delicia com seu sofrimento. O percurso a leva para a mesma casa em que ela havia acordado, e a partir daí entendemos tudo. Victoria é diariamente submetida a torturas psicológicas e físicas para perder sua memória. Assim, todos os dias a mesma encenação é colocada em prática, com os caçadores, observadores e a ajudante cumprindo seus papéis.

No final do episódio, ouvimos os gritos horríveis e desesperados de Victoria, que é deixada na casa submetida à tortura. Vemos também a preparação dos atores para mais um dia de perseguição, a montagem do cenário e as orientações dadas às pessoas que filmam.

White Bear nos coloca em um conflito moral. A maioria de nós concorda que Skillane, por seu ato cruel, merece uma punição. A questão é: até onde a punição atinge o limite de insensibilidade, tirania e insanidade? Desde o começo do episódio percebemos a situação sob a ótica da aparente vítima, e é nesse ponto que sentimos empatia e torcemos para que ela consiga sair do conflito ilesa. Quando no final do episódio conhecemos a real face de Victoria, nos deparamos com a possibilidade da personagem não ser a vítima, mas sim a agressora.

Os questionamentos centrais do episódio surgem a partir daí. O sofrimento em White Bear é exposto e consumido como um objeto causador de prazer e diversão, do começo ao fim do episódio. Na primeira parte, a crítica parece girar em torno da utilização da mídia para documentar e divulgar conteúdos carregados de sofrimento. Isso é algo bastante observável na sociedade atual, como quando, por exemplo, recebemos imagens de vítimas de acidente por Whatsapp ou nos deparamos com correntes de Facebook expondo o sofrimento de diversas maneiras – de crianças com anomalias até pessoas mortas.

Fonte: https://goo.gl/YWLnNE

A insensibilidade em torno desses conteúdos é assustadora: as pessoas os repassam e os divulgam incansavelmente. Na série, esse tema é explorado num cenário apocalíptico em que as pessoas sofreram uma espécie de lavagem cerebral para agirem de forma insensível, mas na realidade isso já acontece, e está por toda a parte, enraizado e impregnado em nossa cultura.

A segunda parte do episódio também trata sobre a banalização do sofrimento, levantando a questão da justiça com as próprias mãos. A própria encenação do episódio, na série, é um evento que faz parte de uma espécie de “Parque de Justiça”, como um parque de diversões sangrento e violento, mas justificado pelo fato da personagem vítima da violência ter sido cúmplice de assassinato. Essa violência justificada revela outra face horrível do ser humano, representada pelo desejo por sangue, desejo por justiça a qualquer custo, o desejo de assistir e se deliciar com o sofrimento, mas, ao mesmo tempo, condená-lo. Tornamos-nos tão cruéis quanto os criminosos que apontamos diariamente, nos jornais, redes e mídias em geral, quando pedimos por mais violência para combater a violência. Esse desejo de justiça gera um evento catastrófico e cíclico de sofrimento e violência, visto hoje nos linchamentos e assassinatos justificados pelos “cidadãos de bem”.

Um caso recente que serve de exemplo é a morte da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, linchada por vizinhos após ser injustamente acusada de raptar crianças para rituais de magia negra. O boato surgiu nas mídias sociais e ganhou proporções assustadoras, levando a um assassinato cruel e justificado por outro crime, que foi desmentido.

Vivenciamos o nosso próprio White Bear diariamente quando somos espectadores silenciosos da violência exposta no cotidiano, quando matamos por “fazer justiça com as próprias mãos” ou quando só torcemos para que o outro mate. Temos nosso próprio parque de diversão do sofrimento, da falsa justiça, e gritamos de adrenalina e prazer a cada gota de sangue derramado.

Fonte: https://goo.gl/xfHVJv

Apontamos dedos para os que portam armas e facas, mas portamos também armas e facas. Igualamos-nos a qualquer criminoso quando esquecemos o básico: a valorizar a vida humana. White Bear não é apenas uma distopia, já temos nossas Victorias documentando o sofrimento de inocentes e já temos nossos falsos justiceiros sedentos por sangue e violência. E a qualquer momento podemos ser a vítima. A qualquer momento podemos ser também o caçador. Seremos prisioneiros da violência eternamente enquanto quisermos limpar sangue com sangue. Não haverá justiça ou paz: apenas o mesmo ciclo de ódio, repetido todos os dias e sustentado por uma sociedade doentia e sanguinária.

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