Depois Daqueles Beijos

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Queria trabalhar umas ideias baseado na crueldade de alguns diretores-autores de filmes e seus roteiristas. A palavra crueldade não saía da cabeça, porque existem determinados filmes que nos rodopiam e cujos argumentos, direção e desfechos nos colocam em verdadeiros labirintos do Minotauro sem uma linha sequer para encontrar a saída.

Mudei a palavra crueldade para sacanagem. Prefiro a última pelo teor mais jocoso e ao mesmo tempo conservando minha ideia-trama inicial. Nos últimos dias, tive oportunidade para um encontro com situações e histórias de vidas nas quais a crueldade é uma constante. Não gostei.

Crueldade é desmedida do excesso, ultraja, viola e permite até mesmo um gozo para além de quem a pratica. Cruel, crudelis, cruor, crudus, aquilo que é cru sem possibilidade de digestão. Por exemplo, o sistema penitenciário brasileiro é resultante de uma política de gerenciamento extremamente cruel, não importa quem sejam os “hóspedes” das penitenciárias e seus crimes. Parece que a falsa retórica dos direitos fundamentais e crueldade se irmanam nessas situações. Sem falsos juízos para com os “hóspedes”, entretanto defrontar-se com ambientes, retornam à minha cabeça uma reflexão sobre a banalidade do mal e a desmesurada crueldade. Isso não passa pela discussão dos filmes que trago a baila.

Prefiro trazer a sacanagem, enquanto possibilidade do realizador do filme, que rompe com sentido comum da linguagem, deixa-nos a possibilidade de viver um turbilhão emocional e existencial na pós-projeção. Gosto de realizadores com essa natureza sacana porque eles intencional ou intuitivamente transgridem ao narrar histórias, gestos, atos, sons e luz. E quando querem nos deixam a ver navios, propondo-nos: – Resolvam o problema agora em suas vidas?

Existem alguns filmes, mesmo que não façam tanto barulho nomainstream que trazem essa presença de uma sacanagem paradoxal do realizador. Isso me recorda do quadro pintado por René Magritte, em 1935, “A ponte de Heráclito”.

A ficção se mostra tão real que nos questionamos sobre nossa existência no dia a dia. Quais são as fronteiras entre a realidade e a ficção? O que se vê é de fato o que se apresenta como real em sua totalidade? As fronteiras entre o filme a realidade são tênues ou modeladas com cercas de arame farpado. Alguns realizadores conseguem engendrar novelos que nos confundem e auxiliam a pensar de uma maneira melhor ou pelo menos, quebrar algumas ideias e fazer com que vejam o cru e o indigesto começando a pensar sobre ele.

Nesse caminho de argumentação é que me embarco, porque os realizadores (alguns filmes maquinal e financeiramente são “dirigidos” não por “caras” que curtem o cinema, mas por outros que ora deixaram de se comprometer com a sétima arte ora fizeram apenas uma obra e dela tentam sobreviver até hoje, poucos se permitiram inovar) sacanas são como agulhas no palheiro. Difíceis de encontrar e perigosas quando localizadas. Os roteiros também fazem parte desse agulheiro escasso. É triste roteiro sem bússola, mal ajambrado para midiatizar celebridades instantâneas ou que se esvai para o lugar comum.

Nesta difícil categoria de realizadores com seus roteiros respeitosos apresento alguns para deleite dos leitores em suas horas de filmes. O realizador sacana com sua obra consegue mesmo que reduzido aos planos dos aparelhos de TV domésticos, fora da grande telona do templo chamado cinema (que horror pensar sobre os cinemas que foram destroçados para virar outros templos!!!), com suas propostas de entretenimento nos fazem pensar e muito. Trago alguns deles, sem muito suspense, elaborei um elenco de parte dos filmes e dos seus “sacanas”. Os filmes poderão ser encontrados em videolocadoras e sites na internet. O critério de escolha foi “A ponte de Heráclito”. Vamos a eles, então.

  1. Para antes “Daqueles beijos”

Calma, de maneira alguma pretendo fazer apologética do primeiro beijo “gay” global no país continental em cadeia global-nacional, muito menos do segundo e do terceiro beijo, todos seguindo orientações sexuais e faixas etárias segmentadas. Novela é parecida com amor de estudante adolescente, as férias chegam e logo passa o sentimento, semestre novo… possíveis amores novos. A imitação da Bruxa de Oz casada com o carneirinho obeso vivendo numa casa ultrajantemente espetacular e a brincarem de superfamília homonormativa não fica na saudade, restarão em estudos acadêmicos daqui uns dias. Vai ficar saudade do beijo das senhoras? De forma positiva para o ainda conservador país pouca coisa resta.

Antes “Daqueles beijos” existem outros. Não apenas os beijos do mainstream de Brokeback Mountain, que somente fez Hollywood e seus chatos conservadores investidores aceitarem a temática GLS pelo ângulo da tragédia. Menciono outros filmes que agora passam a ser descobertos pela juventude, graças aos sites da internet, que saíram do armário digital há muito tempo.

Muitas pessoas me perguntam sobre quais filmes assistir para um maior aprofundamento e entendimento sobre a temática homossexual no cinema. De maneira alguma não sou historiador e crítico de cinema especializado, nem quero essa alcunha para mim, isso recorda os comentaristas “embestalhados” e ridiculamente deslumbrados das redes de TV em cerimônias de tapete vermelho. A herança underground e alternativa, antes do Festival de Sundance se transformar numstand de vendas oficiais, fizeram-me viajar por vários gêneros narrativos e a aprender a conhecer filmes e diretores a partir de seus contextos. Isso possibilita indicar alguns filmes para deleite e deixar tantas outras pessoas sacaneadas, embasbacadas e com riso maroto com as armadilhas-arapucas das narrativas cativantes. Outro ponto para não esquecer: filme sacana tem que ter ator-atriz sacana ou pelos aprendizes.

Antes “Daquele beijo” aconteceram muitos outros – de boca, de língua, com abraço, sem abraço, de apenas olhar – entre homens-homens e mulheres-mulheres. A cinematografia nacional e internacional é plena de exemplos, desde os beijos implícitos de olhar-olhar de uma Inglaterra que criminaliza a homossexualidade nos anos sessenta do século XX até o escancarado beijo do folhetinesco “Bangkok Love Story” (título original traduzido daquela língua complicada deles: “Amigo, eu te amo”) filme tailandês escrito e produzido por Poj Amon em 2007, e olha que Tailândia é bem reaça quanto a isso. O que deveria ser um extrato-trailer no Youtube é o resumo de toda a história, assistam e prestem atenção no grande amasso entre os dois personagens. (http://www.youtube.com/watch?v=4Iz7g6na6Ag). O filme é um enjoo só, porque a trilha sonora repetitiva, o argumento único que se usado ao extremo e uma narrativa que nunca termina fazem com o estômago embrulhe, mas ao final, você leva um susto e se pergunta: PQP.. por que tanta desgraça?

(Fonte: http://wisekwai.buzznet.com/photos/entertainment/?id=17799101#id=17516221&p=18)

Para além dessas informações iniciais, um aviso é necessário: a produção cinematográfica dos filmes com temática GLS antes marginalizada após a “hollywoodinização” de Brokeback Mountain (2005) ganhou grande impulso, assim muita porcaria foi produzida com ares Cult em inúmeros países do ocidente e do oriente. Muitos são peças produzidas que ficam uma ou duas semanas em uma ou duas salas de cinema de grandes centros urbanos ou vão direto para as prateleiras das locadoras (antes de vídeo, já em extinção, e hoje de DVDs, também em extinção e, mais agora para os pay per views dos canais privados ou… pior ainda, quando aquele canal brasileiro que ninguém vê transmite às 3h da madrugada).

Destaco três filmes para começo de conversa. O primeiro deles é Happy Together, produção de 1997, dirigida por Wong Kar-wai, lá de Hong Kong. O filme trouxe dois atores primorosos, Leslie Cheung (que se suicidou em 2003) e Tony Leung Chiu-Wai. A obra foi exitosa em muitos lugares mundo afora e ganhou inúmeros prêmios.  Wong Kar-wai foi um grande sacana com esse filme, porque trouxe duas personagens desencontradas e infelizes, desajustadas em suas vidas e a procura de redenção. Dá para imaginar, dois chineses viajando para Buenos Aires e em busca das Cataratas do Iguaçu, pelo lado argentino. Ora juntos ora separados, um vampirismo emocional destruidor entre ambos. E o diretor nos sacaneia intercalando cenas em preto e branco e a cores quando estão felizes ou infelizes, e finaliza a história com uma explosão de cores. No filme, Caetano Veloso canta “Paloma” quando as cataratas são apresentadas num sobrevoo geral (http://www.youtube.com/watch?v=iQe6v0v_0uQ),  muito antes de Almodóvar utilizar-se dele com a mesma canção em Hable con Ella  (http://www.youtube.com/watch?v=-CsA1CcA4Z8).

Wong Kar-Wai seduziu-se com esse filme porque deixou a pergunta-sacanagem: o amor e a liberdade andam juntos, a felicidade é a cores ou preto e branco? Wong traz uma trilha sonora impecável que torna a narrativa cativante. Claro, não se deve esperar o ritmo de grande parte dos filmes estadunidenses, porque aqui é filme oriental e as noções de tempo e espaço possuem outro tratamento.

O filme termina e você fica com aquela sensação pós-moderna de esvaziamento de sua subjetividade, desconforta e ao mesmo tempo, consola falsamente ao propor que a solidão é melhor do que ser feliz juntos (http://www.youtube.com/watch?v=_bckIIoXSHA).

De Happy together vamos para o ano 2.000 e se encontra com Plata Quemada oriunda do romance de Ricardo Piglia e dirigida por Marcelo Piñeyro. O filme é morte anunciada, Piñeyro deixa isso bem claro, ao apresentar as personagens e suas desgraças com altas cargas de culpas e dores. O pano de fundo é o assalto de grande soma de dinheiro com muitas pessoas mortas. A dupla de bandidos é um casal, Angel e Nene, mais conhecidos como os “gêmeos”.

O impressionante da história é que ficamos torcendo pelos bandidos. Angel é o logos  e Nene aphysis em sua mais completa desordem. O cenário faz-nos recordar da estética dos tempos da ditadura, afinal, a história retrata a segunda metade dos anos 60, a narração em off enobrece os tons escuros, atores e atrizes foram cúmplices para a credibilidade da história.

E ao final, Piñeyro nos sacaneia como uma sequência de imagens, ele nos impacta, mesmo que mostre a tragédia do amor, mas ressalta a importância do amar. Algumas imagens se remetem iconicamente a uma Pietá homoerótica.

Dou mais um pulo e vamos para a Coréia do Sul com os trabalhos de Leesong Hee-il. Este realizador introduziu no país que os “doramas” (gênero híbrido de drama com romance exagerado, para mim é igual a um dramalhão) fazem sucesso, o primeiro filme gay com nudez, direito a barracos dos protagonistas e final feliz. Para uma Coréia do Sul cheia de excelentes posições nos rankings de países com nível elevado de escolarização das crianças e jovens, ainda em 2006 o assunto era tabu por lá.

Leesong Hee-il utilizou de artimanha em seu filme. Traçou uma narrativa romanesca como as novelas açucaradas dos anos da ditadura no Brasil. Os mais idosos vão se recordar de novelas com as duplas Regina Duarte e Cláudio Marzo, Regina Duarte e Francisco Cuoco e outras similares, além das histórias rocambolescas: a menininha boa e ingênua que se apaixonava pelo filho playboy do patrão e que se via ameaçada pela futura sogra má e a noiva rejeitada do bom mocinho. Junto à mocinha ingênua tinha uma amiguinha maluquete e a humildade imperava em sua vida. As novelas mexicanas, venezuelanas e colombianas também seguiram essa rota desenhada pela cubana Gloria Magadan.  O primeiro filme mainstream  de LeeSong é No regret(Não arrependimento ou Não lamento) e baseia-se nessa rota rocambolesca.

Um rapaz, recém-saído do orfanato, tenta adaptar-se em Seul, conhece seu príncipe encantado rico, mas os desencontros são grandes. Ao recusar a possibilidade de um amor pela diferença de classes sociais (aqui as questões cultural e econômica evidenciam um tradicionalismo arraigado de preconceitos no país), assume a vida de dancer de uma boate e garoto de programa. Encontros-desencontros- beijos- amassos-chantagens-tentativas de homícidio-choro e a trilha sonora lacrimosa fazem o filme acontecer. LeeSong é repetitivo, mas usa da iluminação como grande arma e, os atores passam credibilidade.

Resultado do realizador sacana: a gente acaba torcendo pelo casalsinho romântico, leva-se susto com elas e se sente recompensado com o final feliz, após a tormenta. Cinemas lotaram por esse filme naquelas bandas e conseguiu também ganhar prêmios em festivais internacionais. Mesmo assim, a ousadia de Leesong foi para testar o público, foi mais além em outros filmes.

          (Fonte: http://yeppudaa.com/showthread.php?p=1796109)

Em uma de suas idas mais dura realizou, em 2012, White Night (Noite Branca, ainda não sei qual será a loucura abobalhada que os tradutores farão no Brasil com o título!!!). O filme produziu um barulhinho bom no 63º Festival Internacional de Cinema de Berlim. LeeSong sai do romance e mostra sua  verdadeira faceta e entrega para a Coréia o que ela esconde de si mesma. A faceta de LeeSong é trágica, o romance coke and pop corn pink do primeiro filme foi-se embora em White Night porque ele traz uma cidade e um país travestidos de progresso, entretanto a aceitação da homossexualidade projeta como algo para se tornar real como no primeiro filme, aqui vai por água abaixo.

LeeSong em uma só noite narra a história do encontro de dois estranhos para si mesmos e para o mundo. O primeiro foi vítima da violência homofóbica e sumiu, tornou-se um comissário de uma companhia aérea. Sua morada era nos céus, como uma árvore sem raízes e cujos ramos querem se sustentar sozinhos. Mas ele retorna à cidade em que a violência ocorrera, em uma só  noite e a fim de encontrar os culpados, agora em liberdade. Nisso, ele se encontra com outra alma solta, ummotoboy mensageiro.

Ambos se envolvem num novelo de desejos, recusas e rejeições. LeeSong coloca a vista de todos a infelicidade da nova geração do milagre tecnológico e econômico coreano. O filme é inteligentemente árido, com trilha sonora econômica e os atores conversam com olhares e gestos banais. O final é uma grande sacanagem, porque LeeSong deixa-nos sob a pele dos dois personagens e como um  triângulo amoroso impossível, a gente acaba querendo que tudo dê certo… o filme termina na tela mas continua em nós.

(Fonte: http://thekimchiqueen.blogspot.com.br/2013/06/2013-seoul-lgbt-film-festival-day-5.html)

Ainda se der tempo, vou escrever sobre outros beijos antes e depois “daqueles beijos”. Mas o que vale é beijar e ser beijado.

Referências para leitura:

Artaud, A. ([1938] 1999). O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes.

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Enfim, o beijo gay

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Enfim saiu o tão esperado beijo gay. Não que o futuro da humanidade estivesse ligado a esse beijo, ou mesmo que ele tenha sido inédito (porque não foi). Mas a grande expectativa quanto ao dia em que a Vênus Platinada cederia e enfrentaria a sua audiência conservadora vinha dominando as discussões a cada novela que contava com um personagem gay, algo que, por sinal, tornou-se lugar comum nos últimos anos.

A grande questão não parecia estar mais no beijo gay em si. O que passou a estar em jogo era o quanto a emissora de maior audiência do país conseguiria ficar alheia à velocidade das grandes mudanças sociais dos últimos tempos. Afinal, concorde-se ou não, aceite-se ou não, entenda-se ou não, a questão da homossexualidade, ou homoafetividade, passou a constar do cardápio das conversas em todos os cantos do país, conversas essas motivadas em muitas das vezes a partir de iniciativas da própria emissora.

A temática gay vem sendo abordada nas novelas da Globo há muitos anos, algumas vezes de forma sutil como se buscasse não ofender a ninguém, outras vezes se rendendo à fácil esteriotipização  dos personagens homossexuais no claro objetivo de conseguir o aceite do público devido ao tom humorístico utilizado, mesmo que às custas, em alguns casos, da consequente redução destes personagens a um conjunto de imagens extremamente distorcidas e, por si só, capazes de aprofundar o preconceito.

Quem se atentou à programação global nos últimos meses percebeu que, vendo-se incapaz de ignorar o grande apelo popular, a Globo foi preparando os ânimos para que o beijo gay, quando ocorresse, não produzisse efeitos negativos sobre sua audiência. Neste processo contou inclusive com a ajuda involuntária de outra emissora, o SBT, que se arvora como responsável pela exibição do primeiro beijo gay da TV brasileira, com o beijo das personagens Marcela (Luciana Vendramini) e Marina (Giselle Tigre) na novela “Amor e Revolução”, de 2011.

Mas o que o grande público queria mesmo era ver se a poderosa Globo, com sua enorme audiência, teria a necessária coragem de mostrar um beijo gay entre dois homens. A expectativa tinha sido criada na novela “América”, de 2005, quando a emissora optou por não exibir o beijo gay do personagem Junior (Bruno Gagliasso) com o peão Zeca (Erom Cordeiro), que, mesmo tendo sido gravado, acabou não indo ao ar.

Pode-se destacar algumas iniciativas sutis da Globo de preparar o seu público para o momento em que o beijo gay se tornaria inevitável:

Em maio de 2013, o seriado que é inexoravelmente e redundantemente família “A Grande Família” apresentou uma prévia do que viria pela frente. O personagem Tuco (Lúcia Mauro Filho) ganha um papel em uma adaptação da peça “Um Beijo no Asfalto”, de Nelson Rodrigues, e acaba por ganhar um beijo do ator Thiago Lacerda. A estratégia utilizada foi mostrar a ficção dentro da ficção: o beijo não tinha sido do ator Thiago Lacerda no Tuco e sim do personagem que eles representavam na peça, esta sim responsável pela cena de beijo gay (que, diga-se de passagem, Nelson Rodrigues insere na peça de forma estratégica e que acaba por lhe conferir um toque a mais de poesia).

Algumas semanas depois, é a vez do seriado “Pé na Cova” ter seu beijo gay de forma também enviesada. O personagem de Miguel Falabella, Ruço, tem lá seus motivos para, de forma até comovida, dar um selinho em um homem morto.  Mais uma vez, o personagem Ruço não é gay, mas tem-se um beijo acontecendo entre atores do sexo masculino.

Todos estes preparativos, entretanto, não chegam aos pés do que se obteve, a favor do beijo gay, a partir do texto da novela “Amor à Vida”, de Walcyr Carrasco aliado à grande interpretação de Mateus Solano com o personagem Félix.

Inicialmente o grande vilão da trama, Félix apresentava-se como um homossexual enrustido, ainda que desse algumas pintas e utilizasse expressões consagradas do meio gay. Com o acréscimo de outros bordões próprios do personagem, sempre relacionados a algum contexto religioso, como as referências às “contas do rosário”, o personagem acabou conquistando a simpatia do público, especialmente crianças e idosos, a despeito da crueldade de suas ações.

O personagem ia angariando mais simpatia à medida que o grande público ia percebendo e entendendo a grande distância que havia entre ele e seu pai, César (Antônio Fagundes), que não fazia o mínimo esforço para disfarçar o desprezo que nutria pelo filho.

Ainda que o texto não explicitasse, inicialmente, a razão da vilania de Félix, percebia-se que este nutria grande tristeza e rancor pela forma como era tratado pelo seu pai e transformava este sentimento em ações de desprezo e crueldade, numa clara situação que não justifica, mas explica. Tal percepção dava-se principalmente devido ao grande trabalho de interpretação de Mateus Solano e Antônio Fagundes quando dos embates entre os dois personagens, pois era nestes momentos que se notava que o desprezo do pai servia de combustível para a falta de empatia do filho. Mais uma vez cabe a ressalva: tal situação não justifica, porém explica.

Com o andar da carruagem e devido a vários acontecimentos da trama, Félix foi se humanizando e, devido à imensa torcida do público (ao que se pode acrescentar a falta de tempero do casal que se previa protagonista da novela), acabou tornando-se ponto central da trama não mais como vilão. As dificuldades enfrentadas antes e após sua saída do armário, a dor pelo desprezo do pai, a sua aparente incapacidade de amar e ser amado, foram aproximando Félix do grande público, que entendeu e se solidarizou com seu sofrimento e passou a torcer pela sua felicidade. E nesta torcida houve espaço para que as pessoas passassem, pasmem, a torcer para que Félix vivesse um grande amor.

Talvez seja necessário traduzir a situação, dado o seu ineditismo: o público passou a torcer e pedir para que fosse dada ao Félix a oportunidade de viver um grande amor ao lado de um homem, sim, um homem, que o complementasse, preenchendo-o em sua carência, entendendo-o em sua dor e apoiando-o em seu processo de humanização.

Ao aproximar Félix do personagem, Niko (Thiago Fragoso), bem resolvido em sua orientação sexual, o autor teve a oportunidade de verificar a reação das pessoas e entender que, independente de sua proposta original, um novo casal havia surgido e assumido a posição de principal relacionamento amoroso da novela.

A partir daí não havia mais nada a fazer. Não seria mais a Globo a ditar se o momento para o beijo gay era este ou não. Dada a torcida do público, a forma bonita como foi construída a relação, a simpatia do casal (mais uma vez os devidos méritos às interpretações dos atores), o beijo gay mostrava-se inevitável.

Mas o beijo sozinho já não bastava. A própria novela se propôs a explicar, implicitamente, porque, desta vez, foi tão fácil paras as pessoas aceitarem o beijo gay:

César, o pai grosseiro que desprezava seu filho, agora estava praticamente inválido. Félix, humanizado, propôs-se a cuidar de seu pai levando-o a morar junto com ele e seu companheiro. Agora preenchido pelo amor de Niko, Félix demonstrava condições de fazer ouvidos moucos às ofensas que César continuava a lhe desferir. E foi nestas condições que o casal, ao se despedir romanticamente no início de mais um dia de trabalho, trocou um carinhoso beijo. Sim, um carinhoso beijo. Não um beijo sexy, quente, sensual. Foi, sim, um singelo, porém belo, beijo carinhoso trocado entre duas pessoas que se amam.

Após o beijo, Félix vai cuidar de seu pai e leva-o para tomar um pouco de sol, com grande dificuldade dada sua fragilidade física. Sentados lado a lado e frente a um belo sol nascente Felix fala ao seu pai que o ama. Talvez nunca tenha dito isso antes, não por falta de oportunidade, mas por pura e simples incapacidade de ambos de se permitirem amar-se mutuamente como pai e filho, situação originada de um burro preconceito. E, em uma reação esperada por tratar-se de uma novela, mas não menos surpreendente, César também fala ao filho de seu amor por ele estendendo-lhe a mão para nos oferecer uma memorável cena final de novela e que se tornou ainda mais linda ao som de “Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler”: pai e filho de mãos dadas.

 

“Não posso pensar em nenhuma necessidade da infância tão forte como a necessidade da proteção de um pai” (Freud)

 

Talvez seja o momento de ouvir novamente “Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler” para apreciarmos o que este final de novela nos proporcionou: a beleza de ver uma sociedade outrora grosseira e intransigente abrir-se e estender a mão para seus filhos homossexuais protegendo-os e transmitindo-lhes o amor que nunca deveria ter faltado.

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