Os cisnes selvagens e o animus feminino

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Os cisnes selvagens é um conte de Hans Christian Andersen, autor de O Patinho feio, Polegarzinha, A pequena sereia, entre outros. No começo do conto temos os seguintes personagens: O rei, onze filhos e uma filha. A rainha já está morta. Ou seja, temos doze personagens sendo que apenas uma delas é feminina. Temos masculinos demais! Podemos com isso supor, que a heroína, Elisa, precisa resgatar o elemento feminino faltante e equilibrar as energias.

Logo em seguida, surge a figura da madrasta, que de início odeia os enteados. Bem, a figura da madrasta é recorrente em contos de fadas. Símbolo da Mãe Terrível é ela quem desencadeia a ação e impele a heroína no processo de individuação.

Já que falamos do feminino, sabe-se que uma das suas características é se vingar da prole da concorrente. Vemos isso na Mitologia, a deusa Hera, quando traída, se vingava de Zeus não diretamente, mas atingindo a outra ou os filhos da relação extraconjugal. Aqui não há adultério, mas sabemos que quando alguém morre se torna divinizado e santificado. E com um ser divino a nova mulher não consegue competir.

Além disso, com ela passamos a ter 13 personagens. Bem, o número 13 corresponde no taro de Marselha ao trunfo da Morte. Em muitas sociedades primitivas, todos os anos, o velho rei é simbolicamente morto, desmembrado e ritualmente “comido” para assegurar a fertilidade das novas colheitas e a revitalização do reino (NICHOLLS, 2007). No caso do conto, temos um rei fraco que não defende os filhos e não se coloca contra os atos da nova mulher. Ou seja, a morte representada pela madrasta-bruxa vem para uma renovação do símbolo do Self na consciência coletiva representado pelo rei.

Revitalização e renovação. O reino precisa de um novo rei que aceita e acata o feminino e o traz sempre ao seu lado.

O lado masculino da mulher, o animus aparece muitas vezes, simbolizado por um grupo de homens. Ele representa um elemento mais coletivo que pessoal. Devido a este caráter coletivo, as mulheres referem-se habitualmente (quando o animus se expressa por seu intermédio) a “nós” ou a “eles” ou a “todos” e, em tais circunstâncias, empregam na sua conversa palavras como “sempre“, “devíamos“, “precisamos” etc (JUNG, 2002).

É uma imagem que emerge em uma quantidade de homens, um bando de pais, um conselho ou um tribunal ou ainda uma assembleia de homens sábios, ou então um artista transformista que pode assumir qualquer forma e que faz uso abundante dessa capacidade (JUNG, 2006).

Podemos supor que os irmãos, a um nível pessoal, formam a imagem do animus de Elisa, mostrando que a menina possui uma quantidade enorme de opiniões e pensamentos que precisam ser elaborados. O fato de não possuir uma figura feminina positiva no conto, indica que ela terá de construir a sua própria imagem do feminino. E terá de enfrentar esse animus na forma de um tribunal.

A bruxa-madrasta transforma os irmãos em onze belos cisnes brancos. O cisne branco é um animal associado à pureza e à luz. Na antiga Grécia, o cisne macho era o acompanhante permanente de Apolo, o deus da beleza, da música e da poesia, cujo carro celeste era puxado por cisnes. No mito de Leda, o cisne tem também uma simbologia masculina já que Zeus se transforma em cisne para perseguir Leda, que lhe foge transformada em ganso, simbolicamente semelhante ao cisne fêmea.

No Oriente, o cisne é símbolo da música e da poesia, para além de representar a coragem, a nobreza, a prudência e a elegância. Na Índia, o cisne é montado pelo deus Brama, e simboliza a elevação espiritual. Na tradição celta, os espíritos do outro mundo regressam ao mundo dos vivos sob a forma de cisne. São os cisnes também os responsáveis por trazer as crianças ao mundo em muitas tradições. Os cisnes, enquanto casal é um símbolo de fidelidade eterna, já que se unem para toda a vida e nunca substituem o companheiro morto. O canto dos cisnes é associado às juras de amor eterno e imortal.

Podemos fazer uma associação da relação de Elisa com os irmãos, muito próxima com a relação Artemis-Apolo. Apolo, irmão gêmeo de Artemis era a única relação significativa que a deusa tinha com um homem. O irmão é uma das manifestações da imagem arquetípica do animus. Enquanto a imagem do animus feminino está associada ao irmão a relação com os homens ficam comprometida, uma vez que com o irmão existe afetividade e companheirismo, mas não existe a relação erótica, que simbolicamente leva a coniunctio.

 

Sua relação com o masculino é fraternal, porém distante e destituída de Eros.

O cisne enquanto símbolo da fidelidade eterna mostra que Elisa está em um compromisso de fidelidade e devoção com o seu animus. E ele ainda se apresenta de uma forma instintiva, mesmo sendo um animal nobre como o cisne. Bem, Elisa possui um complexo materno negativo. A mulher com complexo materno negativo desenvolve uma defesa contra tudo o que é materno e feminino e a faz se aproximar do mundo masculino.

O propósito é quebrar o poder da mãe através da crítica intelectual e cultura superior, de modo a mostrar-lhe toda a sua estupidez, seus erros lógicos e formação deficiente, O desenvolvimento intelectual é acompanhado de uma emergência de traços masculinos em geral (JUNG, 2008). Por isso ela vê a mãe como madrasta e bruxa que a quer afastar dos irmãos e do pai que ela tanto ama.

Jung (2008) ainda nos fala sobre o complexo materno negativo:

De todas as formas de complexo materno é na segunda metade da vida que ela tem as possibilidades de ser bem-sucedida no casamento, mas isso só depois de sair vencedora do inferno do apenas-feminino, do caos do útero materno que (devido ao complexo negativo) é sua maior ameaça.

Portanto para que Elisa se case com o rei – animus positivo – deve passar pelo caos materno, e enfrentar e assimilar essa imago feminina negativa que foi construída em seu inconsciente.

Em termos coletivos, nossa sociedade ocidental pautada pela religião judaico-cristã, definiu uma imagem feminina bastante unilateral. A igreja admitiu o culto a Virgem Maria, mas essa imagem sofre de sérias restrições. Ela é uma imagem unilateral do feminino destituída de sua sombra. Aliás, como cita Von Franz (2010), a igreja acolheu a imagem da deusa-mãe, mas apenas na medida em que se submetia à aprovação do homem e se comportava “adequadamente”.

Tudo o que não se encaixava nesse papel adequado do feminino puro, submisso e virginal foi projetado na figura da bruxa. Portanto, nos contos de fadas a figura da bruxa-madrasta, é a projeção da sombra do feminino que foi desprezada e reprimida. Por essa razão os contos de fadas veem compensar essa atitude unilateral trazendo a solução do conflito para a consciência coletiva.

A bruxa não transforma Elisa em cisne, mas apenas os príncipes, uma vez que é o patriarcado que a transformou em uma figura sombria. E esse resgate do animus positivo é também um resgate do feminino, como veremos agora.

Os irmãos cisnes de Elisa a levam para uma terra distante e nessa viagem e ela entra em contato por meio de um sonho com a fada Morgana. Morgana é uma personagem muito conhecida da lenda do Rei Arthur. Ela é sua meia irmã, sacerdotisa da Grande Deusa e foi pelo patriarcado alçada a qualidade de bruxa.

Entretanto é essa figura que dá a Elisa a solução para trazer a forma humana seus irmãos.

Elisa deve fiar 11 túnicas em urtiga e não deve pronunciar uma palavra sequer durante esse tempo, mesmo com as mãos sangrando. O ato de fiar, tecer, costurar é uma atividade extremamente masculina. Nela deve-se ter muita paciência e permanecer em uma atitude de mobilidade durante um bom tempo. Para mulheres com um animus muito forte chega a ser desesperador ter que desacelerar o ritmo frenético e calar seus pensamentos. Vemos muitos exemplos nos contos de fadas onde a heroína se encontra com a atividade de fiar e tecer, como em A Bela Adormecida e Rumpelstilsequim.

O fato de não poder falar significa que ela deve calar as opiniões e generalizações de seu animus negativo. Sua atitude deve ser concentrada e totalmente voltada para o ato de fiar e costurar para assim poder colocá-lo em seu devido lugar e resgatar seu feminino. Aqui uma atitude unilateral para compensar a unilateralidade da atitude anterior é necessária para assim poder chegara um meio termo.

A urtiga é uma planta que começou a ser utilizada pelo Homo sapiens, desde 4000 a.C. Suas fibras eram utilizadas na fabricação de tecidos e mais tarde na produção de papel. A urtiga é conhecida por uma propriedade em suas folhas que se encostadas na pele, podem irritá-la, deixando uma sensação de que a pele fora queimada. Antes de serem descobertas as propriedades medicinais da planta o uso dela na indústria têxtil se manteve em alta até o século XX, mesmo já tendo sido descoberto o linho para fabricação de roupas e demais tecidos.

A urtiga apesar de queimar como fogo, vestia o homem dando caimento as roupas e melhorando sua aparência. O que significa que o fogo que queima e traz dor também ajuda a talhar e dar um aspecto mais humano aos príncipes. Isso se mostra quando os irmãos sentem compaixão pelo esforço dela e choram.

Elisa precisa permanecer mulher enquanto integra as qualidades de seu animus. E isso é uma tarefa árdua e dolorosa. O feminino é visto de uma forma negativa por isso a machuca e a fere, mas é nesse trabalho que se encontra a sua redenção. A princesa vai ao castelo com o rei que pretende se casar com ela, mas o arcebispo tenta envenenar o rei contra ela, dizendo que se trata de uma bruxa. O arcebispo representa o lado sombrio de seu animus – rei.

O rei permite que ela continue costurando as túnicas, pois trouxe suas coisas ao castelo, mas chega um momento que a urtiga acaba e ela deve buscar mais no cemitério. Ao ir ao cemitério encontra um grupo de bruxas que comem cadáveres humanos.

Essas bruxas representam o feminino ctónico, ligado a terra. Não se houve mais falar da madrasta, entretanto podemos supor que as bruxas e ela representam a mesma imagem, pois mais uma vez temos a morte presente. Elas representam uma face do feminino, justamente aquela suprimida pelo patriarcado. Elas são a face da anciã, da Grande Mãe, possuindo ligação com Hécate. As bruxas mostram um grande segredo do feminino, ao comer os cadáveres, elas nos dizem que todos nós voltaremos para o útero da Mãe Terra e seremos devorados por ela. Esse é o segredo da Morte. Viemos da mãe e voltaremos a ela!

Elisa deve passar por elas e não foi incomodada. Ela enfrentou a face da mãe terrível e devoradora e fez uma prece, ou seja, ela lhe prestou sua homenagem e respeito. Isso desperta a sombra do rei que passa a enxergá-la como bruxa e a entrega a julgamento.

A corte, o julgamento, o tribunal, geralmente aparecem nos sonhos femininos como uma manifestação do animus. Aqui Elisa deve enfrentar seus próprios julgamentos contra sua feminilidade. Ela transgrediu uma regra imposta ao comportamento feminino e acessou seu lado sombrio e toda transgressão gera culpa. Mas, infelizmente, sem esse lado sombra reprimido a mulher fica incompleta.

Elisa então é condenada a fogueira. E mesmo na prisão continuou tecendo as túnicas e não disse uma palavra. Ser fiel ao seu processo é uma questão importante no processo de individuação. Muitas vezes quem está de fora não entenderá o que se está fazendo. Uma pessoa que está em seu processo de individuação e não atende as normas do coletivo será muitas vezes julgada por seus atos. Um exemplo disso foi Cristo, que permaneceu sem reclamar durante todo seu calvário.

Aqui Elisa precisa mesmo sendo julgada pelo externo e interno ser leal ao seu processo senão tudo irá por água abaixo. Seus esforços em transformar seu animus e resgatar seu feminino não darão em nada. A verborragia do animus ainda deve ser contida para que no momento certo, a mulher possa colocar sue ponto de vista com assertividade.

Durante o caminho até a fogueira Elisa permanece em silencio e tecendo, até que aparecem seus irmãos na forma de cisnes e ela joga a túnica sobre eles, transformando-os em belos príncipes. Elisa desmaia de cansaço e dor e os irmãos explicam tudo ao rei.

Após seu exaustivo trabalho o feminino pode deixar seu masculino se expressar. Mas agora houve uma transformação, Elisa não é mais dominada pelo animus, mas é uma mulher feminina que assimilou as qualidades de assertividade e objetividade de se seu lado masculino. E assim ocorre o casamento sagrado, a coniunctio com seu masculino positivo e suas qualidades femininas e maternas podem ser expressas sem desvalorização.

Referências

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

JUNG, C., VON FRANZ, M. L., HENDERSON, J. L., JACOBI, J. & JAFFÉ, A. O homem e seus símbolos, 23 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

JUNG, E. Animus e Anima, São Paulo, Cultrix, 2006.

NICHOLS, S. Jung e o Tarot – Uma jornada arquetípica. São Paulo: Cultrix, 2007.

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

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A Rainha Má de Branca de Neve e a inveja

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Branca de Neve é um dos contos de fadas mais populares. Diversas adaptações para cinema, televisão já foram feitas com base nele.

A estória de Branca de Neve começa nos apresentando uma princesa que ao nascer perde a sua mãe. Seu pai então se casa com uma nova mulher. Ao crescer a beleza da menina desperta na Rainha inveja motivando sua crueldade, a ponto de tentar cometer assassinato. O tema da mãe que morre e uma madrasta que entra em seu lugar é um tema recorrente nos contos de fadas.

Mãe e madrasta na verdade são a mesma pessoa. São duas faces da mesma moeda. E no desenvolvimento da personalidade, a transformação da mãe boa em mãe terrível torna-se estritamente necessário. A expulsão do paraíso materno é um fator preponderante para o processo de individuação. Sem essa expulsão ficamos na zona de conforto e não nos desenvolvemos. Seremos o eterno “filhinho (a) da mamãe”.

Além disso, os contos de fadas costumam apresentar de forma simbólica sentimentos comuns a toda humanidade. E em Branca de Neve temos um sentimento básico em evidência: A inveja.

A Rainha, madrasta de Branca de Neve, inveja a beleza da menina, pois não se conforma com o envelhecimento e com a perda do posto de mais bela.

 

 

A esse respeito, Betthelhein (2002) diz o seguinte:

A perda da proteção materna sofrida por Branca de Neve a deixou vulnerável a uma outra mulher que não a acolheu como filha, pois a Madrasta, vítima da necessidade de ser bela, sedutora, a desejada por todos, não conseguia cuidar de outra mulher que, mesmo sendo menina, se constituía numa ameaça.

Pode-se dizer que Branca de Neve, trata de uma estória do desenvolvimento feminino. Apontando como a psique da mulher pode evoluir e se desenvolver. Não que os homens não possam se beneficiar desse conto, mas neles o benefício será mais no aspecto de sua anima.

No desenvolvimento psíquico o ego das mulheres, até certa idade, se estrutura em torno da beleza e sedução. Não quero entrar no mérito da questão, nem dizer o que é certo ou errado, mas nosso inconsciente coletivo está pautado nessa estrutura – basta observar que a indústria de cosméticos, moda e tudo aquilo que se liga à beleza é voltada em sua maioria esmagadora para a mulher. E nos mitos, temos geralmente como representante da beleza uma deusa, exemplos disso são Afrodite na Grécia, Vênus em Roma e Oxum na África.

 

Com o passar dos anos e a conseqüente degradação do corpo, a mulher que se encontra no processo de individuação já deveria estar em contato com outros aspectos da psique, como o animus e o Self. E nesse processo de amadurecimento o centro de sua psique deveria deixar de ser ego e passar a ser o Self e essa identificação com a beleza diminuída.

Não digo que com isso as mulheres não devam mais ser vaidosas, mas é necessário deixar de fazer da beleza e da juventude seus únicos atributos.

Infelizmente o que vemos atualmente em nossa sociedade é uma grande quantidade de mulheres, principalmente no ocidente, onde a perda da juventude e da beleza é algo aterrorizante. E esse é o drama da Rainha que vê em sua filha a passagem do tempo e a diminuição de sua beleza. Ela é uma mulher extremamente imatura a ponto de deixar de ser uma mãe cuidadosa.

 

Note que ela não possui um relacionamento com o inconsciente, ela está completamente identificada com sua persona. Seu animus é quase inexistente, pois o marido é omisso na relação dela com a Branca de Neve, não exercendo a sua função de discernimento e reflexão.

Quantas mulheres atualmente em nossa sociedade, onde a imagem é privilegiada, não “assassinam” a sua própria criação em função de uma atitude unilateral, sufocando sua criatividade.

 

Entretanto, a Rainha tem um caminho para o seu desenvolvimento, projetado em Branca de Neve. Através da princesa e sua jornada, a Rainha pode se desenvolver e sair da unilateralidade. E a jornada de Branca de Neve possui muitos paralelos com o mito grego de Psique.

No mito Afrodite, a deusa mais bela, com inveja da beleza de Psique a pune enviando-a (assim como a Rainha) para ser sacrificada. Entretanto Eros, filho de Afrodite, se compadece e se apaixona por Psique, salvando-a do destino trágico.

Em Branca de Neve temos a figura do caçador que se compadece da princesa e entrega a Rainha o coração de um veado. Aqui a figura do animus começa a aparecer e começa a apresentar vestígios de reflexão e de proteção, mesmo sendo considerado apenas um simples servo.

Após esse episódio, Branca de Neve vai viver em uma casa com os sete anões. Onde passa a cuidar da casa para eles, lavando, limpando e cozinhando.

Nesse estágio, a princesa encontra o animus em sua forma múltipla, ainda que indiferenciado, e um tanto primitivo. Mas ele já apresenta seu lado prestativo e o mais importante Branca de Neve se relaciona com ele, vive com ele e negocia com ele: Ela cuida dos anões em troca de proteção.

 

Um aspecto importante dos anões é que eles trabalham nas cavernas garimpando pedras preciosas. A caverna é um símbolo do inconsciente, portanto o trabalho de retirar os tesouros do inconsciente para a ampliação da consciência já está sendo feito pelo animus.

A Rainha descobrindo o paradeiro de Branca de Neve tenta por três vezes matá-la. Na primeira vez ela amarra de uma forma violenta, uma fita ao redor da cintura da menina fazendo-a perder o fôlego, da segunda vez da um pente envenenado a menina e na terceira vez ela da à menina a tão famosa maçã envenenada.

Essa estrutura de três provas, ou três tentativas é muito comum em contos de fadas. Na verdade, esse “três” sempre se desdobra para um “quatro”, o número da totalidade, por isso nos contos há três tentativas, com uma quarta completamente diferente das anteriores.

Nota-se que as duas primeiras tentativas de matar Branca de Neve estão associadas à vaidade e a terceira à sedução, pois a maçã na mitologia grega está associada a da deusa do amor, da beleza e da sedução, Afrodite. E ela sucumbe a todas as tentativas, sendo auxiliada nas duas primeiras pelos anões.

Em seu mito, Psique também sucumbe em sua ultima tarefa, que foi pegar o creme de beleza de Perséfone, a qual foi alertada a não abrir. Mas sua curiosidade e vaidade femininas fizeram-na abrir, levando-a a cair como morta. Ou seja, Branca de Neve e a Rainha devem amadurecer em relação à beleza e sedução, o que equivale a perder a ingenuidade e desenvolver a capacidade critica provinda de seu animus.

 

O desfecho é conhecido: um príncipe que andava pelas redondezas avistou o caixão de vidro feito pelos anões, ficando apaixonado. Ele leva o caixão para seu castelo. No caminho, a carruagem tropeça, e o pedaço de maçã que estava na garganta de Branca de Neve sai, e ela volta a respirar. O príncipe a pede em casamento, e convida para a festa a Rainha, que comparece, morrendo de inveja. Como castigo, ao sair do palácio, acabou tropeçando em um par de botas de ferro que estavam aquecidas. As botas fixaram-se na rainha e a obrigaram a dançar; ela dançou e dançou até, finalmente, cair morta.

Diferentemente de Afrodite, que no mito é transformada pela jornada de Psique, fazendo-a mudar de atitude e aceitar a beleza da jovem. A Rainha mantém sua atitude unilateral, permanecendo na inveja em relação a Branca de Neve, que agora alcançou um desenvolvimento de sua personalidade e iniciou um relacionamento com seu inconsciente, simbolizado pelo seu animus – príncipe.

Infelizmente, a Rainha não consegue demonstrar alegria e amor pela filha. Muitas mães infelizmente invejam a beleza e a as conquistas de suas filhas. Suas vidas não vividas e pautadas no ego são fonte de amargura e raiva. E a Rainha, tristemente, encontra o destino de todo aquele que mantém uma atitude radicalmente unilateral, que é a morte.

 

Referências:

BETTELHEIM, B. A Psicanálise dos contos de fadas. 16 ed. – Paz e Terra: São Paulo: 2002

JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. 21 ed.Vozes. Petrópolis: 2008.

NEUWMAN, E. A Grande Mãe. Cultrix. São Paulo: 2006.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo:2005.

VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São    Paulo:2002.

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As bruxas dos contos de fadas: aspectos sombrios da alma feminina

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Temos atualmente uma profusão de adaptações para o cinema de contos de fadas e todos eles voltados para um público mais adulto.

O que chama a atenção é que nessas produções a figura da bruxa ou madrasta ganha um grande destaque com atrizes consagradas. E no fim elas acabam sendo até mais interessantes que as mocinhas. No caso do filme Malévola, baseado no conto A Bela Adormecida, a fada desprezada se torna a protagonista do filme e assistimos toda a trama pelo olhar daquela que seria a “bruxa”.

Nos contos de fadas clássicos e famosos como Branca de Neve, Cinderela, Rapunzel e o citado Bela Adormecida temos sempre presente a figura da bruxa ou madrasta que persegue a bela jovem, se tornando um importante catalisador do processo de individuação da heroína.

Para compreendermos a bruxa é importante salientar que se trata de um arquétipo. A bruxa/madrasta representa uma faceta do arquétipo da Grande Mãe, e nele está inserida a bruxa ou madrasta (a mãe diabólica, terrível), a velha sábia e a deusa que representa a fertilidade, bondade e piedade (aspectos da mãe boa).

Infelizmente, esse é um aspecto negligenciado em nossa sociedade.

Em uma sociedade como a nossa, judaico-cristã, com uma forte base patriarcal não há uma imagem arquetípica da mulher. Marie Louise Von-Franz, em seu livro O Feminino nos Contos de Fadas, cita que Jung sempre dizia que a mulher não tem uma representante no “Parlamento de Cima”.

É evidente que o patriarcado trouxe muitos avanços em termos de cultura e tecnologia e foi extremamente necessário para o estabelecimento da ordem, das leis e para o desenvolvimento intelectual da humanidade. E com isso a deusa-mãe foi afastada durante certo tempo, acentuando e desenvolvendo o pólo masculino da psique masculina.

Entretanto a consciência quando persiste demais em um curso de ação, em uma situação que se torna ultrapassada os conteúdos reprimidos voltam a se “vingar” da atitude unilateral. A obstinação em um curso de ação acarreta a dissociação e a neurose.

Dessa forma, os aspectos femininos, tanto no homem – em relação à sua anima – quanto na mulher, ficaram negligenciados. Isso acarretou na mulher uma insegurança e uma incerteza em relação a sua essência. E no homem também uma insegurança em relação aos seus sentimentos. Hoje os homens também se sentem perdidos em relação a esse feminino não compreendido.

Ainda em O feminino nos contos de fadas, Von Franz aponta para o fato de que a Deusa-mãe ainda não fez a sua reaparição em uma filha humana, assim como temos um representante do Deus encarnado em um filho, Jesus.

Temos atualmente à devoção à Virgem Maria, mas essa figura surgiu acompanhada de varias restrições. A Deusa-mãe foi acolhida pela igreja católica, mas em uma forma purificada de sua sombra e de uma forma “adequada”.

Portanto o aspecto sombra da Deusa-mãe necessita fazer a sua reaparição e nossa sociedade. E a bruxa dos contos de fadas, simboliza justamente a Deusa-Mãe negligenciada, a Deusa da terra, ou seja, o feminino em seu aspecto destrutivo. Esses aspectos sombrios do feminino são: a inveja, a vingança, a sexualidade e o contato com a natureza.

Contudo, a bruxa é um aspecto extremamente necessário para o desenvolvimento psicológico e para o processo de individuação da mulher. Sem ela a heroína não sairia do lugar. Nos contos vemos que a sombra da boa mãe negligenciada é quem torna a heroína ou princesa tridimensional. A bruxa mostra o aspecto da mãe natureza. Se observarmos os animais, veremos que ela aparece com uma dose de maldade. Mas uma maldade positiva. As raposas, por exemplo, costumam morder os filhotes quando atingem certa idade, obrigando-o assim a assumir a sua liberdade.

A mãe que possui um instinto feminino saudável sabe que deve afastar o filho que se agarra demais a ela. Infelizmente hoje, esse instinto está doente e temos uma geração de mimados e filhinhos da mamãe que não assumem responsabilidade. Hoje esse tipo de comportamento é considerado imoral, a mãe “deve” ser boazinha e possuir uma piedade ilimitada – a imagem da Virgem Maria caridosa e que recebe todos os pecadores com seu manto.

Contudo é essa mãe terrível quem nos força a sair da zona de conforto. O ser humano sempre busca o prazer e o aconchego doa braços da boa mãe, e ele sempre tende a se tornar inerte nesse estado paradisíaco. Entretanto nesse estado, não há desenvolvimento. Sem a mãe terrível para nos expulsar do paraíso não progredimos.

Portanto, ao aceitar o desconforto, o sofrimento e as limitações impostas pela bruxa, podemos nos desenvolver em direção a uma totalidade, capaz de integrar o bom e o ruim, o agradável e o desagradável.

Referências:

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.

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