“Coringa”: cultura cosplay e copycat gerou o Palhaço do Crime

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Concorre com 11 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Ator, Fotografia, Figurino, Direção, Edição, Cabelo e Maquiagem, Trilha Sonora Original, Edição de Som, Mixagem de Som e Roteiro Adaptado.

Criado pela indústria do entretenimento, é chegado o momento dessa própria indústria fazer uma metalinguagem do poderoso arquétipo que gestou por todos esses anos.

Para muitos pesquisadores em Sincromisticismo, desde que o Coringa surgiu em 1940 nas HQs, o personagem transformou-se em uma forma-pensamento autônoma, um arquétipo que paira sobre o tempo. Mas como produto da indústria do entretenimento, ele também reflete o espírito de cada época, do Coringa bufão de Cesar Romero nos anos 1960 psicodélicos à inteligência sinistra do Coringa de Heath Ledger. Em “Coringa” (Joker, 2019) o Príncipe Palhaço do Crime ganha uma atualização, dessa vez um “spin off”: as origens do Coringa numa Gotham City vintage, mas que pode muito bem ser o espelho da nossa época. O Coringa de Joaquim Phoenix (numa interpretação assustadora onde, mais uma vez, um ator pagou o preço psíquico para encarnar o personagem) reflete a atual onda de ódio e ressentimento articulados pela Deep Web, fóruns e chans na Internet e pelo populismo de direita. Coringa é a persona da cultura copycat e cosplay atual dominada por um ciclo de feedback de identificações equivocadas que fogem do controle.

O Palhaço do Crime; O Príncipe Palhaço do Crime; O Flagelo de Gotham; Arlequim do Ódio; O Bobo do Genocídio; O Ás de Valete. Ou simplesmente “Joker” ou Coringa, supervilão criado por Jerry Robinson, Bill Finger e Bob Kane e que apareceu pela primeira vez em Batman #1, de abril de 1940.

De acordo com o plano inicial, o Coringa deveria ter morrido na sua primeira aparição, mas foi providencialmente poupado por uma decisão editorial, permitindo que fosse progredindo até se tornar não apenas um palhaço psicopata. Coringa tornou-se o arquétipo do psicopata: no ranking das mais populares formas-pensamento do século XX, ele é praticamente um deus.

Fonte: página oficial do filme

Numa espécie de “top of mind” das marcas dos personagens das HQs feita durante a produção de Batman do diretor Tim Burton, a pesquisa apontou que a bat insígnia ocupava a segunda colocação, logo após a imagem do sorridente rosto do Coringa – hoje o Coringa ocupa o segundo lugar no Top 100 dos vilões das HQs.

Como poderoso arquétipo ou forma-pensamento com forte energia psíquica capaz de influenciar não só as mentes como as próprias ações, o personagem acumula um histórico de estranhos efeitos nos atores que o encarnam, assim como inúmeros relatos de efeitos copycats – ataques e atiradores figurando como cosplayers assassinos na vida real – veja os links ao final.

Criado pela indústria do entretenimento, é chegado o momento dessa própria indústria fazer uma metalinguagem do poderoso arquétipo que gestou por todos esses anos.

Fonte: página oficial do filme

Coringa (Joker, 2019), do diretor Todd Phillips (Se Beber, Não Case e Escola de Idiotas), é uma incursão ao mesmo tempo vintage e realista, bem diferente das versões cinematográficas do Coringa: sem aspirações artísticas vanguardistas de Jack Nicholson, ou a inteligência cínica e sombria de Heath Ledger, ou ainda a comprometedora versão de Jared Leto, na qual o Coringa parecia mais um tipo de MC ostentação.

O logotipo retro da Warner Bros. que abre o filme indica que estamos em algum lugar entre as décadas de 1970 e 80. Os planos de câmera e a direção de arte que reconstroem a Gotham City emulam a estética do novo realismo Hollywood daqueles tempos em filmes como Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982) – filmes protagonizados por anti-heróis perdedores em sociedades duras e violentas.

Coringa é um estudo triste, lento e caótico das origens do icônico vilão das HQs. Alguém que não é visível, anônimo numa cidade em crise econômica e imersa em sacos de lixo causada por uma greve dos serviços públicos.

Enquanto até aqui todas as histórias com o vilão o figuram como um personagem (caricato sempre em tons fortes sem muitas sutilezas), aqui Todd Phillips, ao lado do roteirista Scott Silver, estão mais interessados na composição mental, moral, emocional e física de um homem simples e esquecido e que se tornou o Coringa

Isso exigiu um tour de force do ator Joaquim Phoenix (e, como sempre, o arquétipo do Coringa cobrou-lhe o preço emocional e psíquico para encarná-lo, clique aqui): a atmosfera é sempre acinzentada e os planos de câmera sempre fechados no ator – tanto seu rosto como seu corpo são minuciosamente observados por nós, assim como sua lenta transformação no palhaço do crime.

O filme até aqui provocou críticas divididas em torno do debate de como Coringa representa temas sombrios atuais (principalmente a desigualdade e intolerância ao lado do crescimento do ressentimento e ódio), além de cadeias de cinema nos EUA proibirem a entrada de cosplayers do personagem – clique aqui.

Nesse ponto é que Coringa se torna ainda mais interessante: ficção e realidade se tocam quando o próprio Coringa figurado no filme é um produto da mídia que, afinal, não resiste a um personagem com uma boa storyline e punchline. Tirando do anonimato um perdedor que repentinamente vira um símbolo político de explosão da revolta e ressentimento, criando um gigantesco efeito copycat – aproximando-se da realidade.

Fonte: página oficial do filme

O Filme

Gotham City. Os moradores estão imersos em montes de sacos de lixo na frente de cada porta, sob um céu sempre de cor chumbo. Os tempos são difíceis: há desemprego, pobreza e falta de perspectiva. E um novo candidato a prefeito: o milionário Thomas Wayne (Brett Cullen), que apenas desperta o ressentimento outrora latente.

Alheio a tudo isso, encontramos Arthur Fleck (Joaquim Phoenix), um cara aparentemente gentil que gosta de fazer as pessoas sorrirem. Ele é um palhaço profissional com uma relação problemática com seus colegas da agência de clowns e um aspirante a comediante de stand-up.

Ele é uma das vítimas de “tempos malucos”. Ele próprio é um ex-interno de um hospital psiquiátrico vivendo à margem da sociedade tentando ter um emprego regular – sobe escadarias sem fim, passa por corredores mofados em uma vida de cortiços sombrios, caixas de correios vazias e elevadores quebrados.

Ele é espancado, zombado e abusado. Não se envolve com o mundo. A vida cotidiana para ele é difícil, pois as regras e os códigos que estruturam a sociedade permanecem desconhecidas para Arthur. Sua condição é de alienação, em grande parte devido a uma condição mental que causa risadas incontroláveis (geralmente nas piores situações) enquanto os olhos estão cheios de dor e tristeza.

“Só não quero mais me sentir tão mal”, sussurra Arthur para a assistente social que o acompanha: ele quer mais remédios, além dos sete prescritos. Logo mais não terá nenhum, com a política de austeridade da prefeitura que está cortando todos os serviços sociais.

É um sistema que agora não tem mais tempo ou recursos para gente como ele. Isso será simplesmente o início da descida do caminho para encontrar o Coringa dentro de si mesmo.

Fonte: página oficial do filme

Mas tudo muda quando, com muita relutância, aceita um revólver de um companheiro de trabalho para se proteger dos assédios de um palhaço que trabalha nas ruas. Em um metrô barulhento, sujo e pichado de grafites pela primeira vez Arthur revida e atira em três jovens yuppies grosseiros de Wall Street – depois do assédio malsucedido em uma mulher, resolvem descontar sua raiva no pobre palhaço.

Após essa primeira explosão de violência brutal, Arthur adquire autoconfiança. Seus movimentos se tornam elegantes, seu corpo magro e arqueado agora é ágil, gracioso. As mortes no metrô ganham as manchetes na TV, desencadeando um gigantesco efeito copycat: centenas de pessoas saem às ruas com máscaras de palhaço para se levantar contra os ricos.

Não era o tipo de reação que Arthur queria… mas é uma reação e ele aceita. Afinal, faz ele saber que existe e que suas ações significam algo para alguém. Cria-se então um ciclo de feedback de identificações equivocadas que fogem do controle – manifestantes nas ruas usam a máscara do palhaço, incitando Arthur a dar continuidade a sua nova persona. Aos poucos, Arthur descobre que o seu talento não é o humor, mas a expressão da raiva multiplicada.

No final, humor e explosão da raiva e violência são a mesma coisa: é tudo uma questão de timing.

Fonte: página oficial do filme

O Coringa do nosso tempo

Arthur sonha em sair do anonimato de humilhações da vida de um zé-ninguém, até descobrir que o talk show de Murray Flanklin (Robert de Niro, numa perfeita alusão aos filmes Rei da Comédia e Taxi Driver) apenas o convidou para mais uma vez ser humilhado – um vídeo de um show de stand up bizarramente sem graça de Arthur foi o motivo da produção convida-lo.

O Coringa desse filme definitivamente tem algo a dizer sobre o nosso tempo. O Coringa de Christopher Nolan em O Cavaleiro das Trevas era uma agente do caos que queria provar que no final as pessoas são terríveis e cruéis e escondem tudo isso com hipocrisia. Mas Nolan mostrou que Gotham se recusava à explosão de uns contra os outros.

Mas em Coringa temos o contrário: Arthur é perturbado e violento e todo mundo ao redor dele é cínico e paranoico. Os ricos e as estrelas da mídia são terríveis e as pessoas comuns ainda piores – uma multidão de saqueadores, assassinos que está apenas em busca de um pretexto para entrar na selvageria.

Fonte: página oficial do filme

Cada Coringa refletiu o espírito da sua época: o Coringa de Cesar Romero da década de 1960 era um bufão engraçado e sintonizado com a psicodelia da era hippie. O Coringa de Jack Nicholson aspirava ser um vanguardista que transformava o crime em arte – releitura de Tim Burton associada à estética dark de seus filmes. O coringa de Heath Ledger era cerebral e adulto. Ao contrário de Jared Leto, sintonizado com a cultura jovem contemporânea.

E o Coringa de Joaquim Phoenix reflete a atual onda de ódio e ressentimento bem sucedidamente articulados tanto pelo populismo de direita internacional quanto pela Deep Web, fóruns e chans na Internet: “Incels” (Celibatários Involuntários), “Hominis Sanctus”, PUA (Pick-up Artists), formas violentas de socialização masculina (macho alpha etc.) e uma variedade de pseudociências e conspirações LGBTs e feministas contra os homens.

O príncipe do Crime de Coringa é a persona da cultura copycat e cosplay atual – uma máscara ou persona (assim como foi o efeito copycat da máscara do Anonymous nas manifestações de rua) que empodera o ressentimento de uma massa de excluídos da globalização. Só que levados a autodestruição e anomia, bem ao gosto da atual extrema-direita, a “alt-right”.

Se Nolan ainda buscava um fio de resistência humanista em Gothan City contra a pegadinha macabra do Coringa, aqui a dupla Todd Phillips e Scott Silver joga literalmente o Coringa nos braços das massas que reconhecem nele sua própria crueldade e selvageria.

O resultado do filme Coringa é a resposta do porquê o sombrio supervilão bufão é tão fascinante e sedutor quanto Batman: ambos são movidos pelo ódio e ressentimento, porém com os sinais trocados.

FICHA TÉCNICA:

CORINGA

Título original: Joker
Direção: Todd Phillips
Elenco: Joaquim Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy;
Ano: 2019
País: EUA, Canadá
Gênero: Drama/Suspense

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Cegos e surdos esquecemos daquilo que buscamos na vida em “A Grande Beleza”

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Freud revelou que o homem é capaz passar uma vida inteira repetindo, compulsivamente, uma cena traumática – revisitando essa cena-clichê de diversas maneiras com roupagens diferentes. 

Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2014, muitos críticos consideram “A Grande Beleza” (2013), de Paolo Sorrentino, quase uma refilmagem de “A Doce Vida”, filme de Fellini de 1960. Roma, a “Cidade Eterna”, vista pelos olhos de Jep Ganbardella, um escritor de apenas um livro que vive no centro de uma vida mundana de festas e exposições de artistas, intelectuais, jornalistas e editores de revistas culturais. Cínico, zomba de todos, mas principalmente de si mesmo pelo vazio, desilusão e niilismo. Todos parecem zumbis, vagando em festas barulhentas e ensurdecedoras atrás da “grande beleza” esquecida, lá atrás na juventude. Cegos e surdos pelas distrações que criamos, esquecemos daquilo que passamos uma vida inteira procurando. No clássico filme “Cidadão Kane” era o “Rosebud”. E o que Jep Gambardella procura em “A Grande Beleza”? 

Era uma vez o Esclarecimento, o movimento filosófico Ocidental que libertaria o homem das mentiras, ilusões e mitificações, cujo empenho racional conduziria o homem para a felicidade, quebrando a compulsão da covardia, preguiça e comodismo. Mas nessa jornada da Razão alguma coisa deu errada.

Nietzsche falava em “eterno retorno”. Freud revelou que o homem é capaz passar uma vida inteira repetindo, compulsivamente, uma cena traumática – revisitando essa cena-clichê de diversas maneiras com roupagens diferentes. 

Adorno e Horkheimer (os temidos “marxistas culturais”, fantasmas que assombram a atual política brasileira) apontavam que a Razão paradoxalmente trouxe de volta os mitos, tidos como sepultados pela Modernidade – e o nazismo e o Holocausto foram a principal evidência disso.

Filmes como Cidadão Kane, 1941 (talvez, o mais freudiano filme jamais feito), mostram como uma vida inteira de um personagem pode ser marcada pela busca de um simples objeto emblemático da infância – o “Rosebud”. A procura de alguma coisa (objetos, cenas, conquistas etc.), até a morte, que trouxesse de volta aquilo que foi perdido numa vida: carinho, afeto, amor, segurança. Inconscientes, damos voltas e voltas em torno desse objeto ou cena mítica perdida no passado, procurando alguma coisa que nos traga de volta aquela experiência.

Fonte: encurtador.com.br/ruXZ1

Mas coube ao filósofo alemão Peter Sloterdijk o diagnóstico do estágio final dessa viagem do Esclarecimento: o momento em que a Razão desemboca na desilusão cínica. O Esclarecimento finalmente realizou sua missão (a ausência de ilusões), mas o resultado foi a paralisia do “cinismo esclarecido”.

Cinismo e desespero

É de tudo isso que trata o filme italiano A Grande Beleza (La Grande Bellezza, 2013), Oscar e Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, do cineasta Paolo Sorrentino, num estilo barroco e envolvente. Muito consideram praticamente uma refilmagem do clássico A Doce Vida (1960) de Fellini – sob as aparências de uma sociedade contemporânea jovem e enérgica, o cinismo que esconde a desilusão, niilismo e desespero.

A Grande Beleza aspira à universalidade, a partir do olhar do protagonista Jep Gambardella (o brilhante Toni Servillo) para Roma atual – Jep é um escritor de apenas um livro que vive no centro de uma vida mundana de festas e exposições de artistas, intelectuais, jornalistas e editores de revistas culturais. Cínico, zomba de quem assume ares pseudo-intelectual, com discursos sobre ética, arte, ativismo político e eterna juventude.

Mas, principalmente, zomba de si mesmo. Como todos, quer permanecer sempre jovem (tem 65 anos) desfilando com seu cinismo e ironia pelas intermináveis festas. Botox e cirurgias plásticas de milhares de euros ajudam bastante. Mas apenas criam máscaras que encobrem vazios profundos.

A Grande Beleza é um verdadeiro estudo desse “abismo das aparências” (Jean Baudrillard) – enquanto turistas de acotovelam pelas ruas de Roma para fotografar as ruínas de um Império que desapareceu (“acho os romanos insuportáveis, as melhores pessoas em Roma são os turistas”, dispara Jep a certa altura), a elite cultural dança freneticamente entre toda aquela herança cultural que de nada serve – são apenas ruínas de algo que não existe mais. Serve para criar uma imagem de exportação da Itália, ao lado de pizzas e moda.

Todos cínicos e esclarecidos: paralisados no comodismo e covardia, apenas festejam uma espécie de melancolia hiperativa. Porém, Jep, assim como todos, está inconscientemente em busca de um “Rosebud”.

Fonte: encurtador.com.br/vwxzZ

O Filme

No olho da tempestade está Jep Gambardella, um playboy sessentão que fez sua fortuna e reputação como jornalista e escritor de um livro de décadas atrás chamado “O Aparato Humano”, “obra-prima da literatura italiana”, mas que, apesar do título pretensioso, foi lido apenas pelos leitores frívolos daquela alta sociedade romana.

Quando o filme começa, Jep está celebrando seus 65 anos. Uma abertura impactante na qual parece que o diretor Sorrentino quer nos cegar e ensurdecer com imagens e música – de um lado um turista japonês ansiosamente tira fotos do horizonte romano, até cair na rua aparentemente com uma overdose do puro esplendor das imagens que tem diante de si; e do outro, a frenética festa com tipos fellinianos totalmente indiferentes ao cenário ao redor.

Parece querer nos dizer que do Coliseu àquela festa que rola sobre o terraço diante da majestosa cidade, tudo está em ruínas – ruínas físicas e psíquicas.

Jep reconhece em si mesmo tudo que é feio e provinciano em Roma. A partir dessa abertura feérica, a narrativa de A Grande Beleza começa a misturar o presente e a realidade com as memórias e, talvez, até sonhos. 

Sorrenttino quer transformar o seu filme num Grande Colisor de Partículas. A cada encontro de Jep com personagens da “doce vida” da elite cultural romana, parece uma colisão que esmaga o Sagrado e o Profano um contra o outro: o encontro com a stripper inteligente Ramona (Sabrina Ferili), cujo romance vazio acaba revelando o “Rosebud” de Jep – a primeira vez que viu o seio da mulher amada à beira-mar na juventude.

Ou o encontro com um cardeal respeitado, cotado para ser o próximo Papa, e que nada tem a compartilhar do que dicas de culinária; uma versão da Madre Tereza de Calcutá (a “Santa”) que fala em voto de pobreza em meio a uma celebração mundana; a performance vazia de uma artista que bate a própria cabeça nas ruínas do aqueduto romano; o dramaturgo mal sucedido que tenta buscar opiniões sobre sua próxima peça de artistas em meio às festas turbinadas por longas carreiras de cocaína.

Fonte: encurtador.com.br/dTY78

A Grande Beleza aplica o mesmo princípio da acumulação dos filmes de Fellini: a cada cena adiciona significados, ao invés de fatos. Aparentemente, nada acontece. Porém, a cada cena Sorrentino vai inserindo novos personagens para criar dicotomias e justaposições que serão progressivamente diluídas num imenso painel de figuras vazias, alienadas e entediadas. 

Cinismo esclarecido

Parece que a “Grande Beleza” da qual trata o filme refere-se aos meios utilizados pela sociedade para expressar esse mal-estar: através da arte, música, memórias pessoais e coletivas (ruínas), amizade e amor.

Mas aqui a jornada do Esclarecimento e da Arte se deteriora em cinismo e paralisia: todos os personagens, e principalmente Jep, são conscientes das máscaras vazias que portam em festas que celebram novas obras artísticas que são sempre mais do mesmo. São “cínicos esclarecidos”, como certamente os definiria o pensador Peter Sloterdijk.

Um tipo de cinismo característico de pessoas integradas aos seus postos e privilégios (gerentes, executivos, professores, jornalistas ou diretores) que mantêm um autodistanciamento irônico e melancólico sobre o que fazem, um sentimento de “inocência perdida”, de ironizar e depreciar a si mesmos e ao que faz, uma falsa consciência conformista e sem sonhos diante do sistema de onde tira seus privilégios – leia SLOTERDIJK, Peter, Crítica da Razão Cínica, Estação Liberdade, 2012).

Fonte: encurtador.com.br/gKMZ3

É uma razão que se pretende transparente e livre de ilusões e mentiras. Porém, como aponta Sloterdijk, “o marketing da falsidade é ser honesto” – uma transparência que alimenta as commodities do cinismo. A mentira parece que veio à luz e deixou de ser o fundo podre da civilização, como dizia Freud. O cinismo esclarecido tornou-se o bem de primeira necessidade.

Porém, por trás de todo esse mal-estar pulsa o “Rosebud”: como no personagem Jep Gambardella, ele, assim como todos os outros personagens, vagam como zumbis naquelas festas ensurdecedoras atrás daquela experiência marcante e decisiva na juventude, incompreendida e deixada lá atrás e esquecida.

Esse o principal tema gnóstico de A Grande Beleza: nos tornamos cegos e surdos com as distrações que criamos para nós, esquecendo que aquilo que procuramos (o nosso “Rosebud”) já está dentro de nós mesmos. 

E a Razão e o Esclarecimento falharam nessa busca.  

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Título Original: La grande bellezza
Direção: Paolo Sorrentino
Elenco:  Toni Servillo, Carlo Verdone, Sabrina Ferilli,
Produção: Indigo Film, Medusa Film, Pathé
País: Itália, França
Ano: 2013
Gênero: Comédia, Drama

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