A estruturação da consciência a partir dos complexos

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O modelo teórico desenvolvido por Carl Gustav Jung, um dos grandes nomes da psicologia, se organiza através da observação empírica e clínica do funcionamento humano. A partir do tratamento de doentes mentais no Burghölzli, um hospital psiquiátrico em Zurique, na Suíça, e testagens em pessoas saudáveis, Jung passou a investigar a continuidade do funcionamento psíquico. Através do “Estudos Diagnósticos de Associação” (JUNG, 1995), ele dá um grande passo em sua pesquisa.

No intuito de compreender as leis que regem o curso associativo da consciência, Jung (1995) fez experimentos onde oferecia palavras-estímulo aos testados, que deveriam responder no menor tempo possível a primeira palavra que lhe vinham à mente ao recebê-la, a fim de compreender quais são as leis que regem as oscilações associativas dentro dos limites da pessoa normal. Nesse ínterim, pôde-se perceber que, quando as palavras-estímulo se relacionavam a pontos que pudessem evocar situações pessoais vividas, elas geravam uma perturbação no: tempo de resposta; ligação lógica entre palavra-estímulo e resposta; e a recordação posterior da resposta dada àquela palavra-estímulo.

Tal experimento revelou que, nesses breves momentos, existe uma perturbação da atividade consciente por um fator psíquico que, por vezes, pode passar despercebido pelo sujeito testado. É um breve assalto da consciência por outro fator da psique, que carrega reações afetivo-emocionais de situações outrora vivenciadas, e que estão, atualmente, afastadas da atenção consciente.

Jung deu a esses fatores o nome de complexos, que são a base do funcionamento psíquico individual. Segundo ele, a psique é composta por esses núcleos de carga afetivo-emocionais, que têm relativa identidade, dada sua autonomia em relação à consciencia. Eles se formam a partir de dois componentes: uma experiência, um fato vivido que está causalmente vinculado ao ambiente; e “de uma condição imanente de caráter individual de natureza disposicional” (Id, 2013a, § 18).

“Todas as vezes que uma palavra estímulo toca em alguma coisa ligada ao complexo escondido, a consciência do eu é alterada ou mesmo substituída por uma resposta originária do referido complexo. É como se o complexo fosse um ser autônomo, capaz de perturbar as intenções do eu. Na realidade, os complexos se comportam como personalidade secundárias ou parciais, dotadas de vida espiritual autônoma” (Id., 2012, § 21).

A própria instituição do eu (ou Ego) é também um complexo, tornando-se a centralidade da psique consciente, que tem seu gérmen no período da primeira infância, e vai se estruturando à medida que o indivíduo amadurece.

“Ocorre certa mudança logo que a criança começa a desenvolver a consciência do próprio “eu”; o que fica documentado exteriormente, entre outras coisas, por começar ela a dizer “eu”. Normalmente ocorre essa mudança entre três e cinco anos de idade, mas pode dar-se também antes. A partir desse momento, podemos dizer que já existe uma psique individual” (Id., 2013d, § 107).

O Eu vem a se configurar como um fator complexo, com o qual todos os conteúdos conscientes se relacionam, constituindo-se como o centro do campo da consciência. Sendo ele o sujeito de todos os atos conscientes da pessoa, não há conteúdo consciente que antes não se tenha apresentado ao sujeito (Id, 2013c).

Já outros complexos, provêm normalmente de certos acontecimentos ou impressões que causaram sofrimento ou dor (Id., 2013d). Eles são como centros de gravidade, que tendem a atrair a atenção da consciência quando sua atenção passa perto de sua órbita de significantes, memórias e afetos, influenciando seu funcionamento. Tal disposição se afigura como um céu estrelado, cheio de pontos que, no seu conjunto, formam a totalidade da psique. Não à toa, quando se está sobre a influência de um complexo, diz-se que este foi constelado.

“Este termo exprime o fato de que a situação exterior desencadeia um processo psíquico que consiste na aglutinação e na atualização de determinados conteúdos. A expressão “está constelado” indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida. A constelação é um processo automático que ninguém pode deter por própria vontade. Esses conteúdos constelados são determinados complexos que possuem energia específica própria” (Id., 2013b, § 198).

Visto que o Eu é a centralidade da consciência, Jung (2013d) observa que verifica-se nela a atitude tendenciosa de evitar até mesmo a simples possibilidade de recordar-se de objetos aversivos, devida a razão convincente de que sua recordação é penosa e dolorosa. Isso causa um afastamento sistemático desses conteúdos do centro gravitacional do Eu, resvalando-os para fora da consciência, e logo, para o inconsciente.

É aqui que adentramos o reino do não observável, do desconhecido, do não-eu. No inconsciente pessoal, encontra-se todo o pano de fundo do funcionamento psíquico, todas as sólidas bases que estruturam a viabilidade da consciência. Além disso, é onde reside toda incompatibilidade que tornaria inviável a coesão da personalidade do eu. Todas as memórias traumáticas, potencialidades não exercidas e instintos primitivos residem aí, e estão em constante inter-relação com a consciência. Para mais informações, visitar o texto: O inconsciente na perspectiva junguiana

“O inconsciente pessoal contém lembranças perdidas, reprimidas (propositalmente esquecidas), evocações dolorosas, percepções que, por assim dizer, não ultrapassaram o limiar da consciência (subliminais), isto é, percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência e conteúdos que ainda não amadureceram para a consciência” (Id., 2014, § 103).

Referências:

JUNG, Carl Gustav. A energia psíquica. 14. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 99 p. (OC 8/1). Tradução de Maria Luiza Appy.

JUNG, Carl G.. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 416 p. (OC 8/2). Tradução de Mateus Ramalho Rocha.

JUNG, Carl Gustav. Aion – estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 10. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 383 p. (OC 9/2). Tradução de Dom Mateus Ramalho.

JUNG, Carl Gustav. Estudos experimentais. Petrópolis, Rj: Vozes, 1995. (OC 2). Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth.

JUNG, Carl G.. O desenvolvimento da Personalidade. 14. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 236 p. (OC 17). Tradução de Frei Valdemar do Amaral; revisão técnica de Dora Ferreira da Silva.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014. 168 p. (OC 7/1). Tradução de Maria Luiza Appy.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. Editora Vozes Limitada, 2012.

JUNG, Carl Gustav. The Red Book: liber novus. New York, Ny. London: W. W. Norton & Company, 2009. (Philemon Series). Edited by Sonu Shamdasani; translated by Mark Kyburz, John Peck and Sonu Shamdasani.

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Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban: a projeção do complexo paterno

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O terceiro filme da saga Harry Potter, mostra o menino novamente na casa dos desagradáveis tios Dursley. Irritado com uma tia que vem visitar os Dursley foge de casa e vai viver em um abrigo de bruxos.

Observamos agora há uma diferença marcante em Potter: ele está amadurecendo!

Aos 13 anos ele não quer mais se submeter ao desprezo e maus tratos por parte dos tios, pelo fato de ser diferente. Ele precisa desenvolver sua independência e autonomia. No texto anterior, Potter cada vez mais se afastava de sua família consangüínea retirando as projeções do arquétipo paterno e materno dos pais pessoais. Em O Prisioneiro de Azkaban esse arquétipo paterno encontrará um novo objeto de projeção.

Harry Potter ao fugir dos Dusley, descobre que o assassino Sirius Black, um discípulo de Voldemort, fugiu da prisão de Azkaban, considerada até então como à prova de fugas, e tudo indica que está atrás do herói.

Após o desenvolvimento da estória e com o encontro de Potter e Sirius, descobrimos que o ultimo não é um vilão, mas que foi injustamente acusado de assassinato. Aqui ocorre um sincronicidade: Potter e Sirium, ambos fogem de uma situação injusta e aprisionante. E ambos precisam um do outro para se libertar. Além disso, Potter descobre que Sirius é seu padrinho.

Carl Jung (xx) menciona o motivo da dupla descendência, ou seja, a descendência de pais humanos e divinos, presente na Mitologia Grega, como no caso de Héracles, que foi inconscientemente adotado por Hera, alcançando a imortalidade. No Egito é até mesmo um ritual. O Faraó é por sua natureza um ser humano e divino. Nas paredes da câmara de nascimento dos templos egípcios vê-se representada a segunda concepção e nascimento divinos do Faraó – ele“nasceu duas vezes”. O próprio Cristo nasceu duas vezes: através de seu batismo no Jordão ele renasceu pela água e pelo espírito.

Ou seja, esse segundo nascimento dá base ao motivo dos pais duplos, onde o renascido recebe uma “adoção mágica” representada pelo padrinho e madrinha. Essa adoção sustenta a fantasia infantil de muitas crianças pequenas e crescidas de que seus pais não são os verdadeiros, mas apenas pais adotivos a quem foram confiadas (JUNG, 2000).

Potter reflete essa necessidade humana universal. Os pais humanos não são reais, e os bruxos estão mortos. A possibilidade de um padrinho, que ira satisfazer essa fantasia se aproxima. Somente alguém “divino”, e cuja natureza se aproxima da de Potter, por estar ligada também a Volemort, poderá compreende-lo e aceita-lo.

Por essa perspectiva, pode-se supor um complexo paterno em Potter. Além disso, Carl Jung (2000) diz que os padrinhos possuem a incumbência principal de cuidar do bem-estar espiritual do batizando. Eles representam o par divino, que aparece no nascimento anunciando o tema do“duplo nascimento”, que considera o herói como descendente de pais divinos e humanos.

Quando o jovem busca sua autonomia e independência na adaptação ao mudo, não é fácil se desligar com facilidade das figuras parentais. Potter simboliza o complexo paterno, devido à demora anormal a destacar-se da imagem primordial do pai.

Como Jung (2000) aponta ninguém suporta a perda total do arquétipo, e Sirius representa então a projeção do arquétipo paterno, representante da lei e da ordem. No filme anterior, Potter lidou com os aspectos regressivos da psique, simbolizados pela mãe terrível, e agora ele precisa lidar com o complexo paterno. No entanto, os complexos não necessariamente são negativos. Potter precisa de um modelo masculino para orientar seu ego. No aspecto positivo, esse complexo traz autonomia, independência e o desenvolvimento da inteligência do individuo.

 

 

O filme, então gira em torno do desenvolvimento do laço afetivo de Potter com Sirius e a ajuda que o menino presta para fugir da prisão e provar sua inocência. Outro aspecto interessante do filme é o fato de Potter e Hermione voltarem no tempo para auxiliar Sirius. Antes de voltar no tempo, Potter havia enfrentado os Dementadores (seres estranhos que sugam a energia vital de quem se aproxima deles), mas sem sucesso. Ele atribui sua salvação e a de Sirius a uma estranha visão, a qual ele atribui ao seu pai.

Nessa visão ele vê uma corça que lança um feitiço que afugenta os Dementadores salvando a vida dele e de Sirius. No quarto trabalho, Hércules precisa capturar a corça de Cerínia. A corça pertencia à deusa Ártemis. A corça possuía pés de bronze e cornos de ouro, trazia a marca do sagrado e, portanto, não podia ser morta. Mais pesada que um touro, mas bem rapidíssima, o herói, que deveria trazê-la viva a Euristeu, perseguiu-a durante um ano.

Embora consagrada a Ártemis, essa corça, no mito grego, é propriedade de Hera, deusa protetora do amor legítimo, sendo um símbolo essencialmente feminino. É muito interessante que um animal associado às deusas mães da Mitologia apareça para Potter e seja associada ao pai.

Conforme Brandão (xx), o lado puro e virginal da corça é bem acentuado, mas o “peso do metal”poderá pervertê-la, fazendo-a apegar-se a desejos grosseiros, que lhe impedem qualquer vôo mais alto. Essa corça se contrapõe a uma agressividade dominadora. A corça então pode significar um símbolo da alma de Potter.

Ao retornar no tempo, o herói descobre que ele mesmo lançou o feitiço que salvou sua vida e o de Sirius. E isso tem um significado muito profundo, pois a força de Potter esta na sua alma (anima) e não na masculinidade e na força. Pois bem, mas como ocorreu a resolução desse complexo paterno e o subsequente contato com a anima será abordado nos próximos filmes da série.

FICHA TÉCNICA

HARRY POTTER E O PRISIONEIRO DE AZKABAN

Direção: Alfonso Cuarón
Adaptação de: Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban
Música composta por: John Williams
Duração: 2h 22m
Ano: 2004

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