O Empoderamento (invisível) feminino: a rotina de uma mãe solteira empreendedora
22 de fevereiro de 2022 Josélia Martins Araújo da Silva Santos
Entrevista
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Uma mulher que tem o árduo dever de criar e educar seus filhos sozinha, muitas vezes, não tem o devido reconhecimento de suas habilidades. Quando esta se arrisca, enfrenta as dificuldades e adversidades no campo empreendedor, seus feitos passam desapercebidos, mesmo que tenham impacto extremamente significativo na sociedade diante de suas contribuições.
Pensando nisto, o Portal (En)Cena entrevista Luciene Vieira Mota, mãe, recém formada em Pedagogia, e empreendedora, para que esta conte um pouco de sua experiência profissional e das dificuldades e sucessos adquiridos durante sua jornada como mulher.
(En)Cena – A Covid-19 alterou o modo de vida de quase toda humanidade. Medidas de restrição, uso de máscaras, dentre outras ordens para conter sua propagação e evitar, com isto, maiores prejuízos para a sociedade em geral. Quando iniciou a quarentena, qual era sua realidade familiar e profissional?
Luciene Mota: Então, sem dúvida que a Covid-19 modificou a vida e a rotina de todos (as) nós. Porém, a minha realidade diante da quarentena era: um contrato de auxiliar de sala no município, com data para finalizar, isso em 2020. Seria uma situação que expressava preocupação diante daquela realidade, e, para a minha surpresa tudo melhorou no âmbito profissional e financeiro, pois comece a dar aulas particulares e alfabetização.
(En)Cena – Sua profissão, pedagoga, é essencial para a sociedade, pois tem como finalidade o preparo das jovens mentes para o futuro. Você consegue descrever os principais desafios da sua profissão neste cenário pandêmico?
Luciene Mota: Bem, eu consigo descrever cada um dos meus desafios vividos. Porém, vou abreviar aqui o mais importante: desde quando decidi me tornar Pedagoga, foi um desafio atrás do outro. Cursar Pedagogia seria uma válvula de escape para ter trabalho como professora de educação infantil, na qual sempre me identifiquei. Então, com a pandemia montei uma sala para alfabetizar. No começo, não foi fácil, mas, aos poucos presenciei a mudança e amei o resultado da mesma. Redescobri-me como educadora e tive a plena certeza do que quero ser, Pedagoga, educadora, para fazer a diferença na vida das crianças e viver essa mesma diferença em minha vida.
Fonte: Acervo pessoal da entrevistada
(En)Cena – Para solucionar os problemas financeiros de uma mãe solo, como foi a forma que encontrou para ter renda com seu curso superior?
Luciene Mota: Montando a minha salinha de aula em minha residência, ao passo que ao mesmo tempo, faço meu papel de mãe, pai, dona de casa, mulher, empreendedora, pedagoga e etc.
(En)Cena – Quais são seus planos para o futuro, em que área (as) pretende atuar, e porque escolheu atuar na área da educação?
Luciene Mota: Meus planos para o futuro??…eu vejo a minha escolha e vejo a mesma sendo modelo de transformação no cenário da educação, e sem dúvida pretendo sim atual e me aperfeiçoar cada vez mais nessa área, por que foi a descoberta de um amor tão grande por ensinar, por aprender, por mudar e promover a mudança, e tudo isso é o que me faz seguir adiante, é minha base.
(En)Cena – Você acha que é possível ir além da sala de aula, além de outros papéis que desempenha como mãe, mulher, etc., e se engajar em estudos externos para se aperfeiçoar na docência?
Luciene Mota: Acho???…tenho a mais plena certeza que sim, que posso ser muitas coisas sem deixar de ser mãe, mulher, enfim. E, afirmo que busco todos os dias me aprimorar. E, assim como foi um desafio a escolha do tema do meu TCC pelo qual eu defendi com esplendor (Libras e inclusão social no ensino regular”), um desafio que deu certo e que me trouxe a certeza de que “sou capaz de fazer o que eu quiser”.
(En)Cena – Há algo a mais que você gostaria de dizer aos estudantes não só do curso que escolheu como de outras áreas? E, baseado em tudo o que você disse até aqui até onde pretende chegar com seus estudos?
Luciene Mota: O que eu gostaria de dizer para todos os estudantes é que tenham sonhos, que busquem à vontade, que saiam da sua zona de conforto, que lutem pela realização daquilo que querem e que aprendam sempre!
No momento, ainda estou fazendo uma pós na área da psicopedagogia. Mas, quero sim chegar no doutorado, e o principal motivo disso é desafiar-me cada vez mais e mais, sentir aquele frio na barriga, enfim, chegar ao título de Dra. Muito obrigada, Luciene Mota, “TIA LU”!
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A dinâmica da entrevista psicológica e o papel do terapeuta
O termo “entrevista” é bastante conhecido apesar de denotar uma atividade pouco dissertada na literatura científica (CRAIG, 1991). Convém, primeiro, analisar o significado desta palavra desde o seu sentido mais geral. O Online Etymology Dictionary registra que a palavra “entrevista” deriva do Francês entrevue, substantivo verbal de s’entrevoir, significado “ver um ao outro”, “visitar brevemente” ou “ter um vislumbre de”. A versão online do Dicionário Michaelis descreve este fenômeno como “visita ou encontro combinado” e “reunião entre duas ou mais pessoas, em local determinado, como objetivo de esclarecer assuntos pendentes, expor ideias ou obter opiniões dos presentes”.
Sendo a entrevista um instrumento muito difundido, tendo em seus variados usos uma grande variedade de objetivos, Blegger (2001) delimita o seu alcance ao focar na entrevista psicológica, conceituando-a como aquela na qual se buscam objetivos psicológicos como investigação, diagnóstico e terapia.
Para Kanfer e Seheft (1988) apud Craig (1991), uma entrevista é muito semelhante com uma interação social, tendo traços das interações duplas e grupais. Porém, numa entrevista clínica a maioria das regras sociais de etiqueta não são utilizadas, nela a conversa foca o paciente, portanto, sendo majoritariamente unidirecional. Quanto ao relacionamento, é profissional, não-íntimo, esperando-se das partes uma comunicação relevante para a tarefa em questão. Além disso, na entrevista clínica há limites de tempo, lugar e frequência da interação, impostos por ambas as partes. As declarações do terapeuta vão além do mero diálogo e há a determinação de objetivos específicos e resultados esperados dessa relação terapeuta-paciente.
Miller (2015) escreve que, durante a entrevista, o psicólogo coleta informações da história do cliente, vida social, emprego, situação financeira, experiência prévia em tratamento de saúde mental, bem como também apanha informações relevantes sobre a família do paciente. Todo e qualquer fator que possa impactar a saúde mental e bem-estar do cliente é considerada durante a entrevista psicológica, por isso, este instrumento fornece um compreensível retrato da vida da pessoa, assim ajudando na determinação do diagnóstico e curso do tratamento. Craig (1991) afirma que a maior parte dessas informações é baseada no relato do paciente e na observação do psicólogo, no entanto, não devem ser ignoradas outras fontes de informação, estas estariam nos relatos adicionais da família, em registros sobre o caso, testagens psicológicas ou entrevistas estruturadas suplementares.
Conforme García-Allen (2015), a entrevista tem diversos âmbitos de aplicação, portanto, há distintos tipos de entrevistas conforme o motivo de sua realização. De acordo com o número de participantes, a entrevista, delimitada ao campo da psicologia, pode ser distinta da seguinte forma:
Entrevista individual: é o tipo de entrevista mais utilizado; um exemplo bem comum é quando um psicólogo recebe seu paciente para conhecer o motivo de seu comportamento.
Entrevista em grupo: neste tipo de entrevista, há distintos entrevistados e, maioritariamente, um entrevistador. Na clínica, este tipo de entrevista recebe o nome de “entrevista familiar”.
Além do número de participantes, a entrevista também pode ser categorizada conforme seu formato, ou seja, conforme a maneira com a qual o entrevistador se comunica com o entrevistado e formula perguntas (GARCÍA-ALLEN, 2015).
Entrevista estruturada: De acordo com García-Allen (2015), tal entrevista segue uma série de perguntas fixas preparadas previamente. Craig (1991) acrescenta que essas perguntas são relacionadas à áreas definidas de conteúdo. Para Surbhi S. (2016), a entrevista estruturada faz uso de uma pesquisa descritiva onde os fatores avaliados são explícitos.
Entrevista não-estruturada: aqui são trabalhadas perguntas abertas, sem ordem preestabelecida, portanto, adquirindo as características de uma conversação que permite a espontaneidade. Nesta técnica são realizadas perguntas de acordo com as respostas que surgem durante a entrevista (GARCÍA-ALLEN, 2015). É o tipo mais comum nos settings clínicos; geralmente elas não têm um formato rígido, mas não deixam de ter certa estrutura porque segue uma sequência que inclui áreas-chaves de conteúdos (CRAIG, 1991). Para Surbhi S. (2016), a entrevista não-estruturada faz uso de uma pesquisa exploratória de fatores implícitos.
Há também a entrevista semiestruturada que, segundo Martin (2018), tem um formato um tanto flexível, com perguntas preparadas, mas sem seguir um programa estrito. Aqui a discussão pode desviar-se da lista de perguntas, fazendo com que novas perguntas sejam cogitadas durante a conversa. Geralmente o entrevistado desempenha um papel importante no controle do ritmo da entrevista, diferentemente do que ocorreria numa entrevista estruturada.
Blegger (2001), diferencia a entrevista da consulta e anamnese
A consulta consiste na solicitação da assistência técnica ou profissional, que pode ser prestada ou satisfeita de formas diversas, uma das quais pode ser a entrevista. Consulta não é sinônimo de entrevista; esta última é apenas um dos procedimentos de que o […] psicólogo dispõe para atender a uma consulta. […] Uma anamnese […] implica uma compilação de dados preestabelecidos, de tal amplitude e detalhe, que permita obter uma síntese tanto da situação presente como da história de um indivíduo, de sua doença e de sua saúde. […] Diferentemente da consulta e da anamnese, a entrevista psicológica objetiva o estudo e a utilização de comportamento total do indivíduo em todo o curso da relação estabelecida com o técnico.
Conforme Blegger (2001), a teoria da entrevista foi muito influenciada pela psicanálise, Gestalt, topologia e behaviorismo. A psicanálise teve seu papel com o conhecimento da dimensão inconsciente do comportamento, da transferência e contratransferência, da resistência e repressão, da projeção e introjeção, etc. A Gestalt reforçou a compreensão da entrevista como um todo no qual o entrevistador está entre os integrantes, sendo que o comportamento dele é elemento da totalidade. A topologia foi fator da delineação e reconhecimento do campo psicológico. Já o behaviorismo contribuiu com a importância da observação do comportamento.
A entrevista pode ser de dois tipos básicos: aberta e fechada, como registra Blegger (2001). Na segunda as perguntas já estão previstas, assim com a ordem e a maneira de formulá-las, e o entrevistador não pode alterar nenhuma destas disposições. Na entrevista aberta, pelo contrário, o entrevistador tem ampla liberdade para as perguntas ou para suas intervenções, permitindo-se toda a flexibilidade necessária em cada caso particular. A entrevista fechada é, na realidade, um questionário que passa a ter uma relação estreia com a entrevista, na medida em que uma manipulação de certos princípios e regras facilita e possibilita a aplicação do questionário. […] A entrevista aberta possibilita uma investigação mais ampla e profunda da personalidade do entrevistado, embora a entrevista fechada permita uma melhor comparação sistemática de dados, além de outras vantagens próprias de todo método padronizado.
Blegger (2011) ainda apresenta a diferenciação das entrevistas conforme o beneficiário do resultado, distinguindo: a) a entrevista que se realiza em benefício do entrevistado; b) a entrevista cujo objetivo é a pesquisa, na qual importam os resultados científicos; c) a entrevista que se realiza para um terceiro (uma instituição). Cada uma delas implicam variáveis diferentes a serem consideradas, pois influenciam sobre o entrevistador e entrevistado, afetando tudo que a entrevista venha a englobar.
Conforme Craig (1991), a entrevista, a partir do quesito objetividade, pode ser dividida nos seguintes tipos, aqui apresentados sucintamente.
Entrevista de Tomada de Dados: tem o propósito de obter informações preliminares sobre um paciente em perspectiva.
Entrevista da História de Caso: tem o propósito de rever a natureza dos conflitos do paciente em sequência histórica, com o foco nos períodos críticos, antecedentes e desencadeantes.
Exame do Estado Mental: visa determinar o nível de prejuízo mental associado à condição clínica investigada; avalia áreas como raciocínio, juízo, audição e percepção.
Entrevistas de pré e pós-testagem: a entrevista prévia ao teste visa explicar ao paciente as razões para o teste e seus benefícios, bem como discutir aspectos administrativos, tais como local e hora. Quando a entrevista é realizada após os testes, o psicólogo geralmente já desenvolveu hipóteses como resultado da testagem, visando explorá-las melhor com o paciente.
Entrevista Breve de Avaliação: aqui o terapeuta visa apenas uma área específica, não considerando outros elementos da entrevista, assim obtendo a informação desejada em curto período.
Entrevista de Desligamento: o objetivo é conhecer o ponto de vista do paciente sobre os benefícios decorrentes do tratamento, examinar os planos para pós-alta ou trabalhar qualquer problema não resolvido.
Entrevista de Pesquisa: este tipo de entrevista é específico para a natureza da pesquisa desenvolvida, sendo parte de um protocolo rígido, aprovado pelo comitê revisor da instituição. Realizada com a permissão do paciente que assina o um documento no qual declara seu consentimento.
O que Blegger (2011) chama de “entrevista de tomada de dados” talvez seja o mesmo que “triagem” visto que em ambos os casos há um paciente em perspectiva. Muñoz (2015?) escreve que a entrevista de triagem é um instrumento válido que facilita uma rápida classificação do paciente, contudo, baseado em observações incompletas, ou seja, a triagem permite uma visão geral do paciente mas sem ter em conta muitos dados pessoais, familiares, sociais, de patologia prévia.
Personagem crucial no desenvolvimento da entrevista, o entrevistador deve ter consigo uma ampla bagagem teórica e metodológica que o norteará no processo entre terapeuta e paciente. Este contingente de teorias e métodos não podem, contudo, tornar a entrevista um processo puramente mecânico no qual perguntas surgem e requerem repostas num automatismo frio e inibidor. Para isto é necessário que o entrevistador entenda que é mais do que um mero formulador de perguntas, sendo, na verdade, um motivador. Neste caso, o objeto da motivação é o entrevistado que, adequadamente esforçado, tem seus bloqueios psicológicos derrubados e se abre para o terapeuta.
A terapia centrada no cliente, desenvolvida por Carl Ransom Rogers e seus colaboradores, baseia-se na habilidade de escutar. Rogers introduziu uma “técnica” conhecida como “reflexo”, com a qual o terapeuta escuta o cliente e “reflete” seus pensamentos e sentimentos significativos dizendo ao cliente o que ele ouviu dizer. Alguns terapeutas fazem isto de uma forma mecânica, o que os faz parecer papagaios com uma graduação de psicologia, contudo, não era isto o desejado por Rogers. Para este, deve haver uma autêntica comunicação de compreensão e preocupação. Hoje em dia, o reflexo é apenas uma parte da chamada “escuta ativa” (BOEREE, 2018). O trabalho do terapeuta não é tanto fazer isto ou aquilo, mas sim “estar” de certa forma para o cliente.
Conforme escreve Boeree (2018), Rogers apresenta três qualidades que o terapeuta deve ter durante as sessões de terapia:
Ele ou ela deve ser congruente: Basicamente, isto implica ser honesto, não ser falso, pois os clientes podem perceber quando seu terapeuta está fingindo. A congruência é necessária para gerar confiança na relação terapêutica.
Ele ou ela deve ser empático: O terapeuta deve ser capaz de identificar-se com o cliente, entendendo-os não tanto como psicólogo, mas como uma pessoa que também tem visto parte de seus problemas. O terapeuta deve ser capaz de mirar os olhos do cliente e ver a si mesmo.
Ele ou ela deve mostrar ao cliente uma consideração positiva incondicional: Não significa que o terapeuta tem que amar o paciente, mas que ele deve respeitá-lo como ser humano e não o julgar.
Rogers, ao longo de sua obra, coloca que o objetivo do terapeuta é participar da experiência imediata do seu cliente. Para isto é necessário que o terapeuta saiba escutar e observar, estar atento aos movimentos da relação e à sua interação com seu cliente […] A ideia do terapeuta “centrado na pessoa” é de compreender o sujeito falante, a sua fala e o que se passa no aqui e agora da relação. A perspectiva da terapia rogeriana se encontra com as premissas fenomenológicas no sentido de que o real aí está, o fenômeno está aí presente, oferecido à observação, bastando se estar atento para apreendê-lo sob o prisma do sujeito que vive o fenômeno (HOLANDA, 2009).
A ótica rogeriana apresenta um conceito que rege praticamente todos os processos envolvidos tanto na clínica quanto no cotidiano de seus clientes, é o conceito de tendência atualizante, clássico e melhor descrito nas palavras do próprio idealizador.
Todo organismo é movido por uma tendência inerente a desenvolver todas as suas potencialidades e a desenvolvê-las de maneira a favorecer sua conservação e enriquecimento. Observemos que a tendência atualizante não visa somente […] a manutenção das condições elementares de subsistência como as necessidades de ar, de alimentação, etc. Ela preside, igualmente, atividades mais complexas e mais evoluídas tais como a diferenciação crescente dos órgãos e funções; a revalorização do ser por meio de aprendizagens de ordem intelectual, social, prática (ROGERS; KINGET, 1977, p.159-160 apud HOLANDA, 2009).
É a partir desse conceito que Rogers pensa a clínica psicoterapêutica, mostrando profunda confiança, quase uma “crença” na capacidade humana, tendo em vista um homem artífice de si próprio, como seu “próprio arquiteto”. Portanto, o cliente passa a ser considerado “sujeito” de sua própria vida, ativo e consciente. Em virtude dessa implícita concepção de homem, obrigatoriamente é pressuposta uma similar mudança na posição do terapeuta nesta relação, como explica Holanda (2009) ao escrever que
Se o sujeito da clínica é autônomo, consciente e dotado de potencialidades suficientes para se desenvolver, o papel ocupado pelo terapeuta deixa de ser o de “guia” ou de detentor de um suposto saber alheio ao cliente. Dá-se um natural emparelhamento de posições: ambos, terapeuta e cliente, são “pessoas” e sobre esta perspectiva se apoia toda a simplicidade do método rogeriano. Em um contexto como este, a figura do terapeuta é destituída de sua representação mágica e a responsabilidade do processo passa a ser do próprio sujeito do cliente – o que justifica, inclusive, a apropriação do termo “facilitador” ao invés de “terapeuta”, para Rogers –; ademais, isto se reflete igualmente na postura desse facilitador. Em outras palavras, a sua postura durante a entrevista passa por sua confiança nessa tendência atualizante. Desta feita, por considerar que o mais importante na terapia é desenvolver as potencialidades do cliente, o facilitador prescinde de usar “diretivas”, de ser o principal agente direcionador do processo de seu cliente, em uma posição de facilitar a emergência do fenômeno de seu cliente. O ponto central da ideia da “não-direção” é, em essência, uma abstenção de intervenções diretas baseadas em valores e pré-julgamentos, forçosamente orientados por um arcabouço teórico anterior ou por uma postura de suposto saber do terapeuta. É uma atitude diferenciada do terapeuta que […] passa por uma “recusa”: A não diretividade é, antes de tudo, uma atitude em face do cliente. É uma atitude pela qual o terapeuta se recusa a tender a imprimir ao cliente uma direção qualquer, em um plano qualquer, recusa-se a pensar que o cliente deve pensar, sentir ou agir de maneira determinada. […] É uma atitude pela qual o conselheiro testemunha que tem confiança na capacidade de autodireção do seu cliente. […] Assim sendo, as intervenções do terapeuta devem salvaguardar ao máximo a integridade do cliente. A atitude deve se basear na compreensão e na apreensão do mundo interno do sujeito, evitando a interpretação e a interposição de valores. Ao se interpretar, corre-se o risco de “compreender ‘sozinho’, de acreditar compreender quando de fato o que se está fazendo é projetar nossas significações sobre a situação do cliente”. Isto nos lembra a célebre epígrafe de Erwin Straus quando, ao questionar o princípio interpretativo apoiado em teorias destacadas da vivência, coloca que “na maioria das vezes, as ideias inconscientes do paciente, são as teorias conscientes de seu terapeuta”.
Por fim, é importante salientar seis imperativos da atitude do entrevistador, prerrogativas de ser um terapeuta centrado no cliente, conforme apresentado por Mucchielli (1978) apud Holanda (2009).
(1) Acolhida e não iniciativa: trata-se de uma atitude de receptividade, convite a ficar à vontade, diferentemente da atitude de iniciativa que obriga o outro a dar respostas ou a reagir diante da situação (embora esta seja uma atitude assaz eficiente e, de fato, “centrada no cliente”, também pode gerar certas inseguranças e incertezas). É importante estarmos atentos à cultura na qual estamos inseridos – ou o cliente em questão. É muito comum recebermos um cliente repleto de expectativas definidas sobre a situação da entrevista terapêutica; não responder a estas expectativas ou ignorá-las é uma atitude de pré-julgamento da circunstância. O mais indicado é aguardar o advento do fenômeno do cliente, mas não ignorar as suas necessidades mais prementes;
(2) Estar centrado no que é vivido pelo sujeito e não nos fatos que ele conta: Primado da vivência que é sempre uma vivência particular, vivido do outro, nunca é de posse de uma interpretação alheia. O meu vivido é o meu vivido. Devo, pois, apreender o sentido deste vivido tal qual ele o é para esse outro sujeito. Significa dizer que os fatos objetivos são auxiliares e não determinantes na compreensão do meu outro. Todavia, convém assinalar que isto não significa dizer que devemos simplesmente “deixar de lado” os fatos ou as objetividades. Os fatos são constituintes da cultura e da realidade dos indivíduos, e devem ser entendidos como tais. São, pois, de extrema relevância. O que não podemos é nos atermos aos fatos em si, visto que, cada fato é vivido na particularidade do sujeito. Em outras palavras, trata-se de focar o “sentido” ou o “significado”;
(3) Interessar-se pela pessoa do sujeito, não pelo problema em si mesmo: corolário do anterior. O autor coloca “renúncia” ao ponto de vista objetivo, visto o problema ser existencial. Não se trata, na realidade, de renunciarmos à objetividade, mas apenas remanejar as relevâncias. Os problemas são fatos da própria realidade, ou seja, todo mundo tem problemas e muitas vezes problemas absolutamente idênticos. As vivências destes problemas é que diferem em si, ou seja, os problemas podem ser iguais, os sentidos nunca são iguais – são particulares e da esfera da existência individual de cada um. No caso da terapia, o facilitador “tentar ver não o problema em-si, mas o problemado-ponto-de-vista-do-sujeito em questão” […]. É isto que caracteriza uma entrevista “centrada na pessoa”;
(4) Respeitar o sujeito e manifestar-lhe uma consideração real, em lugar de tentar mostrar-lhe a perspicácia do entrevistador ou sua dominação: Isto é consequência da principal noção rogeriana, a de tendência atualizante. Significa acreditar que o cliente tem potencial para sair da situação na qual se encontra, de recobrar sua dinamicidade perdida, seu “estado de equilíbrio”. Significa respeitar esta potencialidade e respeitar a própria existência do indivíduo como algo único, real. É um respeito por sua integridade, sua maneira de ver a realidade, de sentir, de viver. É uma não interposição de conceitos: os meus conceitos ou as minhas ideias são os meus conceitos e as minhas ideias, os conceitos e as ideias do outro são os conceitos e as ideias do outro. Podemos trocar e interagir, mas não devemos impor nada, sob pena de perdermos o sentido da individualidade e nos mesclarmos num amálgama disforme. “Não é o caso de ‘fazer psicologia’, mas de escutar e de compreender”;
(5) Facilitar a comunicação e não fazer revelações: Não se trata de enquadrar esta ou aquela fala num determinado padrão de interpretação, ou de revelar uma “verdade” apreendida ao outro (a verdade atribuída é sempre verdade projetada). A rigor, o que difere o modo de reformulação de uma interpretação clássica é a apreensão do mundo privado do sujeito como ponto de partida. A “interpretação” parte da subjetividade de quem interpreta, enquanto que na reformulação se destaca o esforço por considerar a alteridade e o ponto de partida é sempre o do sujeito da vivência. Nesta perspectiva, “trata-se de esforçar-se para manter e melhorar a capacidade de comunicar e de formular o seu problema. Permite-se ao cliente esclarecer a sua própria experiência para si, logo, possibilitando a sua solução. Uma dialética que aponta para o fato de que nos próprios problemas estão suas soluções.
Sigmund Freud percebe na prática da psicoterapia uma série de particularidades humanas que aparentemente entram em conflitos, o que faz com que o entrevistador se veja em uma profissão paradoxal, afinal, em um único ser humano devem ser integradas várias características humanas aparentemente conflitantes. Assim sendo, é fortemente evocada a tensão de polaridades opostas em um ambiente onde as diferentes necessidades dos clientes impõem ao terapeuta exigências aparentemente intermináveis (HYCNER, 1995). O paradoxo primordial está representado pela óbvia tensão entre as dimensões “subjetiva” e “objetiva” na psicoterapia, onde é requerido, ou mesmo exigido, um envolvimento pessoal da parte do terapeuta, ao mesmo tempo é preciso que ele mantenha a objetividade apropriada. Torna-se crucial a resposta equilibrada do terapeuta. Assim sendo, o conhecimento objetivo precisa estar fundamentado na experiência subjetiva do cliente e na do terapeuta, o que caracteriza a tensão entre o conhecimento nomotético, ou generalizável, e o conhecimento ideográfico, ou único.
O terapeuta precisa ter uma quantidade substancial de conhecimentos sobre os seres humanos em geral; porém, precisa sempre se esforçar para apreciar profundamente a experiência única da pessoa sentada à sua frente. Ambos os aspectos são essenciais para a empatia e compreensão das experiências de outro ser humano. Ainda assim, há entre eles uma forte disputa pela dominância. Constantemente o terapeuta precisa decidir sobre que aspecto atender em um dado momento. Em cada caso existem barganhas e riscos envolvidos. Ainda assim, é o jogo inerente aos riscos que dá força e vida a esse esforço. Surge, então, para o terapeuta a necessidade de integrar as dimensões objetiva e subjetiva de forma harmoniosa. Graças a isso, o gênio pioneiro de Freud manifestou-se pela necessidade de uma “consciência plainando em equilíbrio”, isto é, uma consciência que não esteja sujeita aos extremos usualmente evocados no encontro humano. De uma forma similar, Buber sugere que o psicoterapeuta precisa desenvolver a habilidade, aparentemente contraditória, de manter uma “presença-distanciada”. O terapeuta deve estar totalmente presente e, simultaneamente, ser capaz de refletir sobre o que está sendo experienciado num dado momento.
O processo psicoterapêutico exige que ambas as dimensões da existência, a “subjetiva” e a “objetiva”, sejam habilmente mescladas (HYCNER, 1995). Nesse processo, o terapeuta deve encarar a psicoterapia como ciência ou como arte? O enfoque mais enfatizado afetará o treinamento do psicoterapeuta bem como os valores decorrentes deste treinamento, logo, é determinante na atitude com que o indivíduo aborda seu trabalho. É certo que há um corpo de conhecimentos na psicologia e teoria psicoterapêutica essencial no trabalho com pessoas. Mas, ser responsivo ao cliente implica usar “sob medida” o conhecimento científico e os fatos, para que sirvam a uma única pessoa. Este aspecto muito exigente da profissão requer que o terapeuta integre a arte à ciência da psicoterapia. A negligência de uma das duas resulta num “des-serviço” ao cliente (HYCNER, 1995).
O terapeuta, além disso, confronta-se com problemas aparentemente contraditórios em relação aos aspectos pessoal e profissional. O self do terapeuta é intrinsecamente uma parte do processo. Em que grau o terapeuta enfatiza seu self pessoal em terapia e em que grau sua persona profissional é predominante? Onde começa o profissional e cessa pessoal? A tentação maior, e à qual pode-se sucumbir mais facilmente, é enfatizar a conduta profissional de forma a encobrir as inseguranças em estado de ebulição, que podem armar uma cilada para a pessoa do terapeuta. Sem dúvida, a persona profissional é parte necessária do processo psicoterapêutico de cura – ainda assim é somente a “forma” através da qual a pessoa terapeuta emerge (HYCNER, 1995).
O terapeuta ainda é confrontado frequentemente com o não desejado. Questões às quais ele, consigo mesmo, não deseja analisar podem ser trazidas pelo próximo cliente, e isso é irreversível, pois não há evitação em terapia. O profissional, incessantemente forçado a lutar com suas fragilidades e com seus pontos cegos, pode encontrar nesse dilema a raiz de sua empatia. Como “curador ferido”, tem uma natureza profundamente sensível à vulnerabilidade alheia. Mas deve-se considerar se certa vulnerabilidade torna o terapeuta mais aberto, porque um excesso de “feridas” pode trazer à tona suas defesas e fechar as portas para a possibilidade de um encontro genuíno. De fato, o “curador ferido” cura; mas, se o ferido torna-se o principal na terapia, o foco pode vir a ser a cura do terapeuta e não a do cliente, o que não deve ocorrer. Cabe ao terapeuta promover o aparecimento de suas feridas no processo psicoterapêutico, evitando que a cura do seu próprio self seja o objetivo na relação com o cliente. Como consequência natural, o terapeuta pode sim alcançar sua cura como resultado dessa interação “entre” (HYCNER, 1995).
Cabe ressaltar outro contraste na profissão paradoxal que se dá entre a experiência subjetiva do terapeuta e suas habilidades relacionais. O terapeuta deve estar em contato com sua própria experiência individual e ao mesmo tempo manter plena a interação com seu cliente, entendendo a experiência deste. Ser introvertido o suficiente para ter uma awareness altamente desenvolvida de si mesmo, e ser capaz de se relacionar facilmente com outras pessoas. O termo inglês “awareness” não tem correspondência exata em português, mas significa “uma forma de experienciar”. Implicando um processo de estar em contato vigilante com o evento de maior importância no campo indivíduo/meio, com total suporte sensório-motor, emocional, cognitivo e energético. O terapeuta precisa estar cuidadosamente aware do que está acontecendo entre ele e o cliente. (HYCNER, 1995). Vila (2016) escreve que o terapeuta precisa de uma grande dose de awareness para seu trabalho, e que nisso reside parte da qualidade artística da terapia, ter a maior consciência possível do momento e de tudo que há no campo, a fim de responder criativa e espontaneamente na interação com o paciente.
E, nesse ambiente de paradoxos, o self do terapeuta é o “instrumento” que será utilizado na terapia. Isso implica que a orientação teórica não é tão decisiva quanto a inteira disponibilidade que promove o encontro de self com self. Nesse encontro genuíno nasce a inteireza do cliente que estava ausente antes da interação (HYCNER, 1995).
BLEGGER, José. Temas de Psicologia: Entrevistas e Grupos. Bela Vista: WMF Martins Fontes, 2001.
BOEREE, George. La terapia centrada en el cliente de Carl Rogers. Disponível em: <https://www.psicologia-online.com/la-terapia-centrada-en-el-cliente-de-carl-rogers-1275.html>. Acesso em 25 julho 2018.
CRAIG, Robert J. Entrevista Clínica e Diagnóstica. São Paulo: Artmed, 1991.
Dicionário Michaelis. Disponível em: <http://www.michaelis.uol.com.br/>. Acesso em 02 novembro 2017.
GARCÍA-ALLEN, Jonathan. Los distintos tipos de entrevista y sus características. Disponível em: <http://www.psicologiaymente.net>. Acesso em 07 novembro 2017.
HYCNER, Richard. De pessoa a pessoa: psicoterapia dialógica.
HOLANDA, Adriano Furtado. A perspectiva de Carls Rogers acerca da resposta reflexa. Disponível em: < http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S217525912009000100004>. Acesso em 04 novembro 2018.
MARTIN, Melanie J. Diferencia entre las entrevistas estructuradas y semiestructuradas. Disponível em <https://www.cuidatudinero.com/13104149/diferencia-entre-lasentrevistas-estructuradas-y-semi-estructuradas>. Acesso em 16 maio 2018.
MILLER, Ashley. The Purpose of a Clinical Interview in a Psychological Assessment. Disponível em: <http://www.chron.com/>. Acesso em 06 novembro 2017.
MUÑOZ, Eva María Ruiz. El triage psicológico: ¿Una herramienta para el psicólogo de emergencias? Disponível em: <https://psicologosemergenciasbaleares.files.wordpress.com/2014/01/numero14vol1_2015_triag e_psicologico.pdf>. Acesso em: 05 junho 2018.
VILA, David Picó. El awareness. Disponível em: <https://gestaltnet.net/documentos/elawareness>. Acesso em 29 abril 2019.
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Psicologia Política e Democrática: desafios e práticas
No dia 15 de novembro é comemorado o dia da Democracia, e por isso o En(Cena) convidou duas psicólogas atuantes na cidade de Palmas, para um debate sobre questões pertinentes sobre psicologia política e democracia, para compreendermos mais sobre a temática.
Ana Carolina Peixoto do Nascimento possui graduação pelo Centro Universitário Luterano de Palmas – CEULP/ULBRA, Mestrado em Ensino em Ciência e Saúde, pela Universidade Federal do Tocantins, sócia fundadora do Devir Espaço Terapêutico, onde atua como psicóloga clínica no atendimento de crianças e adolescentes.
Ana Carolina Peixoto, Psicóloga, CRP 23/1253
Ester Maria Cabral, possui graduação em serviço social pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC-GO (1982), graduação em Psicologia pelo Centro Luterano de Palmas – CEULP/ULBRA, especialização em Saúde Mental pela Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ.
Ester Maria Cabral, Psicóloga, Assistente Social, CRP 23/1766
As convidadas abordaram características e contribuições que a psicologia traz para a colaboração da garantia e empenho dos direitos à democracia e suas práticas.
En(Cena) –Como vocês avaliam a relação de políticas públicas e psicologia?
Ana Carolina – Durante muitos anos, a Psicologia esteve recolhida às quatro paredes dos consultórios particulares, restringindo-se a uma pequena parcela da população, aquela que
tinha condições de pagar. Com a inserção da Psicologia nas políticas de saúde, assistência social, justiça e educação, a Psicologia caminha para um processo de democratização do acesso aos serviços psicológicos, em consonância ao nosso Código de Ética Profissional, buscando reduzir as desigualdades, promovendo a inserção social, saúde e qualidade de vida, e buscando eliminar quaisquer formas de violência e negligência.
Ester Cabral – As políticas públicas no Brasil começam a ser pensadas a partir de movimentos de sistematização e mobilização de caráter científico nas décadas de 1930 a 1960, com ênfase na implantação do Estado Nacional Desenvolvimentista com o grande desafio de modernização de uma sociedade fortemente dependente de países mais avançados tecnologicamente.
A Psicologia desde os seus primórdios sempre esteve ligada a setores importantes da sociedade e o início de sua profissionalização se deu com a contribuição de duas grandes áreas do conhecimento: a educação e a saúde. No entanto, era vista como elitista e de difícil alcance da população de modo geral.
A partir da constituição de 1988, nossa constituição cidadã, percebe-se um avanço na implementação das políticas públicas no país especialmente as voltadas à Seguridade Social e neste campo a psicologia tem alcançado um espaço maior de atuação, em especial nas áreas de Assistência Social e Saúde.
É evidente que o alcance da psicologia enquanto profissão é muito maior e cabe em todos os espaços políticos, no entanto este lugar de atuação tem se restringido, apesar de vários movimentos para sua expansão, em especial na área da educação onde o profissional psicólogo ainda não tem seu espaço garantido.
As políticas de saúde pública e de assistência social já contemplam a presença do profissional psicólogo em seus dispositivos de atuação tais como: CRAS, CREAS na Assistência Social e Hospitais, Ambulatórios de Especialidades, CAPS, NASF na Saúde, porém esta atuação ainda é bastante insipiente e percebe-se que a atuação deste profissional é requerida, em sua grande maioria, para os atendimentos clínicos.
Sabe-se que há espaço para a atuação do profissional psicólogo na gestão das políticas públicas, porém nem sempre a psicologia é contemplada para estes fins a não ser nas áreas de Recursos Humanos.
Muito se tem a fazer no sentido de estabelecer uma maior interlocução da profissão com as áreas públicas e a Psicologia Social é a que mais se destaca nesta vertente, buscando discutir com a sociedade seu papel primordial na mudança de visão que a população tem da nossa profissão, antes vista como elitista, para uma visão mais próxima dos anseios da população, especialmente a população carente.
En(Cena) – Ana Carolina, o que te levou a escolher trabalhar com a psicologia e especificamente a área de álcool e outras drogas?
Ana Carolina: Acredito que o meu encanto com a Psicologia sempre foi a nossa capacidade de transformação de realidades, mundos, jeitos de ser e de viver (nossos, profissionais Psi, e das pessoas que entram em contato com o nosso trabalho).
Durante a faculdade de Psicologia, tive a oportunidade de experimentar diversas vivências (em projetos de pesquisa, extensão, monitorias, estágios extracurriculares e curriculares) e, dentre elas, a inserção na Política de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Foi durante a participação no projeto de pesquisa PET-Saúde (Programa de Educação pelo Trabalho em Saúde) que me inseri, pela primeira vez, no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPS AD III). A princípio, foi uma experiência desafiadora, pois a primeira emoção que senti ali foi de medo (enormemente influenciada pelas reportagens e notícias veiculadas nos meios de comunicação, que desumanizam o usuário de drogas, e o representam como um “monstro”). Imaginem o meu choque, de entrar no CAPS AD esperando encontrar “zumbis” (vide referência das novelas que ousam retratá-los assim), e encontrar pessoas normais?! Essa experiência do PET-Saúde despertou o meu interesse para conhecer mais a Política, e foi quando decidi escrever o meu Trabalho de Conclusão de Curso com essa temática. Após concluir a graduação, trabalhei durante dois anos neste mesmo CAPS AD III, como psicóloga da equipe multidisciplinar, e dei continuidade aos meus estudos e pesquisas nessa área com a minha dissertação de Mestrado. E pretendo continuar no Doutorado…
En(Cena) – Ester, o que te levou a escolher trabalhar com a assistência social e posteriormente a psicologia?
Ester Cabral: Sempre gostei de políticas públicas e o Serviço Social me oportunizou o trabalho na área da Saúde Pública, atendendo a uma população em vulnerabilidades sociais graves. Como Assistente Social, trabalhei na gestão da saúde em Policlínica, depois em Serviços de Saúde Mental (NAPS e CAPS) e em hospital, na assistência à saúde. .
Ao tempo em que atuava na gestão destes serviços, também tive a oportunidade e o privilégio de acompanhar o nascimento do SUS e do SUAS, participando de suas instâncias de controle social nos Conselhos Municipais de Saúde e de Assistência Social, o que enriqueceu minha atuação como Assistente Social à época.
Este contato com a Saúde Mental me trouxe para a psicologia e na gestão de serviços de CAPS pude perceber a riqueza da conexão entre Serviço Social e Psicologia especialmente tendo uma visão sistêmica da realidade das pessoas em sofrimento psíquico e suas famílias. A partir desta vivência, pude concluir minha segunda graduação, mesmo que agora não mais esteja atuando na área pública.
En(Cena) – Em suas atuações profissionais, quais são os maiores embates no desenvolvimento da psicologia política e garantia da democracia?
Ana Carolina – Acredito que não existe Psicologia sem Política, porque a Psicologia é, em essência, um convite a pensar na problemática social, e o social não está “fora”, mas acontece no meio, entre as relações que estabelecemos. A Psicologia é política a partir do momento que fornece os meios para romper com o massacre das subjetividades, e integra o sofrimento do sujeito ao contexto político-histórico-social.
E me parece que a Psicologia que permanece fechada em suas quatro paredes (e isso não acontece somente nos consultórios particulares, mas também podemos constatar na atuação nas Políticas Públicas) ainda carece desse debate, dessa crítica social. A constituição da Psicologia como ética-estética-política busca romper com a padronização das formas de cuidado, para criar intervenções singulares para sujeitos singulares.
Ester Cabral – Entendo que os maiores embates no desenvolvimento da psicologia política na garantia da democracia estão especialmente na luta de seus profissionais pela manutenção da garantia de direitos dos cidadãos, alcançados por meio de nossa Constituição Federal. Estes direitos já garantidos estão sendo negociados de forma nefasta por parte dos “altos poderes nacionais”, colocando em risco nossa tão frágil democracia.
Em tempos de divisões ideológicas e de um país altamente polarizado, há que se pensar nos valores que a Constituição de 1988 prega e cada profissional engajado politicamente deve se posicionar no sentido de que os espaços de diálogo da população no seio das políticas públicas já concretizados sejam preservados e que através da conversação e da construção possamos efetivar nossa democracia tão atacada ultimamente.
En(Cena) –Ana, partir dos seus estudos e experiências, por quais motivos a população está tendo, cada vez mais cedo, o consumo de álcool e drogas?
Ana Carolina – compreensão que temos das drogas se modifica a depender do contexto histórico-político-social-cultural que vivemos. Desse modo, podemos dizer que as pessoas sempre usaram drogas para diversos fins, sejam eles religiosos, políticos, recreativos, medicinais.
Quando falamos em uso de drogas, estamos falando de substâncias lícitas e ilícitas (do ponto de vista legal), ou, utilizando a definição da Organização Mundial de Saúde “qualquer substância capaz de produzir alterações no funcionamento do nosso organismo”, a isso incluem-se os medicamentos, o álcool, o tabaco, a maconha, o crack, cocaína, açúcar, café etc.. No entanto, o contexto que conhecemos hoje, de “Guerra às Drogas” tem seu princípio na proibição do álcool nos Estados Unidos, em 1970, e tem raízes racistas e morais, proibindo certas substâncias e liberando outras, como falado anteriormente, a depender do sistema de valores sociais.
Desse modo, as pesquisas recentes apontam para um crescimento significativo do uso de medicamentos (em especial os opióides e anfetaminas, como a morfina, tramadol, metilfenidato – Ritalina), com 57 e 27 milhões de pessoas em todo o mundo, respectivamente, segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC, 2020). A mesma pesquisa apontou que cerca de 19 milhões de pessoas fizeram uso de cocaína ou crack. Além disso, a Organização Mundial de Saúde publicou, em 2018, uma pesquisa apontando mais de 2 bilhões de pessoas que faziam uso de álcool, sendo mais de 280 milhões de pessoas com transtornos relacionados ao uso de álcool no mundo (OMS, 2018). Mas, por que é importante entendermos esses dados (e aqui estou trazendo somente um recorte)? Porque quando fala-se em “epidemia de drogas” e “Guerra às Drogas”, não está se falando do álcool e dos medicamentos, mas das substâncias ilícitas, em especial aquelas consumidas pelos estratos da população mais vulneráveis, o que evidencia a retórica falaciosa dessa Guerra, que nunca foi às drogas, mas as pessoas que usam “determinadas” drogas, em “determinados” espaços e contextos sociais. E isso é fundamental para entendermos o recorte sócio histórico em que vivemos, em que os jovens têm fácil acesso ao álcool e tabaco, em que a vida (e suas vicissitudes) é medicalizada, e o cenário proibicionista e racista encarcera e mata jovens pretos e periféricos.
En(Cena) – Ester, diante de suas experiências na assistência social e psicologia, os direitos democráticos e políticas públicas estão sendo aplicados na área da saúde mental?
Infelizmente, tudo o que se construiu e se estruturou em termos de saúde mental no país a partir da Reforma Psiquiátrica Brasileira da década de 1970 até 2015, está sendo desconstruído de forma descabida baseada em lobes políticos de instituições, que por anos usurparam o direito do cidadão com transtornos mentais de se tratar em liberdade.
É com muita tristeza que vemos o desmonte da Rede de Atenção Psicossocial, começando pela falta de financiamento, pelo estrangulamento dos serviços de CAPS, pela desconfiguração da RAPS e pela introdução de serviços privados de caráter contrário aos princípios da Reforma Psiquiátrica e do tratamento em liberdade em especial ao cuidado das pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, como as Comunidades Terapêuticas.
O desmonte da estrutura da RAPS a partir da Atenção Básica como ordenadora do cuidado, a implantação de serviços ambulatoriais para a saúde mental, deslegitimando o trabalho do NASF e dos CAPS no território são intervenções danosas aos direitos democráticos adquiridos pela população no cuidado à Saúde Mental no país.
En(Cena) – A população de Palmas tem conhecimento sobre os recursos e assistência oferecidos no combate e tratamento de álcool e outras drogas no município?
Ana Carolina – Sim, acredito que a população tenha acesso a informação e divulgação dos serviços que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no cuidado em Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. No entanto, falta investimento do setor público, tanto nos serviços já existentes buscando qualificar e aprimorar as equipes, estrutura física e condições de trabalho, quanto na implantação de novos serviços necessários para o bom funcionamento da Rede.
Nesse sentido, a falta de investimento público vem acontecendo nos diversos níveis (nacional, estadual e municipal), ocasionando um desmonte de programas e serviços. Vale citar a Nota Técnica N° 11/2019 da Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, vinculada ao Ministério da Saúde; a Lei N°13.840/2019; o Decreto N° 9761/2019; a Lei Estadual N° 3.528/2019 (revogada pelo Superior Tribunal Federal por ser inconstitucional) e outras publicações que traduzem esse atraso.
Ester Cabral – Creio que a população sabe que existem recursos de saúde e assistência social no município, no entanto, não têm conhecimento do que é oferecido nos dispositivos existentes. Infelizmente não há uma divulgação efetiva dos serviços e recursos oferecidos à população e grande parte da população sabe que esses recursos existentes não são suficientemente ofertados para o atendimento da demanda.
En(Cena) – Quais meios de acesso você considera eficaz para que a população possa ter maiores informações a respeito de democracia e garantia da mesma?
Ester Cabral – A mídia e as redes sociais são, hoje, potentes meios de acesso e comunicação para que a população seja informada de seus direitos. No entanto, entendo que estas informações só conseguem chegar de forma mais contundente à população, em época de campanhas políticas quando os aspirantes aos cargos fazem questão de mostrar o que a sociedade tem e o que não tem.
Vejo que a sociedade organizada também é um excelente veículo de informação e de meio de acesso à estas informações exercendo seu papel de controle social participando dos conselhos municipais e estaduais das mais diversas políticas. Foi assim que construímos o SUS e o SUAS, com a efetiva participação da sociedade e é através destes mecanismos que manteremos nossa democracia em pé.
Ana Carolina – Garantir que as pessoas tenham acesso aos seus direitos. Uma casa para morar, alimentação de qualidade, acesso aos seus documentos e aos serviços de saúde, assistência social, justiça, educação, acesso a atividades de lazer, esporte, cultura e arte. Acredito que isso é o básico, e mesmo assim existem várias pessoas que não têm nem isso. Além disso, o acesso da população aos mecanismos de controle social, como os Conselhos, é fundamental para a construção de Políticas e Programas. Penso que garantir o acesso das pessoas aos direitos previstos na Constituição Federal é o principal para se pensar democracia.
En(Cena) – Ester, quais contribuições acadêmicas você considera relevantes para a contribuição e formação de profissionais capacitados para colaborarem com a luta pela democracia?
Ester Cabral – A vida acadêmica é extremamente rica, dinâmica e potente na luta pela democracia. Se olharmos para a nossa história, vemos os estudantes nas ruas lutando por liberdade, pelas “diretas já”, por ações efetivas do poder público, por pautas importantes para nossa sociedade na defesa dos direitos das minorias, dentre outras.
Percebe-se que por um tempo, houve um hiato de participação social da comunidade acadêmica na vida política de nosso país, no entanto, vemos que os estudantes estão se interessando mais pelas políticas públicas e pela participação social, conseguindo alcançar espaços de luta e de poder.
As pautas de luta política estão cada vez mais sendo ampliadas a medida que os direitos estão sendo cerceados e é a comunidade acadêmica quem mais se vincula à essas pautas, pois tem conhecimento científico à sua disposição e garra pela participação efetiva nesses espaços, seja na rua ou nas tribunas livres.
En(Cena) –Estamos em um período eleitoral que nos faz avaliar quais serão nossos representantes políticos. Como você avalia, de um modo geral, xs candidatxs para representação e luta na garantia dos direitos democráticos e políticas públicas?
Ana Carolina – Estamos vivenciando um momento de intensa disputa política que, por vezes, foge do debate democrático. Vemos isso na veiculação massiva de fake news, na supervalorização de pautas morais do âmbito da individualidade dos sujeitos, no negacionismo da ciência e no retrocesso das políticas públicas. É como se estivéssemos vivendo uma distopia como Admirável Mundo Novo ou 1984, um momento de pós-verdade.
Ester Cabral – Este é um período em que devemos avaliar cada candidato, não pelo que ele diz fazer no futuro, mas pelo que ele traz de visão de mundo, de valores sociais, sua história de vida e seu engajamento nas questões sociais e de políticas públicas.
Não se pode olhar para o candidato apenas ao que ele promete fazer pelo bairro, mas pelo que ele pode fazer pela comunidade como um todo, especialmente para a manutenção da garantia de direitos já adquiridos.
En(Cena): Quais dicas e orientações você considera importantes ressaltar para os acadêmicos de psicologia a fim de contribuírem nesta luta?
Ester Cabral – Os acadêmicos de psicologia, como cidadãos de direito precisam entender a sociedade em que vivemos e suas necessidades, percebendo o que já está construído e lutar pela melhoria de vida de nossa comunidade.
Devem conhecer as políticas públicas existentes, seus mecanismos de funcionamento, sua história e como atuar na consolidação das mesmas de forma justa e ética.
A participação popular através das Conferências e outros espaços de participação é imprescindível para promover mudanças significativas nas políticas públicas existentes e para criar novas políticas que fortaleçam nossa democracia e sustentem o direito dos cidadãos e da comunidade em geral.
Ana Carolina – Embasamento teórico consistente, Código de Ética Profissional dx Psicólogx, conhecimento aprofundado das políticas públicas existentes e sua evolução sócio-histórica, conhecimento das referências técnicas do Conselho Federal de Psicologia acerca da atuação dx psicólogx nas Políticas Públicas (o CFP tem várias publicações em seu site), supervisão contínua (principalmente para xs psicólogxs recém-formadxs).
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Saúde Mental da população negra em foco: (En)Cena entrevista a Psicóloga Izabella Ferreira
No período de 15 de agosto até 15 de setembro de 2020, o curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra estará fazendo parte da campanha “Saúde Mental da População Negra Importa!”, promovida pela Articulação de Psicólogas (os) Negras (os) e Pesquisadoras (es) (ANPSINEP). Instigados por reivindicações que envolvem a saúde mental da população negra no âmbito clínico e também na saúde pública, o postal (En)Cena entrevista a psicóloga Izabella Ferreira dos Santos.
Izabella é graduada em Psicologia pelo Centro Universitário Luterano de Palmas (Ceulp/Ulbra), é Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial e Mestre em Ciências da Saúde. Confira a entrevista a seguir:
(En) Cena – Qual a importância de uma psicologia antirracista?
Izabella Ferreira – É possível pensar em uma Psicologia que não seja antirracista? A Psicologia, que traz em seu escopo de premissas éticas a necessidade de contribuir no combate e eliminação de formas de opressão e violência, pode ser pensada a partir de uma perspectiva que ignora a existência de opressões de raça, gênero, classe? Quando penso sobre isso, percebo o quanto a luta antirracista deveria ser inerente à própria Psicologia, de modo que acharíamos inclusive redundante falar Psicologia antirracista. Porém, sabemos que a Psicologia já serviu muito a projetos excludentes e apartados de nossa realidade social e que hoje traz contribuições muito importantes, mas ainda incipientes frente a magnitude do racismo e dos agravos que ele acarreta à saúde mental das pessoas. O Brasil possui uma população formada em sua maioria por pessoas negras. A população negra vive atravessada por vivências de racismo que infelizmente estruturam a nossa sociedade. Quanto sofrimento físico e mental é resultante desse processo? A Psicologia não pode se omitir frente a esses dados. Precisa estar comprometida com um projeto de enfrentamento ao racismo, pois este causa sofrimento e adoecimento psíquico. Não consigo pensar uma Psicologia que não esteja comprometida com a temática das relações raciais e no combate ávido ao racismo.
(En) Cena – Como é ser uma psicóloga negra diante de um país onde o racismo é velado?
Izabella Ferreira – É desafiador e cansativo! O racismo faz com que as pessoas pressuponham que não somos intelectualmente capazes ou que somos menos capazes que pessoas brancas, por exemplo. Isso faz com que pessoas negras sejam direta ou indiretamente questionadas quando ocupam espaços que são entendidos como legitimamente de pessoas brancas. Algumas profissões, por exemplo, são vistas como legitimamente destinadas a pessoas negras, a saber: profissões que exigem baixo nível de instrução. A Psicologia é uma profissão ainda muito elitista e predominantemente branca. Pensam que esse espaço não é nosso e, logo, passível de ser questionado. Enquanto psicóloga negra percebo em minha trajetória profissional muitas reações de surpresa e/ ou incredulidade quando digo que sou psicóloga. Acompanhado dessa surpresa percebo muitas vezes uma espécie de regime de suspeição quanto à minha capacidade técnica enquanto profissional. Observo o quanto isso me demanda emocionalmente por que estou sempre precisando “provar” que sou capaz. Isso marcou e marca toda a minha trajetória acadêmica e profissional. Sempre senti que precisava me esforçar para ser muito boa no que faço, por que a minha cor chega primeiro e o racismo faz com que as pessoas a leiam como sinônimo de baixa capacidade intelectual. Tudo isso não é dito de maneira direta, pois no Brasil o racismo opera de maneira bastante velada.
(En) Cena – Durante sua formação, foi abordada a saúde mental de pessoas negras?
Izabella Ferreira – Durante os cinco anos de graduação, eu só me recordo de uma vez onde o tema foi abordado numa aula de psicologia social. Será que apenas uma aula ao longo de cinco anos de curso seria capaz de contemplar toda a amplitude e complexidade do tema Psicologia e relações raciais e fundamentar a atuação de futuras/os psicólogas/os frente ao cuidado à saúde mental da população negra? É razoável pensar em profissionais que se formam e apresentam em sua prática certa miopia (quiçá, cegueira total) frente às questões raciais? Este é um tema que não será esgotado em uma aula e/ ou em uma única disciplina, mas precisa perpassar toda a grade curricular da formação. Ouço muitos relatos de pessoas que tiveram experiências em psicoterapia onde psicólogas/ os minimizavam, anulavam ou negavam seus relatos e sofrimentos decorrentes do racismo. Isso significa acentuar o sofrimento e a Psicologia precisa atuar para combatê-lo, não reproduzi-lo.
(En) Cena – Como o racismo irá afetar a saúde mental dessa população?
Izabella Ferreira – O racismo afeta diariamente a vida das pessoas negras. São várias vivências de violência sendo orquestradas historicamente pelo racismo na sociedade brasileira. A população negra é maioria dentre a população brasileira, porém é a que tem menos acesso à saúde, educação, trabalho e renda, por exemplo. Isso torna essa população mais vulnerável a diversas opressões e violências. A intensidade do estresse vivido cotidianamente por essas pessoas marca também a intensidade dos agravos. A subjetivação das pessoas negras é permeada por conteúdos apresentados desde a tenra idade e que reflete uma visão onde esses sujeitos se entendem como inferiores. Isso afeta diretamente a autoestima e autoconfiança das pessoas negras. Além disso, segundo a Política Nacional de Saúde Integral à População Negra, entre os agravos e doenças prevalentes nesta população estão reconhecidamente a depressão, o estresse, sofrimento psíquico e transtornos mentais decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas. Outro dado alarmante é que o número de suicídios entre jovens negros tem aumentado. Segundo a cartilha Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros 2012 a 2016, “a proporção de suicídios entre negros aumentou em comparação às demais raças/ cores”. Esta mesma pesquisa identificou o racismo como determinante de risco para suicídio. O que estes dados revelam é a cruel e inegável extensão das conseqüências do racismo à saúde mental da população negra.
(En) Cena – De que maneira o racismo no Brasil se mostra mais difícil de ser combatido?
Izabella Ferreira – No Brasil, ele se dá de maneira velada. Isso significa dizer que ele pode ser manifestado de maneiras não explícitas, o que dificulta sua identificação e reconhecimento. No nosso país, as pessoas ainda reforçam o mito da democracia racial que passaria a imagem de que vivemos harmoniosamente numa diversidade étnico-racial e sem discriminações. Assim, é freqüente ouvir as pessoas dizendo que os Estados Unidos são um país racista, que lá sim os negros sofrem racismo, revelando uma visão distante do racismo enquanto problema no Brasil. O racismo está tão implícito que muitas pessoas negras chegam a duvidar se realmente vivenciaram uma situação de racismo, bem como se podem fazer alguma coisa a respeito. O racismo no Brasil pode vir em forma de ofensa travestida de falso elogio quando, por exemplo, nos dizem que somos “da cor do pecado”. Dadas as características mencionadas acima, é muitas vezes difícil identificar o racismo contido em tais falas e quando identificadas muitas pessoas protestam dizendo “hoje em dia não se pode falar nada” ou “hoje em dia tudo é racismo”. Quando o racismo é negado ele se torna ainda mais fácil de ser combatido, pois como vamos combater algo que não é reconhecido como um problema? Algo que não existe? Ele precisa ser identificado e nomeado. Negá-lo faz parte da própria estrutura racista que apenas endossa tais violências.
(En) Cena – Além de ser antirracista, como a Psicologia pode contribuir com a saúde mental da população negra?
Izabella Ferreira – Uma Psicologia que engloba em seu projeto político uma postura de fato antirracista já direciona todos os seus caminhos rumo ao enfrentamento ao racismo, bem como suas conseqüências à saúde mental da população negra. Assim, a Psicologia contribui quando forma profissionais capacitados/as para identificar e cuidar dos agravos à saúde mental decorrentes do racismo; produz e divulga conhecimento em torno da Psicologia e relações raciais; atua juntamente com órgãos, instituições e sociedade civil na busca do enfrentamento ao racismo, atuando também diretamente no controle social de tais questões.
(En) Cena – Em nosso país, há políticas que englobam a saúde mental de pessoas negras? Se sim, acredita que são devidamente aplicadas?
Izabella Ferreira –O SUS é a principal política pública que operacionaliza o acesso de todas as pessoas à saúde. Porém, como disse anteriormente, as pessoas negras são as que menos têm acesso a tais serviços. É também nos próprios serviços de saúde que muitas situações de racismo ocorrem (racismo institucional), fragilizando ainda mais aqueles que necessitam de cuidados em saúde. Também foi falado como alguns agravos e doenças são prevalentes na população negra, demandando ações específicas para essa população. Então, em 2007 é implantada a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra que busca combater as vulnerabilidades raciais em saúde, buscando a promoção da saúde integral da população negra, bem como a melhoria das condições de saúde dessa população. A PNSIPN também traz como objetivo fundamental o combate ao racismo. Tais políticas possuem muitas fragilidades no tocante a sua operacionalização. O momento político que estamos vivendo no país acentua tais fragilidades, pois não reconhece a saúde da população negra como uma prioridade. Vivemos um período de retrocesso e de perda de direitos. Precisamos sempre exigir que as políticas sejam cumpridas, exercendo nosso papel enquanto controle social mesmo diante de contextos temerosos como o que vivemos. Integro um coletivo feminista de mulheres negras do TO e na edição do Julho das Pretas realizada esse ano, nós juntamente com vários outros movimentos sociais do Estado elaboramos notas de posicionamento cobrando ações e serviços voltados para a população negra. Dentre as notas, foi elaborada uma nota que versava sobre a saúde mental das mulheres negras que foi direcionada em forma de ofício para os poderes públicos responderem e tomarem as devidas providências. Tais ações de mobilização são importantes para que acompanhemos e cobremos melhores condições de vida e saúde para nossa população.
(En) Cena – Me conta a sua percepção perante as constantes notícias de violência policial exibidas nas redes sociais, TV e os protestos que se iniciaram nos EUA e continuaram no Brasil.
Izabella Ferreira – As notícias e cenas de violência contra pessoas negras são sempre muito impactantes e dolorosas para mim. Causam indignação, raiva, revolta e tristeza. E é exatamente nesses momentos que o racismo assume sua forma mais explícita e cruel. Não são atos pontuais, são rotineiros e estão sendo cada vez mais registrados e divulgados. No Brasil, falamos de um genocídio da população negra que denuncia que os corpos negros são alvo constante de violência e morte. A polícia brasileira é considerada a mais letal do mundo. Os atos que sucederam após a morte do americano George Floyd foram uma resposta exausta de quem vive com medo e prejudicado em seus direitos mais fundamentais. Aqui no Brasil, um adolescente foi morto quando brincava em sua própria casa pela polícia no Rio de Janeiro. Estas mortes acontecem o tempo todo. São vidas interrompidas, famílias ceifadas pelo braço do Estado. A população negra nunca parou de lutar pelos seus direitos. Não há descanso para nós, pois o tempo todo tentam negar nossa história, nossa identidade, nossa cultura, nossos conhecimentos e nossa existência.