A diversidade e o preconceito linguísticos no Brasil: uma luta da psicologia e do multiculturalismo

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O preconceito linguístico existe no Brasil e persiste ao longo da história desde o período colonial. Os portugueses ignoraram a língua nativa dos moradores que aqui viviam e passaram a ensinar o português. E por não saberem a língua portuguesa, os nativos perdiam os seus direitos garantidos diante da Corte.

Quanta injustiça os índios não viveram? E para sobrevierem, muitos tiveram que aprender o português que aos poucos fez com que muitas línguas indígenas fossem esquecidas, já que não foram documentadas e não mais ensinadas para as gerações futuras.

Na sociedade atual, diariamente somos surpreendidos com notícias de que alguém sofreu algum tipo de preconceito, seja social, sexual, preconceito físico, de gênero, etc., e também preconceito linguístico. Mas, como definir o preconceito linguístico em um país que tem 26 Estados e o Distrito Federal, onde no mesmo Estado ou região, pode haver variação de sotaques e usos de palavras para um determinado objeto?

Primeiramente vamos compreender o significa de lingüística. Segundo o dicionário Houaiss, “linguística é a ciência que estuda a linguagem humana, a estrutura das línguas e sua origem, desenvolvimento e evolução”. Ou seja, cada lugar, cada povo possui a sua própria língua, a sua forma de se comunicar uns com os outros. Além da língua, existe o dialeto, o qual conforme o dicionário citado anteriormente é “qualquer variedade linguística coexistente com outra e que não pode ser considerada outra língua (p.ex.: no dialeto português do Brasil, o dialeto caipira, o nordestino, o gaúcho, etc.)”. Logo, conclui-se que dialeto é uma variedade linguística, termo utilizado para se referir a formas diferentes de utilizar a língua de um mesmo país. Essas variedades linguísticas resultam da variação de uma língua que ocorre devido a vários fatores, como por exemplo, a faixa etária, a escolaridade, a região, o contexto social e cultural.

O PRECONCEITO LINGUÍSTICO

Agora é preciso compreender o termo preconceito. O dicionário de Evanildo Bechara define-o da seguinte forma: “Conceito, sentimento ou atitude discriminatória em relação a pessoas, ideias, etc.”. Assim, o preconceito linguístico se manifesta ante as diferenças que existem na forma diversificada de falar, que “cada indivíduo observa como errado”, considerando apenas como certa a variação de aceitação no que diz respeito à norma culta ou padrão, e diminuindo o valor das demais formas linguísticas, classificando-as como inferiores.

Pode-se dizer que preconceito linguístico é qualquer crença sem fundamento científico acerca das línguas e de seus usuários. Ora, a linguagem, como dito, é um mecanismo de comunicabilidade e deve ser usada por todos, sem discriminação. É um absurdo achar que somente a língua aprendida nas academias, que segue as regras da norma culta, é correta. Se a linguagem é uma forma de expressão do indivíduo, o que importa é que a mensagem emanada pelo emissor chegue até o ouvinte e por esse seja decodificada e compreendida. Se isso aconteceu, está tudo certo.

Outra questão que necessita ser observada é diferenciar a linguagem escrita, que segue regras e padrões de formatação que não podem ser alterados pelo fato da linguagem falada ser diferente. Se uma pessoa falar “nóis vai”, não quer dizer que irá escrever da mesma forma.

O sistema econômico subjugou a língua falada, padronizando o comportamento das pessoas, privilegiando alguns para exercer o poder. Isto é, quem pertence à classe social alta, tem mais acesso à educação, inclusive, alguns estudam em escolas que alfabetizam em duas ou mais línguas, além do português.

Tanto é verdade que, por exemplo, entre grupos de médicos, engenheiros, advogados, psicólogos, entre outras tantas profissões, há termos técnicos que são falados entre aqueles profissionais e que não fazem parte do vocabulário dos falantes daquela língua e nem por isso, estes, por se utilizarem de vocábulos “diferentes” são excluídos ou diminuídos pelos demais, ao contrário, são venerados.

Dessa maneira, estes são tratados de forma diferente daqueles que não têm acesso ao ensino básico de qualidade e não conjugam, por exemplo, os verbos da forma padrão. As salas de aula, quando tem aula e onde tem escola, são improvisadas e não há divisão de turmas, de idade entre os alunos, grau de escolaridade, etc., numa visão totalmente antagônica à anterior. Mesmo nos dias de hoje, podemos encontrar escolas como essas em alguns Estados brasileiros.

Fonte: Chico Bento – Tirinha de Maurício de Sousa. 1998.

Outro aspecto relevante a ser abordado são as diferentes formas de se comunicar entre os brasileiros. O Brasil, pela sua dimensão territorial, abriga povos que apresentam diferentes culturas e formas de se expressarem, a depender da região. E as regiões consideradas mais economicamente desenvolvidas discriminam as menos favorecidas no plano econômico.

Fato é que os meios de comunicação também reforçam essa diferenciação, inferiorizando algumas maneiras de falar. Muitas das vezes, o sotaque nordestino aparece quando é encenado por um trabalhador da limpeza ou que atua como humorista. Não se observa com frequência em posição de destaque e influência em papéis principais nos filmes, novelas ou telejornais nacionais.

De igual forma, há uma discriminação dos mais jovens para com os mais velhos, mesmo em relação à linguagem. Como explica Maria Homem, em seu canal, esse fenômeno consiste no embate estrutural, como sempre, que está implícito na palavra cringe, pois, durante milênios, os anciãos eram os que tinham mais respeito, em razão dos anos vividos, da experiência e com ela a sabedoria. Inverter essa estrutura se traduz na prepotência da modernidade, que não cuida dos mais velhos, ao contrário, maltrata, não abarca esse caldeirão de experiências, desvalidando aquilo que não se faz mais.

Ora, não é diferente com a linguagem. Os mais jovens desvalidam os mais antigos, a partir de gírias como “broto, pão, avião” que se referiam a alguém bonito e que representam uma determinada geração. Aqueles que reproduzem esses vocábulos são alvo de tratamento pejorativo, jocoso, demonstram estar fora de época, ultrapassados, cringe, como alguém que traz vergonha, e, portanto, algo que deve ser marginalizado, discriminado, numa verdadeira expressão do preconceito linguístico.

A prática desse tipo de preconceito é constatada em todos os lugares e ambientes. Como bem nos assegura Mariane (2008), o ato de julgar antecipadamente consiste na discriminação existente entre pessoas falantes do mesmo idioma que elegem esse outro idioma como oficial e exclui outras variações existentes.

Assim, o preconceito linguístico existe, inclusive, dentro das escolas. O bullying tem levado adolescentes à depressão, à ansiedade e até ao suicídio. Já que o ensino tradicional determinou quem fala certo ou errado, crianças, adolescentes e jovens, que mudam de uma região do Brasil para outra, podem ser alvo de piadas em sala de aula.

Fonte: Imagem por pikisuperstar no Freepik

É oportuno lembrar que existem dois tipos de gramáticas para os linguistas: a normativa e a descritiva. A primeira é a “base da maioria dos livros didáticos e gramáticas pedagógicas, em que se caracteriza um conjunto de regras. Considerada como o conjunto sistemático da norma, ou seja, para o falar bem e escrever. Essa concepção parte do princípio de que todos que falam, sabem de fato, falar. Essa fala segue regras que são consideradas legítimas do ponto de vista do uso e da comunicação entre os diversos tipos de falantes/usuários”. Já a descritiva “tem a preocupação de analisar, descrever e explicar a construção dos enunciados, que são utilizados de fatos pelos falantes”.

Dessa forma, os professores precisam ensinar a variação da língua de forma realista (gramática descritiva) e não utópica (gramática normativa), a fim de minimizar os impactos, fazendo com que o aluno reconheça a importância da própria história, sem perder a essência e ser inserido no novo ambiente, de forma que os demais o recebam com respeito.

Essa atitude está em conformidade com o que prega o Multiculturalismo, que defende a luta pelos direitos civis dos grupos dominados, excluídos.

É oportuno frisar que, diante desse contexto, o preconceito devia ser considerado um problema de saúde pública. O site Veja Saúde publicou uma pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (USFC), que “concluiu que vítimas de discriminação têm um risco quatro vezes maior de desenvolver depressão ou ansiedade e ainda estão propensas a agravos como hipertensão”. “A experiência crônica de intolerância estimula a liberação de hormônios relacionados ao estresse, como o cortisol”, explica o epidemiologista João Luiz Dornelles Bastos, um dos autores do trabalho”.

Desse modo, nota-se que não somente a pessoa que está sendo discriminada, mas, também quem está discriminando pode sofrer problemas psicológicos, como afirma na matéria: a “pessoa prestes a agir de maneira hostil se submete a um estresse interno”, explica Ricardo Monezi, psicobiólogo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Outro fator importante que precisa ser observado é a questão da rejeição e as consequências, pois pode levar o indivíduo que está sendo hostilizado à baixa estima, agressão, solidão e inseguranças, que causam medos de enfrentar os desafios de uma vaga de emprego, por exemplo. É aqui que a Psicologia entra em campo, no cuidado da saúde mental desses indivíduos que sofrem com preconceitos, inclusive o linguístico, já que as consequências são tão devastadoras quanto qualquer outro tipo de discriminação.

CONCLUSÃO

A classificação de certo ou errado para os usos da língua portuguesa não deveria existir, já que há a adaptação do contexto coloquial. A pessoa utiliza determinada maneira para falar, levando em consideração o ambiente familiar, a renda, região que mora, formando a sua própria identidade.

A diversidade na forma de falar torna o Brasil com múltiplas características, já que cada região tem um sotaque, seu vocabulário próprio, sua forma de se expressar, a exemplo das diversas línguas indígenas que carregam em si uma história.

O ser humano pertence a um determinado grupo e isso o torna autêntico, donde se conclui que a “língua” não poderia ser considerada como um problema, ao contrário, a “diversidade linguística, neste caso, está relacionada com a existência e a convivência de línguas diferentes. O conceito defende o respeito por todas as línguas e promove a preservação daquelas que se encontram em vias de extinção por falta de falantes”.

Portanto, a diversidade linguística se refere às múltiplas identidades de cada um e como tais merecem respeito e não preconceito.

REFERÊNCIAS

Pequeno Dicionário Houaiss da língua portuguesa/Instituto Antônio Houaissde Lexicografia, [organizador]; [diretores Antônio Houaiss, Mauro de Sales Villar, Francisco Manoel de Mello Franco]. – 1. Ed. – São Paulo: Moderna, 2015

BECHARA, Evanildo, Minidicionário da língua portuguesa Evanildo Bechara/ Evanildo Bechara. – Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2009, página 718.

HOMEM, Maria. O que é cringe? Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Hjh6p5Ip6Bg. Acessado em 24/11/21.

SANTOS, Patrícia da Cruz Ferreira dos [1], ANDRADE, Marta Mires Da Cruz de [2], ALMEIDA, Daiane Vithoft de [3], Preconceito linguístico: Intolerância que retrai, língua que marginaliza.Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 08, Vol. 15, pp. 12-33. Agosto de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/lingua-que-marginaliza, DOI:10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/lingua-que-marginaliza. Acesso em 17/11/21.

MATTA, Sozâgela Schemim da. Português, linguagem e interação. Curitiba: Bolsa Nacional do Livro Ltda, 2009.

BERGAMO, Karolina. A intolerância de hoje pode ser a doença de amanhã — inclusive entre quem pratica a discriminação. Publicado em 28 jun 2016. Disponível em https://saude.abril.com.br/mente-saudavel/preconceito-faz-mal-a-saude/amp/. Acesso em 24/11/21.

[1] Pequeno Dicionário Houaiss da língua portuguesa/Instituto Antônio Houaissde Lexicografia, [organizador]; [diretores Antônio Houaiss, Mauro de Sales Villar, Francisco Manoel de Mello Franco]. – 1. Ed. – São Paulo: Moderna, 2015, p. 593.

[2] Idem. p. 334.

[3] BECHARA, Evanildo, Minidicionário da língua portuguesa Evanildo Bechara/ Evanildo Bechara. – Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2009, página 718.

[4] HOMEM, Maria. O que é cringe? Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Hjh6p5Ip6Bg. Acessado em 24/11/21.

[5] SANTOS, Patrícia da Cruz Ferreira dos [1], ANDRADE, Marta Mires Da Cruz de [2], ALMEIDA, Daiane Vithoft de [3], Preconceito linguístico: Intolerância que retrai, língua que marginaliza.Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 08, Vol. 15, pp. 12-33. Agosto de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/lingua-que-marginaliza, DOI:10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/lingua-que-marginaliza. Acesso em 17/11/21.

[6] MATTA, Sozâgela Schemim da. Português, linguagem e interação. Curitiba: Bolsa Nacional do Livro Ltda, 2009, p. 136.

[7] Idem

[8] BERGAMO, Karolina. A intolerância de hoje pode ser a doença de amanhã — inclusive entre quem pratica a discriminação. Publicado em 28 jun 2016. Disponível em https://saude.abril.com.br/mente-saudavel/preconceito-faz-mal-a-saude/amp/. Acesso em 24/11/21.

[9] Idem

[10] Conceito da diversidade lingüística. Publicado em 2011/atualizado em 2019. Disponível em https://conceito.de/diversidade-linguistica. Acesso em 24/11/21.

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Congresso online discute alfabetização mais eficiente

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A pandemia trouxe um dos maiores distúrbios nos sistemas educacionais prejudicando o processo de aprendizagem de milhões de estudantes. Pensando em contribuir para a educação, o Instituto NeuroSaber irá promover a primeira edição do “Congresso de Alfabetização: da Ciência Cognitiva à Prática Escolar”, dos dias 26 a 28 de novembro. Ao vivo e online, o evento, que conta com importantes especialistas do setor, vai discutir condutas educativas a partir de evidências científicas e refletir sobre métodos de ensino que possibilitem uma alfabetização mais eficiente.

Segundo Luciana Brites, CEO do Instituto NeuroSaber, o congresso vai promover treinamento qualificado para profissionais da educação, pais e interessados. Durante as palestras, vão ser analisados métodos de ensino que de fato contribuam para aprendizagem e que levem em consideração as etapas e o desenvolvimento, desde as dificuldades de aprendizagem às habilidades cognitivas e comportamentais.

Brites ressalta ainda que o evento irá debater a importância da Ciência Cognitiva da leitura. Segundo ela, trata-se de uma análise dos processos linguísticos, cognitivos e cerebrais que ajudam a compreender sobre como funciona o cérebro de quem está aprendendo a ler e como se dá o aprendizado da leitura.

– Entendendo bem esses fatores e como eles acontecem dentro da mente, é possível pensar em melhores maneiras para auxiliar no desenvolvimento da leitura e da escrita das crianças. E diante de toda essa defasagem da educação, será fundamental que profissionais e pais possam estar melhor habilitados para reverter o atual cenário provocado pela pandemia – observa.

Fonte: Luciana Brites

Palestras e elaboração de livro

As palestras também serão gravadas e disponibilizadas para serem assistidas posteriormente pelos participantes. Além disso, haverá um local digital que servirá como espaço para interação, com o objetivo de tirar dúvidas e compartilhar experiências entre os profissionais, pais e familiares interessados em alfabetização.

Também será elaborado um livro sobre o congresso, com o apoio de especialistas e pesquisadores participantes, que vai analisar os estágios e o desenvolvimento desde as dificuldades de aprendizagem às habilidades cognitivas e comportamentais.

Inscrições pelo link: https://neurosab.com/campaign/ai-congresso-de-alfabetizacao

Confira a programação completa do evento:

Dia 26/11, quinta-feira

18h: Dra. Alessandra Seabra inicia o congresso falando sobre a Política Nacional de Alfabetização (PNA) e Ciências Cognitivas.

19h: Dra. Maria Regina Maluf conversa com os participantes sobre a Formação de Professores e Alfabetização.

20h: Dra. Rochele Fonseca encerra o primeiro dia de congresso com um bate-papo sobre Literacia emergente: fatores neuropsicológicos pró-prontidão escolar e aprendizagem significativa.

Dia 27/11, sexta-Feira

18h: Dra. Alessandra Seabra abre o segundo dia de palestras com o tema Princípio alfabético, Consciência Fonêmica e Instrução Fônica

19h: Dra. Ana Luiza Navas fala sobre a importância da Fluência de leitura

20h: Dra. Ana Luiza Navas segue no encontro, com o tema Compreensão de leitura

Dia 28/11, sábado

9h: Dr. Clay Brites abre o último dia de congresso falando sobre os Aspectos Biológicos e Neurológicos da Linguagem Escrita

10h: Dra. Camila Leon discute Autorregulação e Funções Executivas na Alfabetização

11h: Dra. Cíntia Salgado palestra sobre a Identificação precoce de dificuldades de leitura e escrita em contextos de vulnerabilidade.

13h: Me. Gabriel Brito fala sobre a Leitura e escrita no Ensino Fundamental II

14h: Dra. Rosângela Gabriel abrange a Alfabetização de Adultos

15h: Me. Roselaine Pontes de Almeida fala sobre A BNCC e a alfabetização na Educação Infantil

16h: Luciana Brites encerra o congresso em palestra sobre os Aspectos Psicomotores da Escrita

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O oxigênio da vida

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Eles moravam em um dos bairros mais violentos de São Paulo. Estavam perto dos 20 anos. Eram três amigos de infância. Um dia, olharam para a estrada à frente e viram uma bifurcação: de um lado, uma placa indicando a rota conhecida; do outro, um livro abandonado.

Bifurcados, só tinham uma certeza: o caminho conhecido havia sido percorrido por muitos de seus outros amigos, onde alguns se perderem e outros perderam o oxigênio. Os três sonhavam alto: cursar uma faculdade. Diploma não era futuro, era delírio. Como incluir na dispensa de casa um item tão luxuoso como estudo? Das 24 horas do dia, 14 trabalhavam. Remuneração baixa, mas vital para o sustento das famílias.

Era preciso coragem de guerreiro para correr atrás de escassas oportunidades e resiliência de bambu para colecionar nãos. Entraram para a faculdade. Nos bancos escolares, agarravam-se aos livros para abandonar a realidade que, desde o berçário, assegura a alguns a evolução e a outros a submissão. Na árdua jornada, a fome esmagava o estômago e o sono abatia o corpo.

Fonte: encurtador.com.br/zNSX6

Fortaleciam-se na leitura de biografias, repletas de histórias de sucessos conquistadas por escaladas de fracassos. O que a realidade negava, os sonhos consentiam. Jamais desistiram de erguer o canudo no pódio da formatura. Eram escoltados pelo vigor da juventude, onde os olhos se perdiam no imenso horizonte de vida.

O sol energizava o caminho da persistência e a chuva limpava a poluição do desânimo. Final dos anos 2000, três amigos subiram ao pódio: um erguia o canudo de Ciência da Computação, outro de Comunicação e o outro de Administração de Empresas. Quando se viram bifurcados, decidiram seguir pela estrada do livro abandonado.

No caminho, encontraram o “Diário de Bitita”, de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), que foi catadora de lixo, moradora de favela e tornou-se escritora de sucesso traduzida para vários idiomas: “Eu passava os dias lendo ‘Os Lusíadas’, de Camões, com o auxílio do dicionário. Eu ia intelectualizando-me, compreendendo que uma pessoa ilustrada sabe suportar os amarumes da vida”.

Eles sabiam aonde queriam chegar. Escolheram o melhor GPS para os guiar até o destino escolhido. Eles orientam. Eles consolam. Eles guiam. Jamais te abandonarão. Carolina os catou nos lixos e eles acalmavam sua dor. Estarão sempre perto de você para te receber de páginas abertas.

Livros, o oxigênio da vida.

Respire-os.

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Por que escrever?

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Quando fui escrever esta crônica estava pensando nas razões que me fazem escrever. ‘Por que escrever?’ foi o título que dei a esta. Poderia ser: ‘por que escrevo?’ ou ‘por que escrevi?’ Só dei este título para que outras pessoas possam fazer como eu: colocar no papel uma crônica de no máximo uma lauda e meia. Não importa se outros vão ler. O maior beneficiado é quem escreve.

Escrever crônicas talvez seja um ato narcisista: por no papel o que se pensa; tentar convencer as pessoas a refletirem como você; argumentar sua opinião. Tudo isto infla o ego de quem escreve.

Mas, na verdade escrevo porque um amigo me convenceu que eu poderia por meus pensamentos em ordem escrevendo. Nas palavras dele, é um processo ‘criativo-terapêutico’. Hoje posso confessar que ele estava certo – apesar de acreditar que o processo seja mais terapêutico que criativo. Em 2015 alguém ainda cria alguma coisa fazendo crônica? Sinceramente não penso que isto seja muito possível. Talvez fosse mais inteligente apenas ficar citando. Assim, seríamos forçados a ler mais o que os outros escreveram e o ato de escrever crônicas seria menos narcisista. Quanta inveja de Eduardo Giannetti que criou “O livro das citações”. O livro é todo de citações.

As citações só tem um problema: elas não criam nada. De resto servem para quase tudo: demonstram quanto pesquisou quem cita; revela argumentos; identifica como aquele que cita costura o texto com as citações; dá notoriedade ao que se fala – segundo o importante fulano de tal, abre aspas e aí se vão repetições.

 Voltemos à pergunta do título: por que escrever?

Depois que se começa a escrever você vai encontrando ou lembrando de motivos para fazê-lo. Primeiro é um ato narcisista; depois é um processo criativo-terapêutico; serve para organizar as idéias; é no fundo um ato de descoberta interior – heurístico/maiêutico mesmo. No fim os temas acabam sendo um bom motivo. Não que tenhamos que ter uma opinião sobre tudo. Muito menos que nossa opinião seja final e não possa ser alterada. De forma alguma isto.

Os temas tornam-se um bom motivo por que liberta quem escreve. Neste sentido, vale tudo em uma crônica. Um tema batido, velho, chato, inconfessável, dramas, ciência: tudo é um excelente assunto.

Um tema, mesmo velho, pode ser um mundo novo para quem o descobre.

Não importa se você é um escrevinhador. Que seu alento seja o que disse Popper no prefácio de “a lógica da pesquisa científica” de 1934 a respeito do cientista e do filósofo. Não abrirei aspas para não cair em descrédito. Resumidamente, Popper argumenta que o cientista conta sempre com uma estrutura de doutrinas científicas já existentes e com uma situação-problema que é reconhecida como problema nessa estrutura. Sua tarefa é tentar contribuir para reorganizar a estrutura resolvendo pelo menos em parte a situação-problema. O filósofo não encontra uma estrutura organizada, mas um amontoado de ruínas (onde pode haver tesouros ocultos). Ele não tem uma situação-problema reconhecida como tal em uma estrutura.

Popper quer neste prefácio dizer que a filosofia talvez nunca coloque um problema genuíno. Assim, o cronista se consola: se há 2500 anos tantos filósofos apenas conjecturaram, por que o escrevinhador também não pode?

Francamente, cabe-lhe divertir-se.

Em tempo: as citações, quando torturadas, confessam muitas mentiras.

Divirta-se!!

Tempus fugit, carpe diem!

 

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semeando

Deslocar- se

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“Para qualquer tempo, para
qualquer lugar, viajar é sempre:
uma viagem”!

Maria Luiza Cardinale  Baptista (Malu)

Escrever é sempre um processo difícil, começar então, mais ainda. Fica-se preso em convenções e armadilhas de escolher palavras certas que possam dar algum ar de originalidade a escrita, mas também que estas expressem calor e afeto retratando de forma mais aproximada o que se vive e o que se sente. Penso nestas escolhas todas e recordo da explicação que ouvi da professora Malu sobre a origem “das palavras”, cujo marco inicial está atrelado ao surgimento da agricultura, com o plantar, semear e marcar a terra.  Assim o homem fez movimento, gerou novos ciclos, num processo corajoso de “não-sei-o-quê-vai-dar” que deu origem, inclusive, a evolução da vida. Jogando sementes em outros campos, em novas paragens, plantou outras possibilidades.

É sobre esta metáfora do semear e do deslocar-se que eu gostaria de escrever jogando as palavras. Neste espaço do entre, da terra que ainda sobra, da possibilidade da dobra, do caminho que se faz possível. Sobre esta experiência de deslocar-se de si mesmo, num movimento singular que afunda na gente. Neste deslocamento produzido, neste estar diferente procuro buscar o espírito da palavra, ou melhor, das muitas que compõe uma tese. Mas o que ocorre é que a própria tese já produziu um fim nela mesma a partir destes múltiplos deslocamentos que ocorreram em mim.

O descolamento então provocado por uma viagem internacional mexe por si mesmo em muitas coisas: põe, empurra ao movimento, faz sair do território, “desrretorializa”. Por outro lado, faz também doer, marca do luto, referência existencial das grandes passagens, das finalizações. Por isto é que o embarque, em certo sentido é sempre para sempre, tem um custo, um imposto à Hades, o velho barqueiro que conduz as almas, que é altíssimo em todos os sentidos, pois exige muitas escolhas, algumas delas difíceis. Mas este barqueiro das minhas palavras não julga, não pune, ele conduz simplesmente, possibilitando, tornando visível o nunca antes visto, o invisível ou também o que não se sabia já estar ali, fazendo fluir pela passagem das águas dos oceanos, da distância entre continentes. Em um processo de despir-se em si mesmo que faz abrir novos ciclos nos loucos movimentos da vida.

Este processo de passagem é marcado pela exaustão. No real da vida e das palavras, nunca se consegue dormir na noite anterior, se refaz as malas, perdem-se coisas, há muitas pendências a serem resolvidas, questões do trabalho, particulares, por isto se trabalha muito nos dias que se precedem.  Por conta também deste muito a fazer, em que nunca há tempo suficientemente capaz de tornar possível todos os desejos, as emoções afloram, surta-se por pouco, por isso se vive o que é de praxe nas grandes viradas – a exaustão que advém das escolhas, da dor, do medo, do universo, da potência que brilha.

Isto tudo representa um embarque para outro mundo, um salto no oceano, ao pé da palavra (ah a palavra!). Esta magnitude da viagem internacional dá a dimensão do esforço a fazer e dos tributos a serem pagos. Mas para quê tudo isto? Penso que para ganhar o outro lado, porque se fosse para ficar no mesmo lugar não valeria a pena tantas implicações e sacrifícios. A viagem é sempre um caminho individual, mas arrasta com ela as pessoas mais próximas, parentes, amigos, todos implicados, viajam, deslocam-se junto.

Outra lembrança: no tarô mitológico de Jung, a carta do louco, representada pelo Dionísio está na beira do abismo, ele tem a opção, no entanto, de dar um passo para trás e ficar no mesmo lugar, no conhecido, que talvez não lhe dê a satisfação plena, mas também assim, por outro lado, não provoca incomodações, sofrimentos; ou ainda, dar um passo adiante rumo ao desconhecido, mas que remete a um novo a ser construído, que é justamente a matriz geradora de vida, de desejo, o engate do engendramento da autopoiese.  E este processo se constrói andando, sempre em “vir a ser”, nunca em estado definitivo, acabado.

A carta do louco no tarô mitológico de Jung

Neste sentido a viagem produz um bem imenso porque ela trata, ela te põe longe, faz com que você saia das cenas da vida, aquela de sempre e nos coloca em outra posição, e de longe a gente vê de outro jeito. Estas teorias da tese que pesquiso estão em processo de fermentação, borbulham dentro de mim novos caminhos. É uma “loucura” necessária para dar outro salto, de constituir outro olhar, possibilitar linhas de fuga que realmente se concretizem, precisa haver saída. O deslocamento é difícil do ponto de vista da vivência, mas quando a gente decide por finalmente fazer é porque se está precisando viver. É um soltar-se no mundo mesmo que sob outras ambivalências e parâmetros para pensar e viver.

Um verdadeiro universo em transmutação se opera possibilitando estar em um reino mágico, nunca antes habitado: o de ficar sozinha. Esta experiência de estar só produz movimentos deslocados, antagônicos, doces, às vezes amargos. E ainda que sob tropeços faz avançar, vibrar, encontrar outras seres e formas de viver. Ser e estar aqui é definitivamente diferente. Que delícia posso ser eu mesma posso ser muitas outras coisas, posso ser o que quiser. E agora, que viagem.

A viagem também pode ser vista como um fator de agenciamento do outro, não para tomar o seu lugar, mas justamente como outra possibilidade existencial, com outras qualidades de relações. Pois para ir ao encontro do outro é preciso estar em outros lugares. E esta é a matriz da viagem – quando a gente se desgruda das travas egóicas, a gente se move, produz mobilização subjetiva.  A mudança aparece como fator desencadeador de uma transformação que desaloja, desrretorializa, mas  assim é que se abre a possibilidade de territorializar novamente.

É o primeiro agenciamento do desejo, é a matriz da vida. A lógica da pulsão da vida (na Psicanálise), justamente este engate que precisa acontecer. E acho que este processo já foi disparado, pois Já me sinto diferente: estou em um escorregador gigante sem saber como e no que chegar, mas me deixando simplesmente escorregar. Sinto medo, sinto coragem, sinto tudo e um tudo entrelaçado. E quantos universos existem em um só, como é possível encontrar mundos distintos, quanta diferença, aqui é outro lugar como eu já tinha dito. Que maravilha de experiência que é este deslocar-se, marca a gente a ferro, tatuagem permanente na alma. Levarei para sempre, ou ao menos, enquanto durar minha nova paragem, mas acho que este caminho estará no outro, e no outro e no outro seguinte, um contendo o outro e sendo contido ao mesmo tempo. Ah e ainda acompanhado por um  vento que faz refrescar, deliciando a alma, deixando um sabor de aventura de criança, ser dona de si, de novo, em outra terra.

Parei onde mesmo? Quê viagem!

03/01/2013 – Paris/França

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