O Fim da Eternidade

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O Fim da Eternidade, de Asimov, apresenta os elementos que, geralmente, compõem o universo das histórias de ficção científica, que vão desde questões relativas à viagem no tempo, paradoxos temporais, infinitas versões de futuro até as angústias e sonhos que formam a natureza humana.

A história inicia-se com o pensamento assustador do personagem principal: se preciso, ele destruirá a Eternidade.  O fim da Eternidade, então, transforma-se na premissa principal do livro e serve como variável para definir o futuro e mudar o passado.

O personagem principal, Andrew Harlan, é um Técnico dentro de um contexto definido como Eternidade. Um Técnico é alguém que, dizem os mais críticos, pode modificar “com um bocejo um trilhão de personalidades”.  Então, para entender a história, tem-se que primeiro compreender o contexto no qual vivem os personagens. A trajetória de Harlan, de um homem que vivia em um determinado século no planeta Terra, a um escolhido para ser um Eterno, é permeada por uma série de descobertas. Como um escolhido para viver na Eternidade pode querer destruir seu lar?

Talvez a resposta para essa indagação esteja no fato de que um Eterno deve esquecer a Realidade na qual viveu, logo esquecer as pessoas que fizeram parte de sua vida. Há um momento na história em que é possível entender que nem todo o treinamento de Harlan foi suficiente para separá-lo da humanidade, pois, em uma dada noite, ele volta a sonhar com a mãe. Uma mãe que, provavelmente, em uma linha de tempo que ele mesmo tenha modificado, nunca tenha, de fato, tido um filho como ele, ou talvez nem tenha existido.

A ausência de um contexto, de uma raiz, marca o início do fim da Eternidade.


Crédito da Imagem: Mike Salway Photography

As questões levantadas em livros de ficção científica são interessantes porque, além de abrir nossas mentes para imaginar extremas possibilidades (em um exercício, por vezes, saudável de ampliar a imaginação), apresentam as reflexões que envolvem a natureza humana em um patamar totalmente ampliado.

Em O Fim da Eternidade, um grupo em um futuro muito, muito distante, apoiado em algo que ocorreu no passado, mas que na verdade é baseado na primeira possibilidade de um salto temporal, compreendeu que, ao modificar pequenos elementos na linha do tempo (Mudança Mínima Necessária – MMN) podia se criar um mundo melhor. Um mundo em que grandes catástrofes capazes de dizimar a vida do homem na terra seriam evitadas. Logo, a Eternidade pode ser, em vários aspectos, a salvação da Humanidade, com uma única ressalva, tira-lhe a condição que torna seus indivíduos “humanos”, ou seja, tira-lhe a capacidade de definir seus próprios caminhos, mesmo em meio a catástrofes e sofrimentos.

Harlan deixou de querer ser um Eterno quando começou a perceber que seu trabalho simples de Técnico poderia mudar drasticamente não apenas a vida de uma comunidade ou de um grupo, mas, especialmente, a vida de uma pessoa. Pensar em um indivíduo em específico marcou o fim da Eternidade.

Monet

“Ele não amava simplesmente uma garota. Amava um complexo de fatores: suas roupas, seu andar, seu jeito de falar, seus gestos e expressões. Um quarto de século de vida e experiência se passou, numa determinada Realidade, para que tudo aquilo fosse forjado.” (p. 86).

Com essa descrição, Asimov mostra, de forma poética, mas, também semelhante ao contexto da Psicologia sócio-histórica, que somos mais do que uma cadeia de DNA, somos o resultado de um complexo conjunto de fatores. Muitas vezes, não é possível definir quais variáveis tornam uma pessoa melhor ou pior, doente ou saudável, ordinária ou extraordinária, mas pode-se verificar, em um dado nível, que alguns conjuntos de fatores tendem a contribuir mais ou menos para uma dada situação.

O que diferencia um indivíduo do outro, neste aspecto, seriam (em grande parte) os registros (psicológicos) que ele constrói a partir do seu contato com o mundo. Assim, segundo Aguiar (2007), “o psicológico se constitui, não no homem, mas na relação do homem com o mundo sociocultural”. Acrescenta ainda que “a realidade objetiva não depende de um homem em particular; ela preexiste e, nessa condição, passará a fazer parte da subjetividade de um homem em particular”.

“Ela era inteiramente diferente aos seus olhos agora. Não era absolutamente uma mulher ou um indivíduo. Era, de repente, um aspecto de si mesmo. Era, de um modo estranho, e inesperado, uma parte de si mesmo.” (Harlan, p. 72)

Ao iniciar esse tipo de pensamento, a sua função de Técnico começa a ser questionada, especialmente quando ele passa algum tempo com um Mapeador de Vida, que mostra-lhe como acontecem as modificações feitas nas linhas de tempo de forma a criar novas Realidades.

“Todo homem é uma perda irreparável ao seu mundo. Então você trabalha em cima daquilo. Você vê o que aconteceria à Realidade se cada um daqueles homens vivesse, e também – pelo Tempo! – se diferentes combinações de homens vivessem!” (p. 82).

Um dos indivíduos da Eternidade, que exercia a função de Computador, disse uma vez para Harlan que “os homens se identificavam por um tolo desejo de um lar no Tempo” (p. 82). Esse “tolo desejo” talvez fosse a forma que cada indivíduo tinha de manter-se único no Tempo, ainda que a Eternidade buscasse uma homogeneização.

Crédito da Imagem: ESO

Quando um Técnico criava uma nova Realidade, através de uma ação mínima em algum ponto do Tempo, poderia, como disse um dos contestadores da Eternidade, provocar a perda de grandes obras de arte, de grandes pensadores. Então, criava-se um mundo mais domesticado, no que tange às grandes catástrofes, mas, talvez, menos inventivo ou inventivo de uma forma diferente. E quem são os indivíduos da Eternidade para saber que tipo de diferença é melhor? Então, voltam-se às questões universais sobre livre arbítrio, liberdade etc.

Todas essas descobertas e mais algumas certezas que Harlan pensava ter a partir de determinadas observações  deixaram-no com uma falta de vontade de mover-se. Era como se a única coisa que lhe parecesse interessante fosse a “paz harmoniosa da não-Realidade”.  Ele já havia visto um dos Aprendizes sucumbirem, ele sabia que “lutar contra uma doença do espírito era como debater-se em areia movediça” (p. 137).

O amor, a incerteza, o medo e a esperança marcaram o fim da Eternidade e, por sua vez, o início da Infinidade. Ser apenas uma “probabilidade muito baixa” em meio a infinitas bifurcações de tempo/espaço parecia ser uma alternativa muito perigosa, mas, ainda assim, mais coerente do que sucumbir-se à ideia de fabricar condicionais para o estabelecimento de Realidades Desejáveis.

A questão que uma das mulheres da Eternidade apresentou para tentar refutar os condicionais programados pautou-se na seguinte premissa: se a humanidade souber que a Terra significa “uma prisão cercada por uma infinidade de liberdade” muito provavelmente definhará e desaparecerá, pois “haverá uma perda de objetivo, um senso de futilidade, um sentimento de desesperança que não poderão ser superados”. E, para completar, ela afirmou:

“Qualquer sistema parecido com a Eternidade, que permite ao homem escolher seu próprio futuro, terminará optando pela segurança e pela mediocridade. […] O número de Realidades é infinito. O número de qualquer subclasse de Realidades também é infinito. Por exemplo, o número de Realidades que contêm a Eternidade é infinito; o número em que a Eternidade não existe é infinito; o número em que a Eternidade existe, mas é abolida, também é infinito.” (p. 250).

Por mais circular que seja esse pensamento, ele pode nos fazer refletir sobre o conceito de liberdade e sobre a real existência dos elementos que o definem, especialmente se considerarmos as formas como ele tem sido empregado ao longo dos séculos.   Cada vez que conceitos como infinito, eternidade, liberdade estão presentes em uma discussão, a análise torna-se muito complexa, pois sem um contorno, uma finitude ou um cárcere, parece-me que tal análise perde o sentido, ao menos um sentido que a minha categoria (humana) possa ser capaz de apreender.

Sobre Isaac Asimov

Nasceu em Petrovich, Rússia, em 1920. Naturalizou-se norte-americano em 1928. Além de escritor, foi Professor de Bioquímica na Universidade de Boston, EUA. Escreveu e editou mais de 500 livros (a série Fundação, Eu, Robô, O Homem Bicentenário). É mundialmente conhecido como autor de Ficção Científica, mas escreveu sobre vários outros gêneros (tramas de detetive e mistério) e até livros didáticos. Em 1966, a trilogia Fundação foi eleita a melhor série de ficção científica e fantasia de todos os tempos, superando concorrentes renomados como O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, e John Carter de Marte, de Edgar Rice Burroughs.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO:

O FIM DA ETERNIDADE

Autor: ASIMOV, Isaac
Ano: 1955
Tradução: Susana Alexandria

REFERÊNCIAS:

AGUIAR, Wanda M. Junqueira, Consciência e atividade: categorias fundamentais da Psicologia Sócio-Histórica. In: BOCK, Ana M. B.; GONÇALVES, Maria G. M.; FURTADO, Odair (orgs). Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2007. págs. 95 – 110.

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As Intermitências da Morte

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O livro “As intermitências da morte”, de José Saramago, brinca (acredito ser esse o verbo mais adequado a esse contexto), de forma irônica e romântica, com uma temática aparentemente pesada e complexa. A morte é, ao mesmo tempo, o tema e a personagem principal do livro. E a história começa quando, em um pequeno país, depois da comemoração do final de mais um ano, acontece o seguinte fato:

“No dia seguinte ninguém morreu.” (p. 11)

Foto do site: Worlds Beyond Rittman

E o fato de ninguém morrer dá início a uma espécie de caos no mundo, ao menos no pequeno mundo formado por aquele distante (?) país.  Mas, como assim? Por que o desejo mais antigo da humanidade, o da vida eterna, pode causar tanto horror, medo e desassossego?  Talvez porque um dos poucos sentidos da vida seja a certeza da sua brevidade. Sem essa certeza, o que temos? Sem a morte, o que somos? Por que motivo teríamos a necessidade de perpetuar nossos genes gerando mais crianças para superlotar um mundo de imortais?

Com o fim da morte, algumas instituições foram afetadas:

– As companhias de seguros precisavam se reinventar, criando uma nova forma de seguro de vida, já que a vida não tinha mais fim.
– Os agentes funerários perderam sua única fonte de renda.
– Os asilos teriam que ser multiplicados em todo o país, dado o fato de que as pessoas envelheciam, ficavam doentes e inválidas, ainda que não morressem.
– Os hospitais passaram a existir como depósito de moribundos.
– E a Igreja perdeu sua principal premissa de sustentação: a promessa da ressurreição.

Naqueles dias que ninguém morria, a manchete que perdurava nos principais jornais era:

“E Agora Que Irá Ser De Nós” (p. 23)

Foto: Tiquetonne2067

A ironia estava em entender que aquilo que pareceu ser nosso maior mal era também o nosso único norte. Parece que a morte nos direciona ou, simplesmente, estamos acostumados demais à brevidade para suportar uma existência sem fim. Assim, uma angústia perpassava o coração daqueles que participavam da reunião dos delegados das religiões:

“a aceitação explícita de que a morte era absolutamente fundamental para a realização do reino de deus e que, portanto, qualquer discussão sobre um futuro sem morte seria não só blasfêmia como absurda, porquanto teria de pressupor, inevitavelmente, um deus ausente, para não dizer simplesmente desaparecido.” (p. 35)

E um novo axioma parecia se formar na mente das pessoas, ainda que a maioria tentasse ignorá-lo: “se os seres humanos não morressem tudo passaria a ser permitido” (p. 36).

Com esse condicional, Saramago trouxe à tona a tormenta vivida por Raskólnikov, personagem de Dostoiévski em Crime e Castigo, que começou a ter delírios de grandeza e a imaginar-se um Napoleão, alguém que tudo podia, pois não fazia parte da maioria ordinária cuja sina não era relevante e que tanto fazia existir ou não existir. Assim, em meio a possibilidade da vivência de um aglomerado de pessoas sem leis morais, o medo começava a se alastrar em cada lar do pequeno país.

Em um futuro sem morte, mas repleto por um presente de doenças e de gente presa na linha tênue entre o existir e o não existir, começaram os clamores pelo direito de morrer.

(velho doente): “Não quero água, quero morrer.”(filha): “Lembre-se de que a morte acabou”, (velho doente): “desde que o mundo começou a ser mundo sempre houve uma hora e um lugar para morrer”. (p. 39)

Esse dilema provocou o início de uma jornada rumo à fronteira do país para depositar (do lado de lá) os corpos quase sem vida de seus entes queridos, porém doentes demais para terem alguma existência digna. O velho doente apresentado anteriormente foi o primeiro a atravessar a fronteira, carregado pelos filhos. Nesse outro país, o velho conseguiu, enfim, descansar da vida, que a ele já parecia ser um fardo imenso, como também o era para sua família. Quando os filhos voltaram ao seu país, à sua casa (sem o pai que agora jazia enterrado depois da fronteira), a família tinha dúvida se tal ato seria encarado como um crime ou como um suicídio.

Assim, em meio a “uma sociedade dividida entre a esperança de viver sempre e o temor de não morrer nunca.” (p. 71) começavam a surgir os mais metafísicos argumentos:

“Antes, no tempo em que se morria, nas poucas vezes que me encontrei diante de pessoas que haviam falecido, nunca imaginei que a morte delas fosse a mesma de que eu um dia viria a morrer, Porque cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe.” (o espírito que paira sobre a água do aquário, p. 73)

“As mortes de cada um são mortes por assim dizer de vida limitada, subalternas, morrem com aquele a quem mataram, mas acima delas haverá outra morte maior, aquela que se ocupa do conjunto dos seres humanos desde o alvorecer da espécie.” (aprendiz de filósofo, p. 73).

E nada é mais Saramago do que a discussão entre um espírito que paira sobre a água do aquário e um aprendiz de filósofo. A morte de cada um parece ser o reflexo de uma morte maior, aquela que existe enquanto existir o universo. Porém, talvez ainda haja uma maior que essa, mas vou parar por aqui, porque esse é um típico argumento ad eternum, longo demais para minha brevidade.

“o quase e o zero, que é a maneira plebeia de dizer o ser e o nada” (p. 78)

Os economistas também se juntaram à discussão da problemática que era viver em um mundo sem morte. Com suas tabelas e gráficos, fizeram estudos prospectivos apocalípticos sobre como o país iria sucumbir, em pouquíssimo tempo, aos perigos da eternidade. Não haveria, logicamente e matematicamente, espaço para tantos e tantos eternos. Os países fronteiriços também tinham se armado de forma a resistirem à invasão dos seus vizinhos sedentos de morte. A máfia, pois sempre há quem se beneficia em meio à desgraça, estava com toda uma ação orquestrada para vender morte na obscuridade, ainda que isso também fosse um acordo silencioso com o Primeiro Ministro. Os políticos (desde sempre) fazem acordos com o crime organizado na tentativa de perpetuarem um suposto poder.

“se não voltarmos a morrer não temos futuro.” (primeiro ministro, p. 86)

Assim, finaliza a primeira parte do livro, em que a temática girava em torno da morte, e inicia-se a fase da morte como personagem de carne e osso (em princípio, só osso).

“A morte, em todos os seus traços, atributos e características, era, inconfundivelmente, uma mulher.” (p. 128)

Fonte: Getty Images

A morte mesmo anunciou seu retorno de forma esfuziante no principal jornal do país. E, enquanto todos festejavam o retorno da finitude do corpo, o presidente de um grupo, que estava mais animado que a maioria, discursava sobre tão apoteótica notícia. Mas, a morte (como a vida) também é feita de estranhas ironias:

“Às vinte e três horas e cinquenta minutos o presidente teve um infarto do miocárdio. Morreu com a última badalada da meia-noite” (presidente da associação das funerárias, p. 105)

E, assim, conhecemos a morte (em minúsculo mesmo porque ela tem ímpetos de ira se escrevemos seu nome de outra forma) e começamos a acompanhar sua complexa trajetória em existir como morte em um mundo de vivos, em ser tão temida, ainda que, aparentemente, seja tão necessária, e ser tão silenciosa perante toda a dor que a sua existência provoca.

“porque a morte nunca responde, e não é porque não queira, é só porque não sabe o que há-de-dizer diante da maior dor humana.” (p. 126).

A morte de Saramago é uma figura angustiada, repleta de dúvidas, com vaidades e remorsos extremos e que pouco sabe sobre o sentido das coisas (como muitos de nós).

Pintura: Vincent Van Gogh

“não há nada no mundo mais nu do que um esqueleto” (p.146)

Essa morte, tão despida e só, que cria um sistema de cartas de aviso ao futuro defunto, na inocência de apaziguar a dor de quem parte, achando que, com isso, a pessoa teria tempo para pedir perdão, perdoar, pagar dívidas, redimir-se, vê-se presa a um estranho acontecimento: certo dia, uma carta não chega ao destinatário e quem devia morrer, não morre.

E inicia-se uma série de dúvidas (tão humanas) diante de uma morte tão frágil, por exemplo, “… quando nos perguntamos se somos realmente aqueles que fomos, ou se algum gênio da lâmpada não nos irá substituindo por outra pessoa a cada hora que passa.” (p. 151). Quem nunca?

E, então, a morte começou a observar mais de perto esse homem que não morria, a quem o bilhete avisando seu fim breve não conseguia alcançar. Deixou seus afazeres de morte nas mãos de sua gadanha silenciosa e pôs-se a segui-lo. Afinal, por que um violoncelista, de 50 anos (que deveria ter morrido aos 49 anos), que vivia com um cão, em uma casa simplória, desafiava a ordem natural das coisas? Tirava o pouco do sentido que tinha a morte (e a vida).

Pintura: Vincent Van Gogh

“Este homem está morto, pensou, todo aquele que tiver de morrer já vem morto de antes” (morte, p. 153)

“é como se fosse imortal porque esta morte que o olha não sabe como o há-de matar” (p. 154)

“ele se move e agita em todas as direções sem perceber que todas elas vão dar ao mesmo destino, que um passo atrás o aproximará tanto da morte como um passo em frente, que tudo é igual a tudo porque tudo terá um único fim, esse em que uma parte de ti sempre terá de pensar e que é a marca escura da tua irremediável humanidade.” (a morte, p. 163)

Ela (a morte) nunca entendeu bem as pessoas, sabia que sua existência dependia da existência delas. Que o fim delas significaria seu fim. Como muitos de nós, ela também tinha dúvidas sobre as instâncias superiores que deveriam direcionar todas as coisas. Alguns conceitos humanos, como a liberdade, a esperança e a caridade, escapavam-lhe, pareciam ser apenas artifícios criados para que a vida, aparentemente tão cara para a maioria, pudesse ter algum tipo de sentido.

E, enquanto buscava compreender a existência sem fim do violoncelista, “a morte foi, mais do que a sombra, o próprio ar que o músico respirava.” (p. 169). Com ele (mas sem que ele a visse), ouviu pela primeira vez, o brevíssimo estudo de Chopin, opus 28, número nove, (http://www.youtube.com/watch?v=cKeley78hM4).

“o que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naqueles cinquenta e oito segundos de música uma transposição rítmica e melódica de toda e qualquer vida humana, corrente ou extraordinária, pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também por causa daquele acorde final que era como um ponto de suspensão deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavelmente, alguma coisa ainda tivesse ficado por dizer.” (reflexão da morte, p. 171)

Há em consultórios psiquiátricos, em clínicas terapêuticas, em palestras filosóficas, em ensaios antropológicos e sociológicos, uma busca constante do sentido da felicidade. Esse sentido, muitas vezes, vem camuflado como pílulas mágicas, às vezes, como respostas rasas, outras, como argumentações profundas. Mas a morte, justo ela, alcançou em algum nível essa sensação ao ouvir Chopin, numa casa velha, diante de um homem solitário e de um cão adormecido.

“À morte pareceu-lhe sentir um brusco aperto…, uma agitação súbita dos nervos, podia ser o frémito do caçador ao avistar a presa, quando a tem na mira da espingarda, podia ser uma espécie de obscuro temor, como se começasse a ter medo de si mesma.” (p. 188)

A morte, agora com corpo e rosto de mulher (uma necessidade que adveio da sua pesquisa sobre a real natureza do violoncelista), passou de observadora a observada:

“bonita de um modo indefinível, particular, não explicável por palavras, como um verso cujo sentido último, se é que tal coisa existe num verso, continuamente escapa ao tradutor. E finalmente porque sua figura isolada, ali no camarote, rodeada de vazio e ausência por todos os lados, como se habitasse um nada, parecia ser a expressão da solidão mais absoluta.” (violoncelista ao ver a morte, p. 191).

E poucas vezes alguém descreveu tão bem a solidão de uma mulher, ainda que essa mulher fosse a morte. Talvez nessa época, cercados de tantos apetrechos eletrônicos e de tantas possibilidades de criar vínculos virtuais, haja uma quantidade maior de pessoas habitando o nada, rodeada de vazio. Aqueles cujas causas primeiras de suas lutas (ou discursos) não são a temática da luta em si, mas a possibilidade de serem “curtidos”, “compartilhados”, “reblogados” ou, simplesmente, “vistos”.

Mas, um livro que começa com essa dedicatória – “a Pilar, minha casa” (Pilar é esposa do Saramago), – teria que ter um romance à altura. A morte e o violoncelista não conversam apenas, têm um embate cheio de segundas e terceiras intenções, como são os embates entre homens e mulheres desde que o mundo é mundo:

“Tem medo de mim, perguntou a morte, Inquieta-me, nada mais, E é pouca coisa sentir-se inquieto na minha presença, Inquietar-me não significa forçosamente ter medo, poderá ser apenas o alerta da prudência, A prudência só serve para adiar o inevitável, mais cedo ou mais tarde acaba por se render, Espero que não seja o meu caso, E eu tenho certeza de que o será.” (diálogo – morte e violoncelista, p. 194 – aos que não estão acostumados com a escrita do Saramago, a separação do diálogo é feita pela vírgula e a letra maiúscula no início de cada sentença mostra que a fala passa de um personagem para o outro)

Para a morte do Saramago, apegar-se a alguém teve como consequência ficar ainda mais exposta, parece mesmo que, apesar de um corpo e um rosto, ela ficou mais despida do que quando era um esqueleto nu. Parece que não há muita diferença entre aqueles que são pedaços de vidas e esses outros, que são pedaços de morte.

“No seu quarto do hotel, a morte, despida, está parada diante do espelho. Não sabe quem é.” (p. 200)

Esse ainda não é o fim da morte (ou para a morte). Há algumas páginas a mais para a compreensão de alguns dilemas: se existe morte nesse ser que não sabe mais quem é; se há vida no violoncelista que construiu sua rotina no comodismo ou na sina de ser para sempre só. Aquele que não morreu com aquela que desaprendeu a matar.

Saudades do Saramago. Sua morte tão humana nos faz repensar nossa vida tão breve.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE

Autor: SARAMAGO, José
Ano: 2005

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