A busca de Si mesmo em Lion – Uma Jornada para Casa

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Com seis indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Atriz Coadjuvante (Nicole Kidman), Melhor Ator Coadjuvante (Dev Patel), Melhor Roteiro Adaptado (Luke Davis), Melhor Fotografia (Greig Fraser), Melhor Trilha Sonora (Dustin O’Halloran e Hauschka).

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Compreendido como uma crença subjetiva, na qual os seres humanos precisam sentir-se pertencentes a um lugar e ao mesmo tempo sentir que esse tal lugar lhes pertence, o Sentimento de Pertencer nos liga a tudo aquilo nos constitui como quem realmente somos, na busca incessante por tornar-se quem se é.

A busca pela essência, identidade ou totalidade de Ser é uma jornada pessoal e subjetiva, repleta por signos e significados pessoais. Carl Gustav Jung (2009) descreveu essa totalidade de ser, ou Self, como uma imagem arquetípica do potencial mais pleno dos seres humanos, ou seja, da totalidade de Si.

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Fonte: www.google.com

Para o autor, o Self ocupa a posição central da psique como um todo, doutro modo, pode ser compreendida como o destino de cada um. Mas não em uma perspectiva determinista, mas sim, multifatorial, construída ao longo da vida por uma série fatores intra e intersubjetivos, constituindo-se de modo histórico, pessoal e subjetivo.

Em Lion – uma jornada para casa, entramos em contato com a história de Saroo (Sunny Pawar “criança” e Dev Patel “adulto”), um menino indiano de 5 anos de idade que se perde do irmão em uma estação ferroviária de Calcutá e, depois de vários percalços, é adotado por um casal australiano, milhares de quilômetros distante de casa.

A autobiografia de Saroo Brierley, retratada no livro A Long Way Home, não é um caso isolado. Anualmente, mais de 80 mil crianças desaparecem na Índia. O dado não é a única informação preocupante, exponencialmente crescem também na Índia os índices de crianças desabrigadas, violentadas e traficadas para trabalho escravo e prostituição em outros países.

Sunny Pawar on the set of LION Photo: Mark Rogers
Sunny Pawar on the set of LION
Photo: Mark Rogers

O modo de vida nas favelas indianas é denunciado pela fotografia do filme (Greig Fraser). Crianças subjugadas, em situação de rua e sem comida são retratadas sem nenhuma preocupação em maquiar a realidade. O filme é também um apelo ao descaso de milhares de pessoas que sofrem diariamente na Índia em condições precárias e inumanas.

Voltando para nosso protagonista, Saroo, agora adulto, não se sente confortável em não saber nada sobre seu Lar, seu passado, suas origens. O signo Lar é definido pelo dicionário como “local onde há harmonia, onde as pessoas vivem e sentem-se bem.” Mas subjetivamente podemos transcender o conceito e atribuir características peculiares significativas de Lar para cada um, logo, lar pode ser representado como casa; família; conforto; amor; cuidado; aconchego; carinho; pai; mãe; avô; avó e etc.

A ausência de um Lar que significasse como seu, impedia Saroo de seguir com o curso natural de sua vida. Cabe ressaltar que não havia um estranhamento em relação a sua nova família adotiva. Desde criança, o personagem nunca se conformara com o fato de perder-se de sua família original – neste caso – os constituintes de sua essência. Sua busca enquanto adulto era uma jornada de volta a aquilo que ele perdera ao se desvincular de sua família genética, seus referênciais de identidade.

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Fonte: www.google.com

É importante frisar que isso não é uma característica literal em crianças adotadas, por novas famílias (RUTTER et al., 2001). Em geral, o ambiente do amor e cuidado do novo lar suplanta necessidades afetivas, psicológicas e socioculturais de adotandos. Contudo, Saroo apresentava uma particularidade, o Sentimento de Pertencer nele era tamanho que nunca sentira necessidade de uma nova família. Ele aceitou o casal Brierley (Nicole Kidman e David Wenham) como seus pais adotivos, mas nunca se desligou de sua mãe e irmãos genéticos.

Enquanto adulto ele estava familiarizado e realizado com sua nova família, porém, ele sabia que havia na Índia uma família que o amava e que sentia sua falta. Ter consciência disso provocou em Saroo um epifania. A necessidade de voltar ao seu passado e compreender sua história era tão forte que o impedia de construir uma nova história. Para Ser quem ele realmente era, Saroo precisava compreender sua gênesis.

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Fonte: www.google.com

Aqui é relevante citarmos a participação de Lucy (Rooney Mara), como parceira romântica e Anima de Saroo. Ela dá ao personagem a coragem necessária para investigar seu passado e remontar o quebra-cabeças de flashs de memórias buscando sua história.

Enquanto arquétipo, Anima e o Animus operam pelo princípio da complementariedade através da qual a psique se move. Lucy correspondia à necessidade de Saroo de voltar ao seu passado e compreender sua história, para, a partir disso, seguir em frente com o curso natural de sua vida.

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Fonte: www.google.com

Encorajado por sua família e referenciais de afeto, Saroo se autoriza a acessar seu passado, é nesse momento que sua psique se sente pronta a acessar e reviver memórias até então inconscientes. Com ajuda do Google Earth ele consegue localizar sua terra natal, para qual viaja em busca de compreender quem realmente é.

Saroo era um eremita, vivendo isolado em Si mesmo, sem referenciais de um Lar, cultura e história de vida. Não viveu tempo suficiente na Índia para compreender sua origem, tampouco se permitiu ser tocado pela Austrália para encontrar nela uma morada.

O filme retrata nuances de uma história profunda e fortemente impactada pela ausência de significações em torno de Si mesmo, de tal modo, que impedia que a psique se autorregulasse. Compreender sua história, era para Saroo, o elemento necessário para seguir em frente e construir um Self pleno de significações e representações simbólicas.

TRAILER

REFERÊNCIAS:

JUNG, Carl Gustav. Natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2009.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente – Coleção Obras Completas – Vol. 7/ 1. Obra Completa – 11ª Ed. 2010.

RUTTER, M., KREPPNER, J., O’CONNOR, T. G., & The ERA Study Team (2001). Specificity and heterogeneity in children’s responses to profound privation. British Journal of Psychiatry, 179, 97-103.

FICHA TÉCNICA DO FILME:
Lion - Uma Jornada Para Casa

LION – UMA JORNADA PARA CASA

Diretor: Garth Davis
Elenco: Dev Patel, Rooney Mara, Nicole Kidman, David Wenham
País: Austrália, Reino Unido, EUA
Ano: 2016
Classificação: 12

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O Menino e o Mundo: a distopia em suas possibilidades

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Com uma indicação ao Oscar:

Animação

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Com direção e roteiro de Alê Abreu, em O menino e o mundo acompanhamos a história de um menino a espera da volta do seu pai, que rumou para a cidade grande em busca de novas oportunidades. Neste interlúdio, toda uma viagem é apresentada, com desafios, um mundo imaginário e fantástico, além de questões envolvendo sentimentos, sensações e decisões.

Nos últimos tempos cineastas brasileiros, ou profissionais com formação e atuação correlatas, assumiram a frente em interessantes trabalhos de curta duração e animações. Obras importantes podem ser mencionadas como detentoras deste legado, com premiações e indicações em diferentes premiações ao redor do mundo: Uma história de amor e fúria (2013), O céu no andar de baixo (2010), Céu, Inferno e outras parte do corpo (2011), Garoto Cósmico (2007), Cassiopeia (1996), O Grilo Feliz (2001), e muitos outros trabalhos, que circulam por longas e curtas-metragens de animação, tradicionais ou imagens alternativas.

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O lançamento d’O menino e o mundo foi no mínimo curiosa. Sua produção remonta ao ano de 2010, e após um longo percurso para arrecadação de fundos, angariação técnica, aproximação de colaboradores, etc. o filme foi lançado em prévias em 2013e internacionalmente nos anos de 2014 e 2015. Por esta razão faz parte dos indicados ao Oscar e outros prêmios para o gênero animação na temporada de 2016. Até o momento a obra foi reconhecida, como vencedora ou indicada, em ocasiões como Annie Awards, Oscar, Festival de Annecy, Grande Prêmio Brasileiro de Cinema, Grande Prêmio de Monstra em Lisboa etc.

Escrevi um primeiro argumento muito livremente, costurando idéias soltas: Cuca levado pelo vento, o encontro do menino com um velho, a partida do pai, mistério numa fábrica abandonada etc. Mas sempre incorporadas ao pano de fundo, que era a situação apresentada em Canto Latino, e buscando encontrar ali uma linha que os unisse numa história. […]Fazia anotações, esboços em um caderno de rascunho e depois transformava estas idéias em pequenos trechos de história, que eram incorporados ao bloco do filme. Ao mesmo tempo experimentava sons e trechos de músicas como referência e já brincava com a própria montagem (ABREU, 2011, s\n).

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Como já é costumeiro, o sucesso internacional corroborou para o olhar da crítica se voltar para o longa. Assistido por menos de 40 mil espectadores no Brasil, na França este número ultrapassou a marca dos 100 mil em poucas semanas., conseguindo grande bilheteria em países como Canadá, Japão e outros mercados fora do eixo americano e oeste europeu.

No caso d’O menino e o mundo não há, felizmente, todo o velamento da realidade opressiva e angustiante da metrópole aos viventes dos aglomerados urbanos, principalmente com concentração de baixa renda e diversos problemas citadinos. Temos uma distopia diante de nós, mas o seu reverso também está lá, pelas cores, imagens e representações que denotam esta dialética. Esta postura de negação da realidade, pelos reforços estereotípicos do Brasil, ocorreu recentemente por outra animação, nos constrangedores filmes Rio, que em certo ponto escalaram tantos arquétipos tortuosos do país que fica difícil defendê-lo além destes lugares comuns.

Neste ponto há outro destaque para a obra de Abreu, que é o traço, o apuro das gravuras, os movimentos, os sons, tudo está orquestrado de modo a apresenta rum caminho para a imersão do espectador na obra. Há uma delicadeza e sutileza nos desenhos, nos planos imagéticos, incrementos sonoros e todo o envolvimento da narrativa com seus personagens e cenas, tornando a experiência de assistir o filme algo único e inesquecível.

Inspirações em grandes mestres da animação e desenhistas de Hayao Miyazaki, Katsuhiro Otomo, Satoshi Kon a Charles Schulz e Mauricio de Souza são perceptíveis na obra de Abreu, fortalecendo-a como uma verdadeira obra-prima nacional, justamente por lidar com um cenário, público e mercado que não estão acostumados com sua linguagem e profundidade.

E cabe aqui uma menção aberta ao cinema nacional brasileiro. Não é de hoje que as fórmulas de grande potencial publicitário caminham distantes da qualidade, em prol da quantidade. O ponto fora da curva fica por conta do já distante duo Tropa de Elite (2007; 2010), comandados por Wagner Moura e o diretor José Padilha, as demais obras de grande caibre financeiro em investimentos e distribuição sequer são dignas de nota.

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 A fuga da realidade

Há algum tempo o cinema independente do Brasil vem fazendo investidas em temáticas sobre a existência nas grandes cidades. Solidão, solidariedade, angústia, desamores, o cotidiano urbano, dentre outros campos são explorados em obras de rico espectro reflexivo: O homem das multidões (2014), O Homem que Copiava (2003), Edifício Master (2002) e A Busca (2013), etc. Filmes que furaram uma bolha de extremos, entre os grandes lançamentos, americanos principalmente, e duvidosas obras nacionais sustentadas por interesses muito distantes da qualidade cinematográfica merecida pelo público e profissionais da sétima arte.

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Obras como O menino e o mundo mostram e provam, explícita e implicitamente, que o cinema brasileiro pode sim superar seus arquétipos e estereótipos: as favelizações, o nordeste (com um caricato e desrespeitoso regionalismo), o ufanismo edênico há muito servido como pano de fundo ideológico para a nação; as recentes e constrangedoras comédias sustentadas com leis de incentivo cultural dignas de repúdio em seus critérios de apoio e patrocínio, dentre outros.

Lembrando, os clichês existem em todas as linguagens da arte, e assim o são porque são devires da sociedade – a refletem, representam e reinventam pelos tempos e espaços –, é preciso revistá-los sempre, mas de forma original e construtiva, e não apenas como recurso fugidio para a falta de criatividade ou em busca de aceitação popular e retorno monetário.

É preciso valorizar a criatividade das animações brasileiras, que demonstraram, e o continuam fazendo, em várias ocasiões. Não seria exagero estabelecer nossos artistas em grandes escolas de animações já consagradas, como a japonesa, alemã e francesa, riqueza esta passível de constatação em cada novo projeto lançado, independente da plataforma, linguagem, escala popular ou alcance financeiro, se o pulso das novas fronteiras do cinema brasileiro pulsa com todo o seu vigor, um destes lugares reside nas animações como O menino e o mundo que  poderia ser muito mais do que já é, uma obra-prima da animação nacional. E mesmo que chegue a ganhar prêmios de maior escala como o Oscar, certamente ainda veremos anos de esquecimento e ostracismo para grandes obras, excelentes filmes, e inovadoras possibilidades, como é esta singular estória contada por Alê Abreu.

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REFERÊNCIAS:

O MENINO E O MUNDO. Roteiro e Direção de Alê Abreu. Filme de Papel e Espaço Filmes. 2015. 85 min.

ABREU, Alê. Textos do diretor [2011]. In: < http://omeninoeomundo.blogspot.com.br/> Acesso. 10.01.2016.

FILME DE PAPEL. O menino e o mundo. BLOG. 2014. Disponível em: <http://omeninoeomundo.blogspot.com.br/>. Acesso em: 01 de fev. de 2016.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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O MENINO E O MUNDO

Direção: Alê Abreu
Elenco: Alê Abreu, Lu Horta, Vinicius Garcia;
País: Brasil

Ano: 2015
Classificação: Livre

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