“O farol” e a fragmentação de uma personalidade

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Concorre com 1 indicação ao OSCAR:

Melhor Fotografia

A água é uma representação do inconsciente, dessa forma, no filme os personagens se encontram cercados como se não pudessem escapar.

O filme O farol (The lighthouse) conta uma história de Ephraim, que é levado a uma ilha para substituir o ajudante do faroleiro Thomas, em atividades diárias. Sendo que o acesso ao farol fica vetado a Ephraim e isso acaba despertando nele uma enorme curiosidade. O filme foi indicado ao Oscar na categoria de Melhor Fotografia e carrega em si muitos símbolos e referências à mitologia grega.

O longa é uma linha tênue entre a realidade e a loucura, e fica em aberto para a imaginação de quem assiste. Ambos os personagens dividem o espaço da ilha, onde no início Ephraim é submisso a Thomas em uma tentativa de agradar e/ou conquistá-lo, e acaba desempenhando as funções mais pesadas. Mas com o passar do tempo essa relação se torna uma disputa de poder tendo o farol como objeto de disputa. Este símbolo na visão lacaniana é um objeto fálico, e o psicanalista francês (1999) lembra que na antiga Grécia, o falo não tinha um formato do órgão, mas tinha uma representação de desejo e poder.

No início do filme Ephraim tem uma função semelhante ao do Superego, que conforme Freud (1976) atua como um juiz, um órgão psíquico da repressão, particularmente da repressão sexual. Dessa forma, ele estabelece uma censura nos impulsos que a sociedade e a cultura interpretam como errado, impossibilitando o sujeito de se satisfazer plenamente. Então agindo de tal forma ele segue à risca o código do faroleiro, se nega a dar vazão aos seus desejos reprimidos e acaba em seus devaneios.

Já Thomas pode ser encarado como o ID, que no mesmo texto Freud afirma ter a função de descarregar as tensões biológicas e é regido pelo princípio do prazer. Nesse sentido, Thomas afirma ser o próprio código do faroleiro e que as regras que segue são as suas, dando asas aos seus desejos e pulsões, onde faz um grande consumo de bebida alcoólica e nega o acesso ao farol para o seu novo ajudante.

Além de suprimirem seus passados, os dois personagens parecem fugir o tempo todo de quem são, acabam buscando algum tipo de conforto na relação que estabelecem ali na ilha, porém ocorre o contrário, ambos começam a ter um contato com tudo àquilo que estavam negando. Em uma entrevista no site Huffpostbrasil, o diretor Robert Eggers fala sobre um homoerotismo presente no filme e que fica mais evidente na cena da dança, na qual termina em socos, como se em mais de um momento eles negassem seus desejos.

Fonte: encurtador.com.br/ghmL3

Devido a isso, desde o início o filme apresenta uma relação de dominação em que Thomas se refere a Ephraim como cachorro, mas existe um medo de ambas as partes de chegarem a quem são de verdade. Enquanto Thomas tem o prazer de enlouquecer e parece ser culpado pela morte do antigo ajudante, Ephraim diz que era lenhador e está ali fugindo de um acidente de trabalho que mais parece ter sido um assassinato, tanto que está presente em seus devaneios a presença desse colega.

O filme, por ser em preto e branco, luz e sombra, também é a representação de que nenhum indivíduo é totalmente bom ou ruim. Assim como aponta Jung (2011), a sombra é um problema de origem moral e tomar consciência dessa sombra é reconhecer aspectos obscuros da personalidade. Por isso o personagem de Pattinson fica obcecado em alcançar essa luz do farol, que poderia vir a iluminar seus aspectos sombrios que o acompanham desde o início do filme.

Fonte: encurtador.com.br/mtCD1

A água é uma representação do inconsciente, dessa forma, no filme os personagens se encontram cercados como se não pudessem escapar e acabam imergindo em algo que sai do controle. Assim, as defesas do Ego são rompidas aos poucos diante das provocações de um com o outro. Fora que anteriormente ele sonha que entra na água em meio a toras de madeira enquanto mantém fixo o olhar em um corpo que flutua. E é a partir desse momento, no qual o barco não vem buscá-lo, que ele rompe de vez com a realidade, onde no filme parece ser justificado pela bebedeira incessante com Thomas.

Outro momento intrigante do filme é quando Ephraim revela que seu nome também é Thomas, num jogo de projeções de mal entendidos. Isso ocorre, em certa medida, porque as personas (JUNG, 2011) vão sendo deslocadas, e determinadas atuações, sobretudo de Ephraim, começam a colapsar, numa clara demonstração, no decorrer do filme, de fragmentação da personalidade.

O filme apresenta muitas outras coisas a se analisar, como a cena em que Ephraim mata Thomas com um machado, assim como provavelmente ele pode ter matado seu ex-colega de trabalho. Podemos pensar na ilha e em todos os integrantes, inclusive os pássaros, também como parte de uma personalidade fragmentada. Isto tudo em meio a uma pessoa em busca de uma iluminação acerca de seus medos e incertezas, movimento metafórico quando, no longa, Ephraim abre o farol e é tomado por aquela luz. Uma luz que é sedutora, redentora… mas, também, perturbadora. Como o próprio filme!

FICHA TÉCNICA:

O FAROL

Título Original: The Lighthouse
Direção: Robert Eggers
Elenco: Robert Pattinson, Willem Dafoe e Valeriia Karaman;
Gênero: Drama, Fantasia e Terror
País: EUA
 Ano: 2019

REFERÊNCIAS:

JUNG, C. G. Aion – Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

FREUD S. O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago; 1976.

JACOBS, Matthew. Decodificando o homoerotismo em ‘O Farol’. 2019. Disponível em: <https://www.huffpostbrasil.com/entry/o-farol_br_5db72026e4b006d49172e589>. Acesso em: 21 jan. 2020.

LACAN J. (1999) O Seminário 5 – As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

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Beautiful Boy: Vício em Drogas Fragmentando o Indivíduo e sua Família

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A faca se aproximou da minha garganta novamente,
eu quase voltei a ligar o gás,
mas quando os bons momentos chegaram,
não lutei contra eles como um adversário.
Deixei-os me levarem, deleitei-me com eles,
fiz com que fossem bem-vindos em casa.
“Let It Enfold You,” by Charles Bukowski

Beautiful Boy (Querido Menino) é uma adaptação de dois livros de memórias: Beautiful Boy (2008), de David Sheff; e Tweak: Growing Up on Methamphetamines (2009), de Nic Sheff. Ambos são pai e filho e mostram na descrição de suas memórias como as consequências do vício podem produzir feridas profundas no indivíduo e em sua família. O filme traz à tona a história real de David e Nic, interpretados respectivamente por Steve Carell e Timothée Chalamet a partir da perspectiva de David, o pai, em sua tentativa de entender e ajudar o filho Nic, de 18 anos, em sua complexa jornada de dependente químico.

O desafio do diretor Felix Van Groeningen foi distinguir este filme de tantos outros sobre o mesmo tema (como os espetaculares Trainspotting e Requiem for a Dream, ou o drama adolescente estrelado por DiCaprio, The Basketball Diaries). Assim, quando o diretor concentrou-se na relação pai e filho, apresentou alguns diferenciais na trajetória por vezes tão repetitiva do vício (uso, reabilitação, sobriedade e recaída). Nessa direção, ao acompanharmos as angústias de David, vimos as indagações de tantos pais antes e depois dele: “Por quê?” Por que seu filho inteligente, sensível e carinhoso se tornou um dependente químico? Que momento ativou a mudança de comportamento? De quem é a culpa? Nenhuma dessas indagações tem uma resposta satisfatória, muitas delas nem têm respostas.

Várias gerações leram na adolescência o livro O Estudante, de Adelaide Carraro, publicado pela primeira vez em 1975. O livro é um alerta a pais, jovens e professores sobre as múltiplas faces do dependente químico, mostrando que qualquer pessoa pode se envolver nesse universo, logo não há distinção de classe social, idade etc., e muitas vezes, não há um porquê, por exemplo, um trauma na infância ou adolescência motivador da mudança de comportamento. Em Beautiful Boy é essa ausência de motivo que torna a jornada do pai ainda mais angustiante. Ele é um escritor, sempre buscou elementos em suas histórias que fossem condutores dos seus personagens, estava acostumado a identificar estímulos que geravam mudanças de comportamento. E justamente na história protagonizada por seu filho, esses estímulos lhe pareciam obscuros. Talvez porque o ambiente e suas variáveis são assimilados diferentemente por cada indivíduo, o que para o pai não parecia ter sentido, para Nic, estar sob o efeito de uma droga que lhe permitisse ter sensações novas, aflorava sua sensibilidade e sua percepção.

Para mostrar como funciona a mente do pai nessa jornada em entender os motivos que levaram seu querido menino ao vício, o diretor trabalha com flashbacks dos momentos da infância à adolescência de Nic, sempre mostrando a relação dos dois. O filme não tem uma sequência linear, todo esse vai e vem de lembranças, ao final, reforçam a tentativa de David em entender em que momento perdeu o filho, ou em que momento algo foi potencialmente acionado e que transformou de forma aparentemente definitiva o menino que ele criou, que ele ama.

A metanfetamina, que é a principal droga usada por Nic, é um estimulante extremamente potente que afeta várias áreas do Sistema Nervoso Central (SNC). Segundo Gouveia (2017, apud LINEBERRY and BOSTWICK, 2006; ALAM-MEHRJERDI et al, 2015):

Há vários efeitos sistêmicos associados ao consumo de metanfetamina, destacam-se no nível psiquiátrico: ansiedade, irritabilidade, paranoia e o comportamento compulsivo e obsessivo; no nível cardíaco: taquicardia, hipertensão, palpitações, arritmias e síndrome coronário agudo; no sistema pulmonar: taquipneia, dispneia e edema agudo do pulmão; no sistema renal: insuficiência renal aguda e rabdomiólise; no nível dermatológico: escoriações, úlceras e queimaduras químicas; e, por fim, no nível metabólico: hipertermia e acidose metabólica.

Para entender o que se passava no organismo do filho, especialmente como a droga afetava sua mente, David procurou ajuda de um médico, e a resposta que recebeu foi devastadora. Segundo o psiquiatra, a metanfetamina muda fisicamente o cérebro, pois há uma perda dos receptores de dopamina. Além disso, o médico mostrou uma imagem do cérebro de um viciado em metanfetamina e apontou para dois pontos vermelhos, que representavam uma hiperatividade na amígdala, a região do cérebro ligada à ansiedade e ao medo. No caso de um viciado nesta droga, “a amígdala está gritando”, segundo o psiquiatra “isso mostra que há uma base biológica que pode fazer com que os usuários desta droga sejam incapazes, não sem vontade, mas sim incapazes de participar de programas de reabilitação tradicionais”.

Enquanto David sai em sua cruzada para entender as consequências da droga no organismo do seu filho na esperança de encontrar algum meio para ajudá-lo, Nic se afasta cada vez mais do garoto que ele foi. Usa várias drogas até se viciar em metanfetamina. Nesse percurso é mostrado desde o garoto de personalidade introspectiva, muito inteligente e sensível, brincalhão e carinhoso com seus irmãos mais novos, fã de David Bowie e um leitor voraz das poesias de Charles Bukowski até o rapaz fragmentado, confuso, sem forças para lidar contra o vício e com uma aparência modificada pelo uso excessivo da droga. Ao final, pouco lembra o “beautiful boy” que dá título ao filme.

Na poesia de Charles Bukowski, lida por Nic, há um trecho que diz “paz e felicidade para mim eram sinais de inferioridade, inquilinas de uma mente fraca e confusa, mas enquanto eu prosseguia com minhas lutas no beco, meus anos suicidas, […] me ocorreu que eu não era diferente dos outros, eu era o mesmo, eram todos cheios de ódio, encobertos por pequenas queixas”. A homogeneização potencializada pelo uso de drogas favorece uma interpretação mais perturbadora dessa poesia. Nic e sua namorada, assim como outros viciados que aparecem no filme, começam a evidenciar angustiantes semelhanças, até no aspecto físico.

Um dos pontos mais emocionantes do filme ocorre no depoimento de uma mãe em uma reunião de apoio a familiares de dependentes químicos. Ela inicia o depoimento dizendo que sua filha tinha morrido de overdose naquela semana, e depois acrescenta: “Estou de luto, mas eu percebi outra coisa, na verdade estou de luto há anos, porque, mesmo quando viva, ela não estava lá. Quando você fica de luto pelos vivos, é um jeito duro de viver.” Além de todos os problemas causados no organismo do dependente químico, as drogas também deixam um rastro de dor, desespero, vergonha e culpa. Nas reuniões com os familiares, há uma tentativa de minimizar tais sentimentos negativos por meio do compartilhamento de vivências.

Ao final, talvez a mensagem mais contundente seja a transmitida por alguns versos do Bukowski em sua poesia “Let It Enfold You”: “Cautelosamente me permiti sentir-me bem às vezes. Eu encontrei momentos de paz em quartos baratos apenas olhando para os botões de alguma cômoda ou ouvindo a chuva no escuro, quanto menos eu precisasse, melhor me sentia.” Mas, sentir-se bem nem sempre é possível, nem sempre é algo que dependa somente da pessoa, nem sempre nosso organismo contribui com nossos lampejos de enfrentamento. Assim tão relevante quanto apreciar as coisas simples da vida, é importante ter empatia com o outro. E, neste contexto, prestar atenção ao outro que sofre compreende a atenção ao dependente químico e aos seus familiares, cujas relações foram fragmentadas em meio a resíduos de dor, violência e desesperança.

FICHA TÉCNICA DO FILME

BEAUTIFUL BOY

Título original: Beautiful boy
Direção: Felix Van Groeningen
Elenco: Steve Carell, Timothée Chalamet, Maura Tierney, Amy Ryan
Ano: 2018
País: EUA
Gênero: Drama

Referências
ALAM-MEHRJERDI, Z., MOKRI, A., DOLAN, K. Methamphetamine use and treatment in Iran: A systematic review from the most populated Persian Gulf country. Asian journal of psychiatry. 2015; 16:17-25.

GOUVEIA, P. J. B. Psicoses induzidas por anfetaminas: Um trabalho de revisão. Dissertação de Mestrado. Março, 2017. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/104590/2/195181.pdf.

LINEBERRY, T.W., BOSTWICK, J.M. Methamphetamine abuse: a perfect storm of complications. Mayo Clinic proceedings. 2006; 81(1):77-84.

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