San Junipero: imanência e transcendência entre o Dasein e o Mitsein

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Em 21 de outubro de 2016 estreou na plataforma Netflix o episódio San Junipero, da série Black Mirror, que trata principalmente de temáticas sobre ficção científica e assuntos existenciais entremeados por questões tecnológicas já observadas no mundo contemporâneo. Ao longo de 61 minutos, sob a direção de Owen Harris, acompanhamos a história de Kelly e Yorkie, vividas pelas atrizes Gugulethu Sophia Mbatha e Mackenzie Davis. Em um mundo futurista é possível que as pessoas passem longos períodos em uma realidade virtual, de profunda imersão e possibilidade de experiências e vivências e, eventualmente, alcançando um estado de permanência espaço-temporal e memorial não corpórea do existir, de uma forma praticamente transcendental, por meio de recursos neurológicos e tecnológicos.

Em uma destas realidades possíveis o bar San Junipero torna-se o ponto de encontro destas consciências em imersão compartilhada, virtual e tecnologicamente conectadas naquele lugar específico. É a partir deste plot inicial que a história e trajetórias das protagonistas se cruzam, real, virtual e existencialmente, nos convidando a um mergulho em questões sensíveis do estar consigo e com o outro, do abrir-se ao diálogo, desejo e sentimentos, ora em momentos de plenitude ora de esvaziamento do e de ser, tal como o Dasein do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976).

O Dasein heideggeriano pode ser definido como o ente humano, que é e está na diferença ôntico-ontológica de todos os demais entes do mundo; o Dasein também pode ser compreendido como dádiva, dúvida e fardo, ao mesmo tempo, que nos acompanha como seres humanos, estando na posição do aí (Da) do ser (sein), em espacialidade, temporalidade e existencialidade únicas, como ser-no-mundo. Como existência, uma das traduções possíveis para o Dasein, estamos tanto condicionados como direcionados à liberdade, como um projeto de inacabamento do devir existencial.

Fonte: encurtador.com.br/dfNSZ

Finitude, infinitude, melancolia e alegria são elementos e estados da consciência, inteligência artificial, relação entre transcendência-imanência-corporeidade que são trabalhados em San Junipero, e que podem ser encontradas em filmes como Blade Runner (1982), Her (2013) e Ex Machina (2015) – com algumas referências ao longa Thelma e Louise, de 1991 -, herdeiros de obras literárias como Frankenstein ou o prometeu moderno, de Mary Shelley, autores e autoras como Isaac Asimov, Mary Rosenblum, Arthur C. Clarke, Mari Wolf, Hiromi Arakawa e Philip Dick.

A conexão entre inteligência artificial, mundo digital e informacional e as ideias heideggerianas sobre a analítica existencial possuem já um panorama de desenvolvimento acadêmico e artístico (PRESTON, 1993; TEIXEIRA, 2009; MASÍS, 2009). O que observamos no episódio de Black Mirror é um outro, especial e rico, exemplo de como trabalhar de forma sensível muitos dos dilemas e questões do existir e devir da existência. Mais que explorar situações existenciais e espirituais/metafísicas pelo humano e a I.A, San Junipero opera em condições de aplicação e demonstração de temas metafísicos, ontológicos e comuns a diferentes teorizações filosóficas, humanistas, sociais e psicológicas no limiar entre o Dasein e o Mitsein (ERICKSEN, 2017)..

Nas palavras do próprio Heidegger, o Dasein, como ser-aí e existência: “Chamamos existência ao próprio ser com o qual a presença pode relacionar-se dessa ou daquela maneira e com o qual ela sempre se relaciona de alguma maneira. Como a determinação essencial desse ente não pode ser efetuada mediante a indicação de um conteúdo quididativo, já que sua essência reside, ao contrário, em sempre ter de possuir o próprio seu como seu, escolheu-se o termo presença para designá-lo enquanto pura expressão do ser.” (HEIDEGGER, 2008, p. 48).

Fonte: encurtador.com.br/tyPV8

Os elementos ficcionais, oitentistas e estéticos em San Junipero servem como o plano de fundo para a união possível do eu com o outro, mediados pelo ser-aí heideggeriano. Se se cabe ao Dasein abrir-se para o sentido de si próprio e do mundo, então seja no plano imanente das paisagens do episódio ou transcendente, de uma realidade temporal fictícia imaginariamente compartilhada, o que irá imperar é a condição especial do ser-se humano, aberto ao (in)finito de seu próprio devir. Ao longo do episódio da série há elementos temáticos sobre existência, questões pós-morte, o propósito do existir, sentimentos, envelhecimento, temporalidade, alteridade, espacialidade e (i)racionalidade tornando-se perpassagens do devir como abertura ôntico-ontológica do saber-se e des-conhecer-se, como liberdade com e ao outro que nos in-completa (STEIN, 2001; ASTRADA, 1942).

Pela condição do daseinphaenomen, ou seja, o fenômeno existencial, temos o percurso de uma vida como uma miríade de escolhas, estados de consciência, emoção, sensação, percepção e, principalmente, experiências circunstanciais com e no mundo. Ao longo das paisagens, lugares, falas e interações das personagens de Gugulethu Sophia Mbatha e Mackenzie Davis acompanhamos esta condição humana do Dasein que é: “portanto, o existir em cada caso particular, no aí, no ‘estar sendo’ de cada um. Assim, o existir fático determina  um  modo de  compreensão da  existência  que  já  se  dá  no interior e  a  partir  de  si  mesma, de  tal forma que esta nunca pode ser contemplada ‘de fora’, como um objeto perante um sujeito. Somente o Dasein – efetivo e em cada caso – compreende sua existência (Existenz)”. (PÁDUA, 2005, p. 10).

E, mais que a conexão, proximidade e, eventualmente, questionamentos tanto sobre a finitude como infinitude da existência, há uma abertura transcendental e utópica em San Junipero ao que Heidegger chamou de Mitsein, que é uma das variações epistemológicas do Dasein, traduzido como ser-com-os-outros, ou apenas ser-com – como variação ao ser-em, também elaborado pelo filósofo alemão. Kelly e Yorkie se (des)encontram tanto no plano ôntico finito como ontológico infinito, permitido, de forma especial e intrigante, por meio da tecnologia e inteligência artificial de um mundo futuro que observamos apenas a silhueta.

O Mitsein como o Dasein que se encontra no des-velamento de si mesmo no outro é a abertura ao (in)finito à outrem, não mais um ente, como corpo-consciência, que assim como o eu, possui a abertura do questionar o ser e a essência de todas as coisas, do sentir o desejo, partilhar as perdas e conquistas e viver, cada momento, da forma mais intensa possível (LEVINAS, 2018). Diálogos, silêncios, sentimentos e partilhas formam a ponte do si ao si, pelo outro, na relação entre as protagonistas do singular episódio de Black Mirror.

Fonte: encurtador.com.br/gkmR6

Referências

ASTRADA, Carlos. El juego metafísico: para una filosofía de la finitud. Buenos Aires: Libreria El Ateneo Editorial, 1942.

ERICKSEN, Lauro. Verdade, desvelamento e ser-com: o entendimento compartilhado do dasein. GRIOT, v. 15, p. 44-59, 2017.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2008.

LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito: Ensaio sobre a Exterioridade. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 2018.

MASÍS, Jethro. Fenomenología hermenéutica e inteligencia artificial: Otra urbanización de la provincia heideggeriana. Buenos Aires, Argentina. Mayo de 2009.

PÁDUA, Ligia Teresa Saramago. A “Topologia do ser”: lugar, espaço e linguagem no pensamento de Martin Heidegger. 2005. Tese (Doutorado em Filosofia) Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Janeiro: PUC-Rio, 2005.

PRESTON, Beth. Heidegger and Artificial Intelligence. Philosophy and Phenomenological Research v. 53, n. 1, Mar, p. 43-69, 1993.

STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude. Ijuí: Unijuí, 2001.

TEIXEIRA, João de Fernandes. O fenomenólogo, o neurocientista e o engenheiro. Filosofia (São Paulo), São Paulo, p. 36 – 37, 15 jan. 2009.

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Psicologia Junguiana e Função Transcendente por trás do filme “Dois Papas”

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Concorre com 3 indicações ao OSCAR:

Melhor Ator, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Roteiro Adaptado. 

O longa mostra que é necessário reconhecer os aspectos sombrios da existência, rejeitando ou integrando o recalque e a dissimulação, condições bem trabalhadas no filme, quando tanto Bento XVI quanto o cardeal Bergoglio se debruçaram sobre suas fraquezas e sobre episódios de vida nada abonadores para, numa escalada narrativa, superarem as visões limitantes e seguirem em frente

Uma produção original da Netflix e sob direção do brasileiro Fernando Meireles, o filme Dois Papas estreou em apenas algumas salas especiais espalhadas pelo Brasil (em Palmas, a exibição ficou por conta do Cine Cultura do Espaço Cultural), e a entrada no streaming está programada para as proximidades do Natal. Esta estratégia usada pela gigante norte-americana tem relação com o ambicioso plano de levar o filme ao Oscar, notadamente nas categorias Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Roteiro e Melhor Ator Principal e Coadjuvante. Não por menos, assim como ocorreu com Roma (2018), há grandes chances de o longa levar, no mínimo, uma estatueta. Isso porque, num outro grande festival, o Globo de Ouro (um termômetro para o Oscar), Dois Papas segue com várias indicações.

Como o próprio título sintetiza, Dois Papas relata os bastidores da emblemática transição de poder no seio da Igreja Católica, que após experimentar o rápido e controverso pontificado de Bento XVI, considerado conservador e extremamente preparado, do ponto de vista teológico, viu a Igreja sendo tomada por uma onda de escândalos no que diz respeito ao Banco do Vaticano e, também, em relação a crescente onda de denúncias de abusos sexuais por parte de sacerdotes e até de agentes da alta cúpula da Igreja, na Santa Sé. Além disso, com Bento, a Igreja deu uma guinada conservadora, em oposição ao Concílio Vaticano, cuja reforma proposta, em grande medida, sequer havia saído do papel.

O filme mostra a insatisfação do cardeal Bergoglio (Jonathan Pryce) com os rumos da Igreja, ao ponto de pedir para aposentar-se fora do prazo e, a partir disso, uma série de acontecimentos – ou eventos sincrônicos, na visão junguiana – aconteceram. O pedido de aposentadoria culmina na negativa de Bento XVI (Anthony Hopkins), que inicia um lento e dramático processo de aproximação com o argentino para, enfim, revelar seu inimaginável desejo de renunciar ao trono de São Pedro.

Fonte: Netflix

Toda a história já é suficientemente conhecida do público que se interessa pelo Catolicismo – seja este público praticante ou não –, mas alguns aspectos saltam aos olhos, notadamente pelo olhar junguiano. Pois bem, o longa reflete um momento de tensão da Igreja, que desde Nietzsche é acusada de negligenciar os aspectos sombrios – e naturais, do ponto de vista psíquico – da existência, tendo optado excessivamente pelo viés apolíneo (em alusão a Apolo, o deus grego da organização) e negligenciado a dimensão de Eros (associado sobretudo ao princípio do sentimento e do amor) e a ação dionisíaca (voltado para o caos). A “eleição” de satanás como um agente externo, e a opção por considerar Judas como um antagonista, e não uma figura necessária ao processo de ascensão do Cristo, são alguns exemplos deste percurso teológico (notadamente quando se fala de uma teologia para as massas).

Obviamente, numa sociedade patriarcal consolidada a partir da revolução da agricultura, ceder espaço ao caos e a indiferenciação, do ponto de vista de uma hiper identificação com os processos naturais (tendências e instintos), é algo primariamente rechaçado. No entanto, o excesso de Logos (razão) pode levar a uma institucionalização da frieza e do legalismo, justamente dois aspectos identificados, entre os cristãos primitivos, com as práticas farisaicas. E é neste ponto que o ainda cardeal Bergoglio, em conversa com Bento XVI, cita o próprio Papa ao dizer que a igreja, necessariamente, tem que unir Verdade com Amor, sob pena de a primeira se tornar insuportável.

Este é um momento do filme que marca a tônica central da obra, a saber, o profícuo embate entre as forças antagônicas que estão no seio da vida psicológica dos seres humanos e que, de quebra, também reverberam em instituições como a Igreja Católica. Na perspectiva da Psicologia Analítica de Carl Jung, o que ocorreu anteriormente à ascensão de Francisco ao trono de São Pedro foi um acirramento de visões opostas (unilaterais), forçadas a encontrarem um meio termo, uma saída nova, sob pena de agravar a “sangria” de fiéis, especialmente nos países ricos (durante o conclave, um cardeal disse a Bergoglio que as Igrejas europeias eram belíssimas, mas vazias). Do ponto de vista psicológico, a não observância desta emergência causa um mal estar insustentável que acaba por eclodir sob a forma de doenças.

Fonte: Netflix

Esta capacidade de o sujeito abandonar visões polarizadas e, a partir do confrontamento de ideias e de concepções de mundo, criar novas alternativas, narrativas e estruturas comportamentais, é fruto do que Jung chamou de Função Transcendente. Para tanto, é necessário reconhecer os aspectos sombrios da existência, rejeitando o recalque e a dissimulação, condições bem trabalhadas no filme, quando tanto Bento XVI quanto o cardeal Bergoglio se debruçaram sobre suas fraquezas e sobre episódios de vida nada abonadores para, numa escalada narrativa, superarem as visões limitantes e seguirem em frente.

Dois Papas também aborda um tema corriqueiro na Psicologia Analítica, que é quando a hiper identificação com uma Persona cria distúrbios e tentativas de compensações psíquicas, o que acaba dispendendo muita energia por parte do sujeito nestas circunstâncias. Isto fica particularmente claro quando Bento XVI diz ao ainda cardeal Bergoglio que não aguenta mais encenar como Papa, já que não acreditava que Deus conversasse mais com ele. A Persona, um complexo (conjunto de imagens cristalizadas, de teor afetivo) necessário para mediar as relações sociais do sujeito, quando num processo de identificação desproporcional (um exemplo é quando alguém assume uma função e acredita que ele próprio é a função pela qual foi designado), causa enorme sofrimento, porque tolhe a capacidade de o sujeito assimilar aspectos da Sombra, além de tornar empobrecida a vida desta pessoa, que passa a mediar suas relações com o mundo apenas a partir de uma única perspectiva, negligenciado – com um alto custo – outras instâncias e funções importantes da existência.

As conversas do cardeal Bergoglio – que depois se tornaria Papa Francisco – com o Papa Bento XVI (que foi alçado ao posto de Bispo Emérito com votos de silêncio) são um exemplo clássico tanto do que ocorria nas ágoras gregas, cujo resultado era a eclosão de formas elevadas de pensamento e que, por si sós, já continham uma função terapêutica, quanto o que ocorre ainda hoje em círculos filosóficos ou no setting terapêutico (a partir, principalmente, do olhar das chamadas psicologias profundas [que aceitam a existência do inconsciente]). A transformação – e não a concessão, como bem lembra tanto Bento XVI quanto Francisco – passa a ser fruto de um encontro autêntico, que envolve não apenas a escuta ativa, interessada, mas pontuações cirúrgicas – por parte do terapeuta, numa linguagem junguiana -, que levam o analisando a perceber suas contradições, comparar narrativas, criar novas estruturas de pensamento e, sobretudo, mergulhar em sua própria alma em busca de respostas que, muitas vezes, acredita estar fora dele.

Fonte: Netflix

Carl Jung defendeu que o encontro de duas pessoas, nas circunstâncias do filme e, também, na realidade terapêutica – acaba por transformar os dois, e não apenas o analisando, como se acreditava até o advento de Jung. Em outras palavras, o psiquiatra suíço defendia que num encontro terapêutico ou num embate sincero e produtivo, não é apenas o paciente que saía transformado, mas também o médico/terapeuta/psicólogo, em igual proporção. Isso foi revolucionário, pois apesar de o terapeuta ocupar um lugar de detentor do saber, já que se qualificara por anos, para tal – e ainda continuaria a fazer –, jamais poderia deixar de levar em consideração a percepção que o paciente tem de si próprio.

No filme, a questão acima é particularmente contemplada quando o diretor Fernando Meireles enfatiza com primazia a relação respeitosa – mas não menos conflitante – entre Bento e Bergoglio. Apesar das diferenças, eles se interessavam um pelo outro e, desta forma, mesmo nas discordâncias, entendiam os pontos de vista antagônicos. Esta abertura fez com que, ao final do encontro, uma nova realidade acontecesse, e ambos se transformaram, num típico exemplo da Função Transcendente como resultado. E para que isso ocorra, a fé não pode estar inabalável, pois se assim o tivesse estaríamos diante de uma unilateralidade, o que de longe não combina com a síntese necessária para a eclosão do novo. O longa demonstra muito bem que tanto o bispo de Roma quanto o portenho eram cientes do momento crucial e contraditório que experimentavam.

Fonte: Netflix

Este processo de voltar-se para si mesmo e, com o passar do tempo, agir e viver de acordo com o que lhe é de mais autêntico e singular é o que Jung dá o nome de Individuação (ser único, mesmo mergulhado na multidão). E é justamente isso o que ocorreu tanto com Bento XVI quanto com Francisco, cada qual à sua maneira. O primeiro ao ter a coragem de renunciar por reconhecer um erro de percurso e por atender a um chamado interno, e o segundo por defender um modus operandi que coaduna com sua forma de enxergar o mundo e a espiritualidade.

O percurso de Individuação é longo e doloroso, mas irreversível e gratificante para os que se propõem a sair da mesmice dos padrões repetitivos/coletivos e da tentadora necessidade de culpar terceiros ou o mundo por suas mazelas. Bento e Francisco, não por menos dois mártires da Igreja (já que, mesmo na renúncia como no caso de Bento, não pôde abrir mão completamente da responsabilidade pela qual teve que aderir [em alusão ao próprio Cristo, que mesmo tendo a possibilidade, não desceu da cruz]) são a prova viva de que é preciso coragem e despojamento para enfrentar com maestria os traçados da existência. Sobre isso, Jung diz que o sofrimento precisa ser superado, e o único meio de superá-lo é suportando-o.

Carl Jung também alertou, tendo por base estudos empíricos e uma vasta experiência clínica e pessoal, que não há despertar de consciência sem dor, e que “as pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para evitar enfrentar a sua própria alma”. Neste contexto, uns poucos estariam dispostos a se submeter a este processo. Fica claro, tanto no filme quanto nos relatos do cotidiano de Bento XVI e de Francisco, que eles se enquadram nesta perspectiva, que abraça a Individuação e se dispõe a pagar o alto preço por isso. Eles são, no final das contas, polaridades que se submetidas ao escrutínio da análise – e sem descartar nem o amor que a tudo acolhe, nem a razão discriminativa –, acabam por garantir possibilidades criativas para responder a algumas das mais conflitantes demandas existenciais.

Mas, não nos enganemos, caros leitores. Isso se dá, como escrevi no início do texto, tanto em nível institucional (como no caso da Igreja Católica), quanto principalmente no âmbito privado, pessoal. Esta batalha é evidente nas demandas que chegam diariamente à clínica. Ela é trágica, no sentido de que deve ser encarada com sinceridade e espírito de abertura, ciente de que as respostas polarizadas têm que ser abandonadas, para que haja uma abertura ao novo, ao criativo. Trata-se de um movimento especialmente difícil, como retrata o filme, porque a tendência é que se opte pelo caminho mais fácil, de negação das próprias contradições e de projeção destas nos outros, no mundo. Neste sentido, em que pese as opiniões em contrário, as trajetórias de Bento XVI e de Francisco são inspirações necessárias, num mundo incessantemente instado a negar a função restaurativa dos símbolos.

FICHA TÉCNICA

DOIS PAPAS

Título original: Two Popes
Direção: Fernando Meirelles
Elenco: Jonathan Pryce, Anthony Hopkins, Juan Gervasio Minujín, Sidney Cole, Lisandro Fiks; 
Ano: 2019
País: EUA
Gênero: Drama

REFERÊNCIAS:

EDINGER, Edward. Anatomia da Psique. São Paulo: Cultrix, 1990.

JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, Análise dos Sonhos, Transferência. Petrópolis: Vozes, 1990, vol. XVI/2.

_____. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1997b, vol. VII/2.

STEIN, Murray. Jung – O Mapa da alma. SP: Cutrix, 2000.

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