No furacão da COVID-19: ou agimos como o bambu ou lutamos contra o vento

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Feroz e veloz, o vírus atinge sem preconceitos ricos e pobres, fortes e fracos, crianças, jovens e adultos, desenvolvidos e emergentes, e diante da pandemia só consigo me inspirar em Eclesiastes.

Hoje é tempo de se recolher, orar e rezar sem se abraçar; tempo de poupar a saúde e de agradecer quem não a poupa por nós; tempo de prantear as perdas e agradecer as curas. Que todo ser humano coma e beba, e goze do bem de todo o seu trabalho. 

E se não houver trabalho? O desemprego me aterrorizou. Quando desembarquei em São Paulo em 1980, caía um dilúvio. Pensei: chuva floresce e aqui vencerei. Mas, o que minha imaginação vislumbrava, a realidade deletava. A primeira demissão veio porque recusei ser amante do chefe. Achou-me topetuda demais por ser pobre, ambiciosa e ainda recusar “melhorar” de vida. 

Fonte: encurtador.com.br/cuER7

Por anos, temi não poder pagar a vaga do pensionado. A fome não me desesperava, mas não ter aonde dormir me apavorava. Poderia voltar para a casa dos meus pais. Mas, a sensação seria de fracasso e como desapontar meu pai, o único que acreditou na minha “loucura” de sair de casa aos 17 anos para “vencer” na vida. Trouxe na bagagem seu conselho de ter Deus no coração para me guiar numa cidade repleta de perigos. 

Por sorte, amava diversões gratuitas, como ler e caminhar. Andava pela Avenida Paulista e pensava: “tantas janelinhas aí no alto, deve ter uma para mim”. Para a realidade não deletar meus vislumbres, entrava no Trianon, um parque no meio da Paulista, e lá adquiria uma força infinita vendo nossa finitude diante de árvores centenárias. 

O desemprego deixou cicatrizes, mas o enfrentei com Fé e, como o bambu, movia-me com o vento, jamais contra ele. Muitos me humilharam nessa jornada e outros muitos me estenderam a mão. Minha última demissão foi 21 anos atrás por telefone na crise cambial brasileira. 

Fonte: encurtador.com.br/nopxT

Neste furacão da COVID-19 continuo sendo o bambu, sem lutar contra o vento, mais forte e mais veloz que eu. Agradeço por trabalhar de casa, com salário e benefícios, e poder retribuir quem hoje precisa de mim para se manter na quarentena. O salário e o vale-transporte de minha colaboradora doméstica continuam integrais. Alguns amigos fizeram o mesmo com as diaristas. Entendemos que nestes tempos de isolamento social estar em casa não é férias. Tempo de repartir e esbanjar generosidade e compaixão. 

Quando a fúria do furacão passar será como num pós-guerra. Os regentes precisarão reconstruir os estragos para que os regidos continuem a tocar na orquestra.

Somos pó e ao pó retornaremos, mas entre as lágrimas da chegada e as da partida, existe a VIDA; e se há VIDA, há luta e gratidão, porque certamente suave é a luz, e agradável é aos olhos ver o sol.

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Até o Último Homem: as convicções pessoais levadas ao extremo

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Com seis indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator (Andrew Garfield), Melhor Diretor (Mel Gibson), Melhor Montagem, Melhor Mixagem de Som, Melhor Edição de Som.

Banner Série Oscar 2017

Indicado a seis estatuetas do Oscar 2017 – inclusive de Melhor Filme –, Até o Último Homem (Hacksaw Ridge, 2016) volta a projetar o polêmico Mel Gibson nos bastidores de Hollywood, depois de um longo período em que o ator/diretor vinha enfrentando uma série de denúncias que envolvem violência, alcoolismo e intolerância religiosa. Não por menos, Hacksaw Ridge retrata uma história real marcada por purgação, hiper-religiosidade e redenção.

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Esta combinação serviu de combustível para que os críticos de Gibson considerassem o longa como uma espécie de autodefesa do norte-americano. Outros vão além, ao considerar que Mel Gibson se projeta inconscientemente na obra, o que de longe não diminuiria os estragos públicos causados por ele nos últimos anos. Sem se deixar levar pela falácia ad homini, a obra, de fato, (re)colocou o diretor nos holofotes do mundo cinematográfico. De forma merecida, pois é de um detalhismo irretocável e de uma produção primorosa.

Até o Último Homem é baseado na história real do adventista Desmond Doss (interpretado por Andrew Garfield) que serviu no Exército Americano durante a Segunda Grande Guerra. O jovem rapaz de fortes convicções religiosas enfrenta uma verdadeira via-crúcis para atuar na Batalha, já que está numa verdadeira contramão em relação a seus companheiros. A começar pelo fato de se recusar a pegar em armas e a matar, no entanto “salvou sozinho algo entre 50 e 100 soldados feridos, deixados para trás no alto de um penhasco quando a companhia bateu em retirada”, durante o sangrento enfrentamento de Okinawa, no Japão.

Sobre esta narrativa central, o site da revista Veja classificou que 80% do filme retrata com fidedignidade a história de Desmond, embora a vida do adventista contenha detalhes ainda mais impressionantes, não revelados na produção.

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Desmond é um jovem altamente influenciado pela sombra maternal (para deleite dos freudianos e jungianos), por concepções religiosas arraigadas, e pela ausência de mediação saudável do pai. Além disso, de acordo com o crítico de cinema Marcelo Hessel, “esteticamente, Até o Último Homem é um filme de iluminação plena, como se não estivéssemos sob as sombras e as incertezas do século passado”.

Século conturbado

Até o Último Homem é um registro primoroso – em que pese a visão enviesada de Gibson – de um período histórico dramático, pelo olhar de um jovem atônito com as rápidas ambivalências impostas por uma modernidade que já dava sinais explícitos de fracasso em suas utopias. E, baseado em suas concepções pessoais e religiosas, Desmond Doss resiste bravamente. Como diriam Bauman e Karnal, em nome de uma racionalidade exacerbada, em nome de Deus (ou sem Deus como motivo), o período exacerba a sanha humana pela disputa. Dinâmica esta que chega a seu extremo na pós-modernidade, mesmo que sem as guerras sangrentas que marcaram o século anterior.

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De resto, psicologicamente e filosoficamente falando, o filme nos coloca diante de uma realidade aterradora, defendida um século atrás pelo espanhol Miguel Unamuno, para quem “toda consciência é consciência da morte”, já que os humanos estariam irremediavelmente condenados a ter consciência da privação da imortalidade e, assim, sempre tendo de lidar com o sofrimento. Vale ressaltar, no entanto, de que longe de isso ser um problema, para Unamuno trata-se de uma possibilidade de redenção, como parece pender Até o Último Homem.

De acordo com Unamuno – que encontra algum paralelo com a doutrina de Sidharta Gautama e com as teses de Victor Frankel – a consciência da morte e do sofrimento pode desvelar em nós um senso ético acurado, se abraçarmos com humildade estas duas condições tipicamente humanas. “Se nos afastarmos disso, estaremos nos afastando não apenas do que nos torna humanos, mas também de nossa própria consciência”, escreveu Unamuno.

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Até o Último Homem, desta forma, antes mesmo de ser uma tentativa de auto-redenção de Gibson (com ênfase no clichê crença-sofrimento-piedade), como prega parte da crítica, é uma obra de pegada ontológica-existencial. Neste ínterim, não há diferença entre viver e sofrer, algo inimaginável aos padrões aspirados na contemporaneidade. O que se faz com este sofrimento é o que diferencia os homens/mulheres, pois diante da possibilidade de enfraquecer o  sofrimento, valeria tudo.

Sob esta ótica, a vida de Desmond Doss teria sido pobre se fosse diferente. Parece difícil pensar sob esta perspectiva, mas ela pode abrir caminho para uma existência marcada por profundidade e importância, o que demonstra ser uma marca da vida de Desmond, que resistiu a um cenário de crueldade e trilhou sob a égide do autossacrifício, da modéstia e da generosidade. Estes não são, obviamente, os lemas pós-modernos. Mas lembra duma faceta humana que, mesmo fora de moda, pode eclodir nos mais inimagináveis cenários.

REFERÊNCIAS:

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011.

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011.

O Livro da Psicologia (Vários autores). São Paulo: Globo, 2013.

Crítica ao filme Até o Último Homem. Disponível em < https://omelete.uol.com.br/filmes/criticas/hacksaw-ridge/?key=121227 > . Acesso em: 23/02/2017.

A verdade é mais inacreditável que o filme. Disponível em < http://veja.abril.com.br/blog/e-tudo-historia/ate-o-ultimo-homem-a-verdade-e-mais-inacreditavel-que-o-filme/ > . Acesso em: 23/02/2017.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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ATÉ O ÚLTIMO HOMEM

Diretor: Mel Gibson
Elenco: Teresa Palmer , Sam Worthington , Vince Vaughn , Andrew Garfield
País: EUA
Ano: 2016
Classificação: 16

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Ensinando generosidade para crianças: você está fazendo isso certo?

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Foto: Via web

Em uma sociedade cada vez mais individualista e virtual, alguns valores tem se perdido. Um deles é a generosidade, gesto simples que exige acima de tudo boa vontade, talvez para um adulto seja mais difícil de ser ensinado, mas crianças por natureza estão bem suscetíveis a todo aprendizado oferecido.

Segundo uma pesquisa realizada pelo psicólogo Richard Weissbourd de Harvard e divulgada ano passado, 80% das crianças entrevistadas afirmavam que os pais estavam mais preocupados com o bom desempenho e a felicidades dos filhos (os entrevistados) do que se estavam sendo generosos.

Para o pesquisador, as crianças não nascem boas ou más, cabe aos pais educa-las pra que sejam respeitosas e se preocupem com sua comunidade em todos os estágios da vida. Richard alerta para o fato de nossa sociedade  afirmar o tempo todo que precisamos ser competitivos, alimentando desde cedo nos pequenos o desejo de ser o primeiro e melhor em tudo. Outra dificuldade apontada é o individualismo, onde cada vez mais fechados no seu contexto social, e na busca por uma vida mais digna as pessoas esquecem de se preocupar umas com as outras.

Apesar de nos encontrarmos em meio a uma crise moral sempre é possível mudar o quadro em estamos e para isso Weissbourd aponta cinco estratégias a serem utilizadas:

Foto: Via web

1 – Faça seu filho se preocupar com a necessidade do outro.

Crianças precisam aprender o equilíbrio entre as necessidades delas e dos outros, seja pra tocar a bola em jogo para um amigo ou para se manifestar contra o bullying que um amigo está sofrendo. Se certifique de que seu filho trata todos os colegas, mais novos ou mais velhos, com respeito. Pergunte na escola como ele se porta em grupo e seja exemplo de conduta em casa.

2 – Crie oportunidades para que seu filho seja generoso.

Crianças precisam praticar a gratidão e a contribuição com outros. Aprender a se importar é quase como aprender a tocar um instrumento. Não recompense seu filho por cada tarefa cumprida na casa. Pode parecer estanho, mas deixe que a participação dele se torne natural e o agradeça por colaborar com tudo ao final de todas as tarefas. Converse com seu filho sobre exemplos de pessoas que se importam em acontecimentos na TV, na comunidade, nos jornais e por aí vai. Faça a gratidão ser visível à ele no seu dia a dia.

3 – Expanda o círculo de preocupação do seu filho.

Vá para além dos amigos e família. Faça os perceberem como decisões deles podem afetar um grupo maior do que eles imaginam. Deixe-os perceber com quantas pessoas interagem em um dia e quão grato podem ser por elas. Seja respeitoso com todas elas e os ensine a serem também. Converse sobre algumas notícias de jornal para que eles entendam como decisões de alguns afetam muitos.

4 – Seja um modelo moral e um mentor.

Por vezes queremos que nossos filhos sejam coisas que não somos, e isso raramente funciona. Por isso, verifique seu comportamento com todos que te cercam. Praticar a honestidade com as crianças. Conversar sobre dilemas simples. Exemplo: Devo convidar para meu aniversário dois amigos meus que não se gostam?

5 – Oriente seus filhos a administrarem sentimentos destrutivos.

Sentimentos destrutivos como raiva, inveja e vergonha podem atrapalhar a tentativa de ser respeitoso ou generoso. Precisamos ensinar as crianças que está tudo ok se sentirem isso, mas que há algumas formas de lidar com isso que não são saudáveis. Ensine seu filho a inspirar pelo nariz e expirar pela boca contando até cinco, primeiro em momentos em que estiver calmo e depois passando para momentos em que estiver irritado. Após a respiração, ajude-o a pensar em formas de lidar com aquilo sem prejudicar nem a ele e nem a outros. Com o tempo ele fará isso sozinho.

Para a professora Luana Palaci, 22 anos, essas lições são exercitadas diariamente em sua rotina com a filha Anna Sofia de 3 anos.

“Eu converso muito com ela, mas criança aprende mesmo é no momento em que precisa exercer aquilo, como por exemplo quando ela ajuda outra criança ou divide o que é dela. Quando ela precisa exercer em casa é que eu intensifico o que ensinei: “Lembra que a mamãe te ensinou”.

Além do diálogo constante é preciso também ter o auxílio dos familiares e de quem mais estiver envolvido no cotidiano da criança. Segundo Luana, apesar da ausência do pai de Anna Sofia ela conta com a ajuda principalmente da mãe e da irmã que também estimulam a criança a ter o habito do respeito e generosidade.

“Ela é muito inteligente, quando conversamos ela me conta histórias das vezes que ajudou um amigo ou dividiu balinhas na escola e por aí vai. Minha mãe e irmã também trabalham muito com ela, as vezes até mais que eu (Risos)”

 

Foto: Via web

Quando questionada sobre as maiores dificuldades encontradas no processo de ensino Luana afirma que é Para muitos a maior dificuldade em difundir esses valores para as crianças é o fato de muitas crianças na escola de Anna Sofia terem uma criação que valoriza a individualidade colocando a perder horas de esforço diário em ensinar o que ela acredita ser certo e ao chegar na escola a criança ver o exemplo contrário nos colegas.

A maior dificuldade é quebrar sentimentos que ela já descobriu sozinha. O egoísmo nas crianças é muito intenso. Ensinar sobre generosidade e gentileza é difícil quando o egoísmo está tão aflorado. Aquela coisa do é meu, só meu. Só eu posso, só eu quero. E por ela ser filha única a coisa fica mais complicada. Na escola, quase tudo que ensino se quebra. Lá ela vê os outros fazendo o contrário do que eu ensino e repete, isso torna o meu trabalho com ela mais difícil. Aí entra o exemplo, ela me vê fazendo, então ela aprende. Isso tira um pouco a força que o exemplo dos amigos da escola dão pra ela.

Apesar das dificuldades ensinar crianças é mais fácil que ensinar adultos, portanto todo esforço para ensinar coisas boas a eles deve ser feito.

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Generosidade: uma perspectiva judaica

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Este texto surgiu a partir de um convite feito por um amigo que está desenvolvendo um projeto junto a estudantes de psicologia que visa aprofundar o conhecimento sobre o psiquismo humano, explorando não apenas os chamados sete pecados capitais, mas abordando também o que poderíamos chamar de “sete virtudes capitais”. Tal iniciativa é interessante, dentro outros aspectos, por destacar para os estudantes que não podemos estudar a psiché humana somente por meio daqueles aspectos que poderíamos chamar de problemáticos ou patológicos. O homem é também, mas está além, digamos assim, de seus transtornos mentais.

Outro aspecto interessante do convite está relacionado ao fato de ter solicitado para mim, um psiquiatra judeu, para escrever sobre a temática da generosidade. Interessante, pois seu oposto, a avareza, tem sido ao longo dos séculos acintosamente associada ao povo judeu. A associação entre avareza e os judeus está presente tanto nas “inocentes” piadas de salão como nos mais ácidos e ferinos discursos que buscaram e buscam legitimar o anti-semitismo, em suas diferentes manifestações ao longo da história.

Com isto posto, gostaria de explicitar que neste texto teremos a seguinte questão norteadora: Como poderíamos compreender a noção de generosidade a partir de uma perspectiva judaica? De antemão esclareço que a expressão “uma perspectiva” não quer denotar a ideia de que haveria uma e apenas uma perspectiva judaica, mas de fato, justamente o inverso. Possivelmente devem existir várias perspectivas (não esqueçamos aquela velha máxima, “onde há dois judeus há no mínimo três ideias”), e aqui explorarei uma delas, bem particular, a minha.

A estratégia metodológica que vou utilizar aqui se inspira, por mais estranho que isso possa parecer, na experiência que adquiri durante o trabalho de campo de minha tese de doutorado, quando morei cerca de oito meses em uma comunidade indígena denominada Lauaretê, localizada na fronteira entre o Brasil e a Colômbia, ocasião na qual eu estava estudando as relações entre juventude indígena, uso de álcool e violência. Em Lauaretê, a grande maioria das pessoas era pelo menos bilíngüe, falando português e tukano. Entretanto, de forma usual os indígenas ao falar português entremeavam seus discursos com palavras em tukano. Em muitas ocasiões, os indígenas conheciam termos correlatos em português, mas utilizam expressões em tukano. Manter termos em tukano parecia demarcar a diferença conceitual em relação a expressões similares em português, podendo ser entendida como uma estratégia para manter significados nativos mais refinados.

Quem observa judeus falando, nos mais diferentes idiomas, pode perceber, sem muitas dificuldades, a utilização recorrente de palavras em hebraico, como shalom. É claro que judeus americanos ou brasileiros conhecem as palavras peace ou paz. A utilização do shalom se deve não apenas pelo desejo de explicitar uma identidade coletiva, mas, sobretudo, porque shalom além destes sentidos tem outras significações, e a tradução faria perder um pouco, se não muito, da ideia que se queria expressar ao usar esta palavra no idioma nativo.

Devo confessar, não sem certo grau de mal estar, que meu domínio do hebraico talvez seja apenas um pouco melhor do que o meu ínfimo conhecimento do tukano. Tal como fiz em minha tese, tentarei explorar palavras-conceito e não fazer uma análise semântica mais aprofundada, exercício que declino em nome dos doutos conhecedores destas línguas.

Fazer uma transposição de conceitos não é um exercício fácil. Muitas vezes, para uma única palavra numa língua, precisaremos de várias em outra. Não sei dizer se haveria uma única palavra em hebraico que pudesse ser usada para traduzir a palavra generosidade. Aqui, tentarei fazer esta transposição (mais do que tradução) associando o termo generosidade a três expressões ou palavras-conceito em hebraico, bem como tentarei explicar para o leitor alguns aspectos mais sutis das mesmas, que entendo como centrais para compreensão de seu significado no universo judaico.

Uma primeira delas seria tsedakah. Muitas vezes esta palavra é traduzida de forma não muito adequada para o português como caridade. Dela se aproxima na medida em que está relacionada à ideia de doar algo a alguém que está necessitado. Mas dela se distancia, na medida em que se trata de uma obrigação/preceito religioso (mistvah). De modo simplificado, poderíamos dizer que uma pessoa que faz caridade é considerada uma pessoa boa, mas quem não faz, não se torna mal por isso. Já em relação a tsedakah, o judeu que não a pratica está sendo injusto e até mesmo ignorante. Simboliza este ponto de vista o fato de que toda vez que um judeu come algo ele deveria dizer uma benção mais ou menos assim: “Bendito seja tu Eterno nosso D-us reino do universo que criaste tal tipo de alimento”. Isto parte do entendimento de que tudo que há no mundo não é nosso, é de D-us. Se fomos aquinhoados com algo a mais devemos de algum modo partilhar. Não é a toa, que a palavra tsedakah compartilha o mesmo radical das palavras tsedeke(justo) e tsadik (sábio).

Assim, quem faz tsedakah não deve esperar nada, visto que está simplesmente cumprindo uma obrigação. Inclusive há uma tradição que uma das maiores tsedakot (plural de tsedakah) seria executar os cuidados funerais a partir da liturgia judaica para aquela pessoa que faleceu, pois o morto se foi desta vida e não poderá retribuir. Desta forma, tsedakah se associa a outra palavra-conceito, chessed, em geral traduzida por bondade, que é considerado um atributo divino. No universo judaico, quando se fala em chessed, logo vem à mente a figura do patriarca Abraham. A tradição ensina que Abraham mantinha as laterais de sua tenda sempre aberta no deserto, de modo que sempre poderia avistar viajantes no deserto, e neste caso poderia convidá-los para descansarem, beber e comer com ele. Inclusive quando ele fez sua própria circuncisão (em hebraico, brit milah, aliança da carne) aos 99 anos de idade, no seu, digamos assim, “pós-operatório imediato” ficou na sua tenda esperando viajantes. E não foi a toa, que neste dia recebeu viajantes na forma de homens, que seriam anjos, que dentre outras coisas lhe contaram que em breve sua idosa esposa, Sarah, iria lhe dar um filho.

Por outro lado, a tsedakah feita com chessed deve servir a um propósito. Conta uma anedota, que as vésperas do Iom Kipur (Dia do Perdão, dia em que, segundo a tradição, os homens são julgados por D-us) o rabino de uma sinagoga informou aos presentes que como os pecados deles eram muito grandes, eles precisariam fazer um tsedakah de um milhão de dólares. Dias depois o rabino disse: – “Consegui resolver metade dos nossos problemas”! Então alguém teria comentado: – “Então só precisamos fazer uma tsedakah de 500 mil?”. E o rabino respondeu: – “Não, eu já descobri para quem poderemos doar”! A ideia aqui implícita é que não é doar por doar, nem doar apenas porque se é (ou se quer ser) bom, mas para participar do tikum olam, algo como que poderia ser traduzido como concerto do universo. Para entendermos um pouco a intrínseca correlação que há entre tsedakah-chessed -tikum olam, penso que devemos recorrer a “exemplos” divinos. Por mais paradoxal que possa parecer, entendo que a expulsão do homem do paraíso seria um exemplo paradigmático desta interação.

A punição foi, antes de tudo, uma espécie de dádiva. Corrigir a desobediência do homem, um ato de doação da sabedoria divina, foi feito com chessed, na medida em que tirou o homem do paraíso e o colocou no nosso mundo imperfeito, dando a seres humanos a possibilidade de sermos parceiros de D-us no concerto/melhoramento deste mundo. Permanecendo para sempre no Paraíso, um lugar perfeito, onde nada precisava ser concertado, o homem não teria como participar do tikun olam. Para explicar esta questão, alguns fazem alusão a um diálogo que teria ocorrido entre um imperador e um sábio judeu. O imperador teria perguntado: – “O D-us de vocês é bom e sábio”? O judeu respondeu: – “Sim, claro”! E, continuou o imperador: – “Então ele criou um corpo humano perfeito. Então porque vocês judeus profanam esta obra, fazendo, a circuncisão”? Nisto o sábio teria respondido: – “Não, não! A questão é que você não entendeu. D-us é tão bom, tão perfeito e tão sábio, que nos fez com um pequeno defeito, para que nós, desde pequeninos, aprendamos que temos que participar junto com Ele do concerto do universo”!

Enfim, retornando a nossa pergunta norteadora. Penso que uma boa perspectiva judaica sobre generosidade seria aquela que fizesse uma articulação, mais ou menos assim, de certas palavras-conceito: doação sábia e justa (tsedakah), realizada com bondade “desinteressada” (chessed), com o propósito de participar do melhoramento/concerto do mundo (tikum olam).

Shabat Shalom!

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