Luto migratório – minha história de ruptura e a entrada de luz na rachadura

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Desde o início do semestre que tenho a intenção de escrever um relato de experiência, mas não conseguia definir exatamente o que escrever sobre essa minha intensa e interessante (“a meu ver”) trajetória de vida. Até que decidi compartilhar um pouco aqui sobre o processo de mudança (bem brusca diga-se de passagem) que foi morar fora do país por praticamente seis anos. 

A vontade de me aventurar mundão afora me acompanha desde bem nova. Sempre me percebi com esse espírito mais aventureiro, destemido, e enquanto eu cursava o curso de Turismo na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, me ocorreu um insight de trancar a faculdade e fazer a tal aventura tão sonhada. Meus planos eram para ficar um ano em algum país de língua inglesa e voltar e continuar a minha vida normalmente.

Fonte: Imagem no Pixabay

Só de escrever esses dois capítulos a emoção gerada em mim não é de se passar despercebida. Foi um momento muito intenso da minha vida, de um medo sem tamanho. Mas a vontade e a curiosidade eram maiores. E com as surpresas que a vida foi organizando pra mim, com a forma como as coisas foram se encaixando, eu fui parar em um dos países mais lindos do mundo… a Nova Zelândia. Naquela época ninguém nunca nem tinha ouvido falar se era de comer ou se era de passar no cabelo como diz minha estimada Professora Thaís Monteiro.

Fonte: Arquivo Pessoal

E lá fui eu, cheia de expectativa, sentimentos mistos de euforia, preocupação, medo. Tinha o mínimo do básico de inglês na bagagem, só aquele tantinho pra não passar fome como dizem as pessoas.  No meio de tudo isso sem mesmo me dar conta, estava acontecendo um processo de luto em mim, um sentimento enorme de perda, de conexões, da família, de tudo o que representava segurança, sem falar na questão da nossa língua materna, cultura e status social. Meu único amparo (e foi um enorme porto seguro pra mim), era meu namorado, que hoje é meu esposo, que decidiu fazer essa “loucura” comigo.

Acho importante entendermos aqui o conceito de luto mais abrangente, e como uma pessoa que sai do seu país para morar em outro passa por um processo que abala muito a sua estrutura psicológica e emocional. Luto é geralmente empregado para descrever a dor associada à morte de um ente querido, mas, na verdade, o luto ocorre cada vez que há uma perda de qualquer natureza. 

Trago uma citação de Mark Twain que representa bastante esse conceito mais amplo: “Nada que nos aflija pode ser chamado de pequeno: pelas leis eternas da proporção, a perda de uma boneca por uma criança e a perda de uma coroa por um rei são eventos do mesmo tamanho.” 

Fonte: Imagem no Freepik

O luto inclui inúmeras perdas, você pode sofrer por perda de bens (casa, móveis, roupas), perda de seu emprego, perda de sua identidade, de um relacionamento, perda de sua rotina, perda de um animal de estimação, perda de seus hobbies. A lista pode parecer infinita …

O psiquiatra catalão Joseba Achoteguy foi o primeiro a descrever melhor esta perda e o chamou de Luto Migratório (ou Síndrome de Ulisses, alusão ao mítico herói grego da Guerra de Troia). 

 Ele aponta sobre o sofrimento da pessoa que sai do seu país de origem e sofre do chamado “choque cultural”, experimenta uma enorme nostalgia e saudades do país, e acaba ficando só, longe dos seus familiares, dos seus amigos, vivendo numa cultura estranha, desenraizado de si mesmo e se deparando com uma realidade que lhe é hostil, bem diversa daquela que imaginou antes de deixar a sua terra natal (MENDES JÚNIOR, 2007).

É importante reconhecer quando você sofre de luto, e enxergá-lo como um processo de adaptação psicossocial, que de acordo com Bibeau et al. (1992), se desdobram em dois momentos durante a imigração: “o tempo da ruptura”, no qual se contrapõem as expectativas, as referências do imigrante sobre a realidade do país de acolhida, e o “o tempo da continuidade”, no qual, pouco a pouco, o imigrante vai construindo seu cotidiano e se integrando ao novo país.

Minha vida nunca mais poderia ser a mesma depois dessa mudança. Quando chegou perto de completar um ano (eu estava com 20 anos de idade) não me via voltando. Aquilo que eu tinha vislumbrado era maravilhoso demais pra voltar. Mesmo com grandes dificuldades de adaptação, depois do primeiro ano e depois de ter mudado de cidade três vezes, eu tinha começado a pegar o jeito da coisa, então decidimos ir ficando. O pior que me poderia acontecer era perder o vínculo com a Universidade, pois meu curso tinha ficado trancado, mas decidi que depois retornaria quando achasse que fosse a hora e buscaria refazer este vínculo. 

Quando estava planejando esta viagem, a ideia era fazer um curso de inglês lá, trabalhar de babá ou garçonete, e essa imagem lindinha que temos (ou eu tinha) de pessoas que vão fazer um intercâmbio fora do país era simplesmente uma grande noção inocente. 

Os cursos de inglês eram caros demais, e babá e garçonete eram trabalhos que praticamente só os próprios neozelandeses ou estrangeiros com inglês bem avançado conseguiam. Eu fico rindo comigo mesma aqui enquanto escrevo, de imaginar minha inocência e como a versão foi bem diferente. 

Trabalhei como faxineira, em colheita de kiwi, em fábrica que preparava a exportação do kiwi, e o auge do primeiro ano foi de empacotadora em um supermercado. Mas o inglês estava fluindo, demais inclusive. Depois desse primeiro ano as oportunidades foram incríveis… fui melhorando, aprendendo, convivendo com pessoas maravilhosas do mundo inteiro, eu estava como uma esponja, absorvendo, minha cabeça já tinha mudado completamente.  E depois de um tempo e com o idioma já bem melhor estabelecido, e ganhando bem, trabalhei como vendedora, supervisora, e no último ano me tornei gerente de uma loja que vendia móveis e artigos de design de interiores. Morávamos literalmente no paraíso, e o mais incrível é como as pessoas em um país desenvolvido têm uma qualidade de vida tão boa, independente da sua situação financeira. Existe muito pouca desigualdade. Pra você ter um carro bom, morar numa casa boa, viajar, você pode trabalhar de qualquer coisa. É maravilhoso!

Fonte: Arquivo Pessoal

Porém, durante estes seis anos, a angústia da volta ao lar me acompanhou diariamente. Você vai sentindo um abismo emocional tão imenso, que a distância física parece pequena. O sentimento de pertencimento das suas raízes te chama. Para algumas pessoas pode não ser assim, mas estar mais perto dos “seus”, se relacionar com pessoas com a mesma cultura, que falam a mesma língua que você, que têm valores parecidos, que com todos os defeitos que o nosso país têm ele é a nossa pátria, é algo até difícil de explicar.

Nas datas comemorativas, como natal e ano novo, ficava muito nítido isso ao meu redor. Como moram muitos imigrantes lá, dava pra perceber nas pessoas conhecidas que o sofrimento de estar longe dos seus amados era potencializado nesses dias. 

Ainda hoje quando conto um pouco dessa trajetória, as pessoas perguntam o porquê de voltar, porque realmente motivos pra ficar não faltavam. Dentro dos seis anos vim somente uma vez visitar, e meus pais foram uma vez pra lá. Viajamos pela ilha sul inteira, e eles ficaram tão maravilhados com o que viram e experimentaram lá que até se conformaram com a possibilidade de minha estadia ser mesmo permanente naquela terra maravilhosa do “Senhor dos Anéis”. 

Fonte: Imagem no Freepik

Finalmente criamos a “tal da coragem” pra voltar, agora revivendo novamente as angústias e os medos… os colegas brasileiros falavam: “um ano no máximo é o prazo pra vocês estarem de volta aqui”, porque o Brasil isso, o Brasil aquilo…sim, realmente, existem muitas justificativas e é uma decisão bem difícil tanto pra quem vai quanto pra quem fica… ônus e bônus. 

Mas o Brasil é a nossa pátria. Se readaptar foi sem dúvida muito mais fácil do que a primeira experiência, mas ainda assim bem desafiadora. Essa pulguinha atrás da orelha, essa vontade de explorar esse mundo de meu Deus não acabou ainda dentro de mim… mas ela está aqui, contida, suprimida por outros lindos projetos de vida. Quem sabe essa foi a primeira e última vez, ou não, mas por enquanto deixo aqui um pedacinho de mim pra quem se interessar em ler, de uma faceta dessa história, da minha experiência de ruptura brusca com o que me era confortável, e um pouquinho deste processo. 

Sou muito grata a todas as vivências experimentadas naquele país tão lindo, que me permitiu evoluir tanto como pessoa! Eu vivi o meu luto, ressignifiquei ele, e superei.

Fonte: Arquivo Pessoal

Para definir o que seria então este processo de um luto saudável, recorro aqui ao trabalho do renomado psicólogo John Bowlby.

O luto saudável é primeiro aceitar a mudança e, portanto, considerar que voltar atrás não é uma opção. Em segundo lugar, é fazer mudanças apropriadas em seu mundo interior e encontrar um novo equilíbrio. Como resultado, você pode distinguir quatro tarefas no processo de luto (adaptado dos estudos do professor William Worden):

– Aceitar a realidade da perda;

– Trabalhar com a dor da tristeza;

– Ajustar-se ao novo ambiente após a perda;

– “Integrar” emocionalmente a perda dentro de você – dando-lhe um pequeno lugar no seu coração – e reinvestindo esta energia em outras atividades.

Segundo Anne Gillme, terapeuta que trabalha na Austrália com superação de desafios de pessoas que vão morar fora de seu país de origem, cada processo de luto é único. E não existe um período padrão de luto. Ainda mais porque a mudança de país envolve dois tipos de perdas: perda definitiva e perda ambígua. Ambos produzem efeitos diferentes.

Uma perda definitiva é uma perda evidente, como vender sua casa ou desistir de seu emprego, e que embora não haja dúvida de que tal perda pode ser extremamente dolorosa, há um encerramento.

Uma perda ambígua por outro lado, é caracterizada por uma ausência física e uma presença psicológica ou vice-versa.

Deixar seus pais para trás, por exemplo, é um exemplo típico de perda ambígua. Você perde a proximidade da relação (refeições juntas, encontro diário, festas de aniversário). Você não tem mais a presença física. Por outro lado, você mantém seus pais em sua mente. Eles estão sempre psicologicamente presentes.

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Pauline Boss, que estuda a perda ambígua há mais de três décadas, argumenta que a perda ambígua é o tipo mais estressante de perda porque não há fechamento. A ambigüidade gera uma mistura de emoções, muitas vezes opostas como amor e ódio, esperança e desespero.

Quem já passou por isso pode entender perfeitamente o que escrevo. E para quem ainda não, mas tem vontade de experimentar, só tenho a dizer que é uma experiência muito enriquecedora de autoconhecimento, de se desligar da sua zona de conforto e procurar estabelecer sua identidade com mais espaço. Vejo que para nós brasileiros isso parece uma tarefa mais difícil. Por sermos latinos, temos uma proximidade absurda com as nossas famílias, (em alguns casos, essa proximidade é até tóxica), e este emaranhamento nos arranjos familiares não encoraja os jovens a sairem do ninho, e os pais vão repetindo o ciclo de buscarem que os seus filhos estejam bem próximos, e que de preferência, mesmo depois de adultos e suas famílias formadas ainda possam exercer muita autoridade em suas decisões. Fico pensando no coração dos meus pais, que tiveram que experimentar essa angústia de um passarinho voar do ninho pra bem longe e gritar sua independência tão cedo. Em outras culturas isso é muito mais comum.

E no final o que acontece é sentir tanta saudade do país de origem a ponto de regressar e, uma vez de volta, começar a sentir a mesma saudade do país que se deixou, e isso pode gerar uma sensação de profunda confusão e um intenso sofrimento. 

Sentir-se ambivalente, ressaltando as maravilhas de um lugar quando se está em outro e vice-versa é parte do processo. E o que é a saudade senão ambivalência, “ruim” e “boa” ao mesmo tempo, uma mistura dos sentimentos de perda, falta, distância e amor.

O processo de morar fora é, talvez, uma das mudanças mais drásticas que uma pessoa pode experimentar. Como qualquer outra mudança, contempla riscos e benefícios, perdas e ganhos.

Integrar as perdas, aprender a viver com e apesar delas, requer um processo de coragem e uma boa elaboração de reorganização interna, que pode resultar em um belo desfecho. Finalizo com um pedacinho da música de Leonard Cohen chamada Anthem que diz: “There is a crack in everything, that´s how the light gets in”.

REFERÊNCIAS:

APEGO e perda ambígua: apontamentos para uma discussão, Pepsic, 2006, disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482006000200008&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 15/11/2021.

TRAD, L.A.B. Processo Migratório e Saúde Mental: Rupturas e Continuidade na vida Cotidiana. Revista Saúde Coletiva, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/gM7w4XGyhPfktmY5VLZsZwj/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 15/11/2021.

THE chocking truth about changing country, Globiana, disponível em: https://globiana.com/the-shocking-truth-about-changing-country-expatriate-connection/. Acesso em 09/11/2021.

SILVA, J.C.L. D; PADILHA, N.S.; LAMY. M. A “Síndrome de Ulisses” e a Medicalização dos Movimentos Migratórios, Furb – Revista Jurídica. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/Downloads/7927-1-34594-1-10-20201221.pdf. Acesso em 15/11/2021.

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Maisa Carvalho: os impactos da Pandemia do Covid-19 e a atuação do Consultório na Rua de Palmas-TO

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“É preciso dar visibilidade ao nosso trabalho, porque isso é importante, não só o fazer, mas também é necessário visibilidade” – Maisa Carvalho Moreira

A pandemia do novo Coronavírus gerou impacto em todos os contextos vivenciados pelos brasileiros, inclusive os que estão em situação de rua, alguns órgãos públicos de alguns municípios levantaram medidas para evitar uma possível infecção nas pessoas que permaneceram nas ruas, sem uma forma eficaz de isolamento.

Nesta entrevista para o (En)Cena, a Assistente Social Maisa Carvalho nos traz um conteúdo muito enriquecedor acerca do trabalho com as pessoas em situação de rua e os desafios para atuar nesse contexto na pandemia. Ela é graduada pela Universidade Federal do Tocantins – UFT (2016), especialista em Gestão de Redes de Atenção à Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ (2018), especialista em Saúde Mental pelo Centro Universitário Luterano de Palmas e Fundação Escola de Saúde Pública, através do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental – ULBRA/FESP (2020), Responsável Técnica do Programa Piloto de Justiça Terapêutica do Tribunal de Justiça do Tocantins, atualmente atua na equipe de saúde Consultório na Rua e é pesquisadora nas temáticas voltadas para Saúde e Direitos Humanos: saúde mental, população em situação de rua e feminização de substâncias psicoativas.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En)Cena: Durante a pandemia como está sendo trabalhar com essas pessoas? Houve um isolamento inicial no Brasil inteiro, alguns municípios adotaram algumas estratégias para também evitar essa contaminação na população em situação de rua, como está sendo isso em Palmas?

A equipe faz orientações quanto as formas de prevenção além de articular com a rede quando surgem casos positivos para acompanhamento, além de haver propostas de um local de acolhimento que não sei exatamente como está o andamento.

Atualmente o atendimento continua in loco, com administração de medicação via oral ou intravenosa, avaliações clinicas pelo enfermeiro, atividades de promoção e prevenção em saúde, discussões de casos, articulações, visitas, acompanhamento em consultas, pedido de exames, etc. A mudança, porém é que não conseguimos estar transportando todos os pacientes devido ao risco mesmo, tanto para a gente como para eles. Não deixamos de transportar, no entanto se o paciente tem uma certa autonomia, se tiver passe livre, a gente prioriza encontrar no local do atendimento, mas sempre tem aqueles necessitam de um apoio maior.

Fazemos distribuição de máscaras de tecido seguido de orientações a respeito da transmissão e os serviços que devem buscar.

Basicamente o nosso trabalho em si ele não muda muito, muda nos serviços que são da saúde ou por serviços da rede intersetorial que atendem por agendamento, pois estão trabalhando com o número reduzido de profissionais em decorrência da Covid19, o que automaticamente também os números de pessoas atendidas reduzem. Aí dentro desse contexto a gente se adapta, liga, discute o caso, faz agendamento. Mas, não parou o funcionamento, não teve nenhum momento que esse atendimento parou devido a pandemia.

Fonte: encurtador.com.br/hwQ16

(En)Cena: Uma questão na qual muito tem se falado é sobre as pessoas em situação de rua que são imigrantes, como os venezuelanos; tem se visto muito nos sinais de trânsito da cidade, eles ficam com placas, geralmente levam crianças etc. Como funciona o atendimento a essas pessoas? O que se sabe sobre essas pessoas nesse momento em Palmas?

Os venezuelanos a princípio eram um público bem flutuante, eles iam e vinham. Não só em Palmas, mas no Brasil inteiro teve essa onda de imigração, e várias cidades receberam, vários estados receberam um número muito grande de pessoas da Venezuela. Aqui em Palmas agora tem um grupo fixo que já está morando, possivelmente vão continuar, próximo de 30 pessoas mais ou menos. Elas são assistidas também, pelo Consultório na Rua, pelos serviços de atenção básica, unidade de saúde… de que forma? Vacinação, consultas, disponibilização de insumos de higiene, máscara, álcool, sabonetes, pasta de dente. O acompanhamento depende da demanda, por exemplo, quando realizamos as visitas, a enfermagem observa as demandas de saúde e a partir daí nós articulamos com as unidades de saúde mais próximas. Uma vez, tinha uma criança com um furúnculo e nós levamos o caso para a unidade de saúde para realizarem uma visita com médico e/ou agendar consulta.

Eles estão ficando numa residência com propostas de ir para um outro local ofertado pelo município. Eles estão sendo assistidos pela saúde. Já foi realizado cadastramento de todos eles na unidade de saúde, todos têm cartão SUS. Todos eles têm CPF que foi um apoio do CREAS. Quanto as ações assistências não estou por dentro, mas quanto a saúde, não estão desassistidos.

 Quanto a questão de eles estarem nos semáforos com as crianças, pensa comigo, se você tivesse um filho e tivesse na situação deles, e fosse para a rua pedir algum dinheiro ou qualquer ajuda, sem ter onde deixá-los, o que você faria? Levaria com você né? Embora seja chocante ver essas pessoas com criança na rua, em pontos às vezes até em risco de atropelamento, que é uma realidade, é uma situação complicada. Inclusive, já discutimos isso em equipe sobre possíveis intervenções. A oferta de atendimento em saúde está acontecendo, quando eles precisam de qualquer demanda de saúde a gente pergunta, articula, fazemos o que está ao nosso alcance.

Fonte: encurtador.com.br/ryAVY

(En)Cena: Na equipe que trabalha com o consultório na rua não tem um Psicólogo.  Como é feito se eles precisam de um atendimento psicológico? A equipe já tem um preparo maior para as situações ali na hora e depois é feito encaminhamento? Como funciona?

Atendimento psicológico acontece nos demais serviços da rede, se for um caso mais leve o encaminhamento é para o NASF-AB, caso seja um caso mais complexo articulamos com os CAPS, visto que a equipe não dispõe de psicólogo. Há um acompanhamento mais de perto, quando os residentes passam pelo consultório na rua, pois consegue dar continuidade, visto que geralmente eles passam em torno de 4 à 8 meses, depende de como está a organização do Programa no momento. Mas é um profissional, que somaria muito se tivesse compondo a equipe, é uma categoria, que faz falta no nosso serviço.

(En) Cena: É um trabalho difícil nesse sentido, de articular muito, há um gasto de muita energia e tempo?

É desafiador, além de competência, o profissional precisa ter perfil

 (En) Cena: Poderia nos relatar alguma experiência, ou mais de uma, que tenha gerado um grande impacto em você, durante a atuação nesse campo?

Teve uma situação em que eu abordei um paciente que ele tem formação superior e ele está em situação de rua há muitos anos, e aí a gente o conheceu. Observei que ele tinha a escrita muito boa, conversava bem, muito esclarecido, um discurso muito bem organizado. Daí, conversando com ele em um acolhimento, tentando entender um pouco do histórico dele, perguntei porque que ele não voltava para casa, qual que era o motivo dele não retornar, talvez tentar reestabelecer essa vida que ele tinha. Ele olhou para mim e falou que ele tinha perdido a dignidade, se eu sabia o que que era perder a dignidade. Quando você perde a dignidade é algo que você não consegue acabar como se fosse a fome, “eu estou com fome, comi e voltou” e isso me marcou muito porque eu nunca tinha parado para pensar nisso. Às vezes, tem um problema você olha e você resolve, tipo, se eu estou desempregada eu vou trabalhar, é como se meu problema tivesse resolvido, eu estou doente eu vou cuidar da saúde, vou resolver. Mas quando eu me olho enquanto ser humano e vejo que eu perdi minha dignidade, por isso eu não consigo alçar voos maiores, isso é muito impactante. Esse paciente está em situação de rua por uma questão familiar. Ele não conseguiu se reestabelecer, está na rua e faz uso abusivo de álcool. Mesmo tendo formação, mesmo tendo todo um contexto, poderia estar em uma situação melhor do que está hoje. Mas que por diversos fatores, e segundo ele a da perda da dignidade, não se enxergava mais como um ser humano, isso é uma coisa que me marcou e eu segurei para não chorar, de verdade!

Fonte: encurtador.com.br/jvzN7

(En) Cena: Se você pudesse deixar algum recado, para profissionais e futuros profissionais, ou para a população em si qual seria?

Primeiramente eu convido os estudantes e acadêmicos, quem estiver finalizando para fazer a residência, em saúde mental especificamente, para passar pela gente, pelo Consultório na Rua, porquê é somente esse programa que permite viver essa experiência. A residência me abriu muito a mente, me permitiu me despir de muitos conceitos e muitos pré-conceitos. Quando você lida com outro em sofrimento psíquico, porque o uso de álcool e outras drogas traz também sofrimento psíquico… foi quando eu me tornei uma pessoa melhor de verdade. Não existe uma regra, mas para mim foi uma experiência muito positiva. Então, a primeira coisa é isso, faça uma residência, façam para saúde mental, conheçam os CAPS, conheçam o Consultório na Rua que vocês vão ter experiências ótimas, acredito que vão crescer muito profissionalmente e humanamente também.

Para os profissionais eu diria que a gente tem que ter muita empatia para trabalhar com os públicos vulneráveis. Eu trabalho com os moradores de rua, mas tem vários públicos vulneráveis. Acredito que quando a gente trabalha com eles precisamos nos despir, para entrar no mundo do outro. A saúde é isso, é tentar não medir a vida do outro com a minha régua, essa régua eu utilizo para medir a minha vida, nunca a do outro. Isso é a primeira coisa que a gente tem que pensar e colocar em prática, falar isso me emociona.

É preciso ter força, ter garra, porque não é fácil, o trabalho no SUS é lindo, mas ele é muito desafiador. A gente tem que ter muita força de vontade, precisa ter muita garra pra poder enfrentar e tentar desvendar e superar os desafios e os obstáculos que nos apresentam. Eu procuro sempre fazer isso em todos os locais que eu passo, tentar superar esses obstáculos. Não utilizar deles para estacionar, “não tem como, eu não vou fazer isso porque é muito burocrático”. Vamos superar, vamos tentar dar acesso. Porque se eu burocratizo aqui o meu trabalho, eu vou estar dificultando a vida de alguém, estar dificultando para que essa pessoa tenha uma qualidade de vida, tenha mais saúde, tenha mais acesso. É algo que é simples para a gente mas o pouco que fazemos faz muita diferença na vida do outro que a gente está atendendo ali.

Em relação à população e os serviços é preciso dar visibilidade ao nosso trabalho, porque isso é importante, não só o fazer, mas também é necessária visibilidade. Isso é importante tanto para as articulações em rede, quanto para o conhecimento do público que necessita do nosso trabalho.

REFERÊNCIA

SILVA, Tatiana Dias; NATALINO, Marco Antonio Carvalho; PINHEIRO, Marina Brito. População em situação de rua em tempos de pandemia: um levantamento de medidas municipais emergenciais. 2020.

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