A real história por trás de Mogli: Entre Dois Mundos

Compartilhe este conteúdo:

Essa é a hora do orgulho e do poder, garras, caninos, presas.
Ah, ouça o chamado! – Boa caçada a todos
Que respeitam a Lei da Selva!

Canção noturna da Selva [1]

O filme “Mogli: Entre Dois Mundos” (2018) do diretor Andy Serkis, produzido pela Warner Bros., causou curiosidade nos espectadores no final de 2018 por não ter sido lançado nos cinemas, mas diretamente na plataforma streaming Netflix. O motivo dessa mudança de planos da produtora foi o temor pela comparação com o longa live-action “Mogli – O Menino Lobo”, produzido pela Disney e lançado em 2016. Conhecidos como twin films [2], ou filmes gêmeos, películas com roteiros muitos parecidos que saem na mesma época costumam competir pelo público e geram muitas comparações, normalmente deixando um dos dois prejudicado.

Entretanto, “Mogli: Entre Dois Mundos” torna-se interessante por adaptar fielmente os contos originais do escritor Rudyard Kipling publicados no ano de 1894 em The Jungle Book (O Livro da Selva). Tais contos serviram de inspiração para a conhecida animação da Disney de 1967 que difundiu a versão de Mogli para o público infantil como conhecemos.

Fonte: https://bit.ly/2T16Oh4

O Livro da Selva

The Jungle Book foi originalmente lançado como uma coleção de sete contos escritos por Rudyard Kipling. No Brasil, foi intitulado de “O Livro da Jângal” em uma tradução de Monteiro Lobato. Assim como nos filmes, os contos retratam a história de Mowgli um bebê que é adotado por lobos após seus pais serem assassinados por um tigre chamado Shere Khan. Aos cuidados dos lobos da floresta, incluindo um urso chamado Balu, e uma pantera chamada de Bagheera, Mogli se torna um rapaz e deve retornar a aldeia dos humanos para salvar sua família animal após ameaças de Shere Khan.

O Livro da Selva. Fonte: https://bit.ly/2VUTQ6B

Rudyard Kipling, o autor do livro, nasceu em Bombaim, na chamada Índia britânica. Filho de pais anglo-indianos, Rudyard usou a Índia e sua cultura como cenário para jornada de Mogli, apesar de ter passado a maior parte do tempo no exterior.  Mas a inspiração de Kipling para as aventuras de um menino lobo não se deram à toa, uma vez que as florestas indianas foram também cenário de vários relatos reais sobre crianças que teriam sobrevivido com a ajuda de animais.

Menino lobo: verdade ou lenda?

Não é difícil encontrar lendas sobre crianças adotadas por animais em diferentes culturas.  A mais famosa delas é talvez a dos irmãos Rômulo e Remo. Segundo a mitologia romana, os filhos recém nascidos do deus Marte teriam sido arremessados para a morte em um rio por um odioso e tirano rei. Porém, foram encontrados à margem por uma loba, que os amamentou até serem encontrados. Um dos irmãos, Rômulo, seria futuramente o fundador da cidade de Roma e teria se tornado seu primeiro rei [3].

A colonização dos ingleses na Índia contribuiu para o registro de vários casos de crianças encontradas na floresta na companhia de lobos durante todo o século XIX. Considerando as condições difíceis de vida na Índia, que levavam os pais a abandonar bebês indesejados na floresta, bem como a proximidade entre o mundo animal e dos humanos presente na cultura Hindu, não é de se surpreender que o país tenha produzido um grande parcela de meninos-lobo. Em seu retorno à sociedade, os “quadrúpedes” como foram descritos, se recusavam a usar roupas e só comiam carne crua. Alguns até beberiam água de forma similar a cachorros e não se importavam em dividir uma carcaça com outros animais [3].

Talvez um dos casos mais famosos de menino-lobo seja o de Dina Sanichar, encontrado próximo a Mynepuri, Índia. O menino encontrado na companhia de lobos e resgatado por caçadores, foi levado a um orfanato de monges chamado Sekandra, onde lhe deram o nome de Dina. Ao observar seus comportamentos, descobriram que o menino, além de se locomover com os pés e mãos no chão, roia ossos para afiar os dentes e se recusava a usar roupas e comer alimentos cozidos. Após vinte anos na companhia de humanos, Dina somente teria aprendido a andar sob as pernas, fumar um cachimbo que era aceso por outras pessoas, usar roupas e comer com seu próprio prato e copo [3].

Dina Sanichar. Fonte: https://bit.ly/2FwFQLj

Tais relatos sobre crianças que sobreviveram com ajuda de animais são usadas como objeto de estudo sobre o comportamento humano, levantando dúvidas sobre o quanto o comportamento humano é inato ou aprendido, bem como sobre a existência de um período crítico para o desenvolvimento e/ou aquisição de determinados comportamentos, como a habilidade da fala, por exemplo.

O filme

Como uma adaptação do livro de Rudyard Kipling, “Mogli: Entre Dois Mundos” representa com respeito à influência do autor pela cultura indiana, incluindo a escalação de Rohan Chand, descendente de indianos, para o papel principal. A película também adapta com êxito os aspectos mais sombrios da trama, sem a preocupação de dar tons menos adultos à trama, o que faz muitos filmes escorregarem no roteiro na tentativa de diminuir a faixa etária indicativa, vendendo mais ingressos de cinema.

Fonte: https://bit.ly/2CuJgKv

Ainda que a adaptação produzida pela Disney em 2016 tenha ganhado um tom mais sério, principalmente nos vilões, ela não se propõe a ser fiel aos contos de Mowgli, mas sim a ser uma versão mais sombria de sua própria animação.

Eu uso o necessário
Somente o necessário
O extraordinário é demais
Eu digo necessário
Somente o necessário
Por isso é que essa vida eu vivo em paz

(Letra de “Somente o Necessário”, Mogli: O Menino Lobo, 1967)

“Mogli: Entre Dois Mundos” apesar de ter partes do roteiro similares aos outros filmes, traz elementos desconhecidos aos espectadores, com uma versão menos infantilizada e mais violenta de Mogli, tornando mais equilibrada e plausível a luta contra os vilões. O filme consegue trazer boas reviravoltas e também os momentos de ternura característicos do personagem sem perder a originalidade, algo que certamente não era esperado. Agradando ou não a quem assiste a nova versão do menino-lobo, com certeza não se trata de mais do mesmo.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

MOGLI: ENTRE DOIS MUNDOS

Titulo Original: Mowgli: Legend Of The Jungle
Direção: 
Andy Serkis
 Elenco: Rohan Chand, Andy Serkis, Christian Bale, Benedict Cumberbatch;
País: Estados Unidos
Ano: 2018
Gênero:
Aventura

REFERÊNCIAS:

[1] KIPLING, Rudyard. Os livros da Selva: contos de Mowgli e outras histórias. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. Cap. 1. p. 25-36. Disponível em: <https://zahar.com.br/sites/default/files/arquivos/trecho_-_os_livros_da_selva.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2019.

[2] 10 FILMES COM ROTEIROS PARECIDOS!. [s.i.]: Pipocando, 2016. (12 min.), son., color. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pmVm9IyXGxM>. Acesso em: 15 jan. 2019.

[3] MALSON, Lucien. Wolf children. NYU Press, 1972. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=ZtZWCgAAQBAJ&lpg=PA45&ots=PFhOb8R2xf&dq=Dina%20Sanichar&hl=ptBR&pg=PA45#v=onepage&q=Dina%20Sanichar&f=false>. Acesso em: 15 jan. 2019.

Compartilhe este conteúdo:
nascidos em bordeis

Nascidos em Bordéis: a fotografia como um antídoto à invisibilidade social

Compartilhe este conteúdo:

Lembre-se moço,
você que invade a vida dos outros,
burla o tempo
e retém momentos que não são seus;
De seus compromissos com sua época,
e sua fraca verdade.

Lembre-se moço
dos que nos legaram a caixa mágica,
aparente brinquedo que aprisiona a luz,
e produz inquietantes resíduos,
reveladoras frestas de indesejadas faces,
insuspeitas grandezas,
dimensões nem sonhadas,
e, procurem honrá-las.

Luis Humberto

Foto: Avijit Bucket

Resultado de minhas andanças fotográficas compreendi que “olhar” implica em reflexão e que “não importam as respostas, apenas as perguntas”. Estou certa de que devemos questionar tudo e sempre. Parte desse pensamento, valida a minha incessante busca nessa aventura pelo conhecimento no território da fotografia. Talvez por isso, o documentário “Nascidos em Bordéis” tenha tido em mim um impacto muito forte, de modo que me fez repensar as minhas práticas como fotógrafa, psicóloga, professora, pesquisadora.

Num jogo de luz e sombra, as imagens iniciais são fortes e de uma realidade que clama por socorro. Em tons avermelhados, numa concepção sígnica, a iluminação aparece como um dos signos que caracterizam “Nascidos”, além de estabelecer uma relação direta ao nome do Distrito “Luz Vermelha”. Percebi que não seria fácil adentrar nesse novo mundo que me foi apresentado. A narrativa é um convite a reflexão sobre o impacto da fotografia na vida das pessoas e a conduta ética do fotógrafo ao documentar uma realidade. Até que ponto o fotógrafo tem o direito de invadir a vida dos outros?

Pergunta que anseia por respostas…

Zana Briski é fotógrafa e, após negociação com os proprietários dos bordéis e autoridades locais, vai a Calcutá – Índia para documentar o cotidiano do Distrito da Luz Vermelha. Ao vivenciar a realidade das mulheres que vivem do sexo, ela percebe que as crianças que ali vivem são marginalizadas e vítimas de preconceito. Estão à margem da sociedade e crescem esquecidas nos guetos da zona vermelha. A fotógrafa percebe que, sem perspectivas, só resta às meninas, a prostituição. E aos meninos trabalhar em subempregos. Diante dessa realidade, a fotógrafa decide que algo precisa ser feito.

As crianças que participaram do projeto, da esquerda para a direita: Puja, Suchitra, Kochi, Avijit, Tapasi, Gour, Manik e Shanti.

Foto: Zana Briski

Ao ganhar câmeras fotográficas, as crianças têm a oportunidade de aprender a  usar o equipamento e de perceber, cada uma a seu modo, uma nova história, novas perspectivas. Ao vivenciarem e documentarem o seu cotidiano por meio da fotografia.

E assim, as emoções se descortinam…

Foto: Zana Briski

As cenas das crianças em ação mostram que Briski dá as crianças muito mais que uma câmera fotográfica, dá a elas voz e esperança numa vida melhor.  É nítido perceber que tão importante quanto a produção das imagens, a exposição do resultado e as descobertas propiciadas pelos discursos elaborados, o simples ato da captura fotográfica propicia uma convivência extremamente agradável entre as crianças que dela participa. As saídas fotográficas propiciam momentos de interação, histórias e acontecimentos inusitados que reforçam laços do grupo. É belo de se ver a emoção das crianças ao conhecerem, sentirem, fotografarem o mar pela primeira vez.

Com Brisiki as crianças aprendem a ler as imagens. Suas vozes, até então silenciadas, começam a ecoar… “A foto é algo que posso olhar para o resto da vida”, “Quero expressar meus pensamentos”, “O que eu poderia ser? Se eu pudesse estudar teria um futuro melhor…”. Nesse ponto, validei o que eu já sabia: a fotografia é uma atividade fundamental para o contorno da identidade, seja para a autoafirmação, seja para o conhecimento. A possibilidade de se ter a própria imagem é um ato simbólico de apropriação do próprio ser. Propicia resgate nos quais se construirão a singularidade. A fotografia evoca sentimentos, lembranças, pensamentos e informações; resgata memórias e recupera percursos existenciais. Com a fotografia, o sujeito passa a existir para o outro e, num caminho inverso, o outro passa a existir para esse sujeito, num processo de olhar, fotografar e (re)olhar. Tal confirmação valida a experiência de cada sujeito em sua singularidade.

Foto: Suchitra

É imprevisível a implicação que essa suposta “apropriação do olhar” terá em crianças antes privadas de qualquer forma de poder, incluindo o poder referente a suas próprias vidas, a sua própria história. É certo que a fotografia, de alguma forma, recupera o poder do olhar e que, dessa maneira, propicia uma certa apropriação do mundo.

Diante dos desejos, antes sufocados, a fotógrafa percebe que munir essas crianças com aparelhos fotográficos não é suficiente. Era preciso dar além de esperança, condições de concretizar sonhos. E isso só viria por meio do estudo. Porém, seus esforços esbarra na incompreensão dos responsáveis pelas crianças e na burocracia das autoridades. Por meio dessa luta, há a descoberta de talentos que só puderam ser percebidos devido à intervenção da fotógrafa no Distrito da Luz Vermelha. O menino Avijit é um exemplo disso. Seu sensibilidade se materializa e seu olhar apurado aparecem em suas fotografias, o que leva a ser convidado para participar, em Amsterdã, de uma mostra internacional de fotografia.  Avijit retorna estimulado a estudar. Briski consegue com que uma das instituições de ensino aceite o menino.

Foto: Avijit Bucket

Cada uma dessas crianças passa a ser um observador do outro e de si mesmo. São testemunhas oculares de sua própria história. Com essa experiência, é fato que eles não responderam da mesma forma diante da narrativa fotográfica, mais uma coisa é certa: a fotografia foi tida como elemento de “verdade”. É notório que a fotografia os encantou, e isso acontece porque ela fascina, conta histórias… E, além de eternizar os momentos mais sublimes do cotidiano, entra no campo das emoções, ativam-nas, levam-nas às máximas cotas de intensidade. O espectador é sempre seduzido pela narrativa, pelos diversos “eus” idealizados, envolve-se emocional e mentalmente na história do outro, passa então a fazer parte dela.

Nesse contexto, fotografia é produção social: orienta, educa o olhar, revela,  oculta vivências e reapresenta o passado a um presente com visibilidade para o futuro. Fotografias trazem informações singulares, suportes para a fluidez narrativa. Contam histórias. São veículos de comunicação. Culturalmente aceitas como testemunho da verdade, são aliadas fundamentais para o resgate da autoestima, principalmente aos grupos silenciados. A fotografia é um antídoto à invisibilidade social.

A visibilidade negada aos grupos silenciados, por meio da fotografia é restaurada, e se torna uma narrativa que recria histórias e permite o sujeito ser protagonista de sua própria história. Mais do que  uma imagem técnica, a fotografia é uma forma de ver e pensar o mundo, de se fazer presente. Essas reflexões provocam leituras de mundo e constroem conhecimento.  Mais, a pergunta que merece resposta continua a gritar:

Até que ponto o fotógrafo tem o direito de invadir a vida dos outros?

Pergunta sem resposta?

Depende do ponto de vista. O sentimento que transborda é de impotência, o que tornam as minhas práticas um desafio interessante. Percebo que como fotógrafa, psicóloga, professora, pesquisadora… acabo sempre por invadir a vida do outro. Acredito que a chave para tentar responder a essa pergunta se constrói em um outro questionamento: Quem será o outro para mim? O que conhecemos sobre ele?

Qual a minha responsabilidade para com a sua história?

Uma coisa é certa: a fotografia, em seus desdobramentos, assume uma poética reveladora do cotidiano e, de “pinceladas” suaves passa a capturar com “objetividade” a realidade, como se fosse um decalque do real.

Acredito que tudo é assunto potencial para a fotografia, inclusive as coisas mais difíceis de nossas vidas: ansiedades, traumas de infância, mágoas, frustrações… As coisas que não podem ser vistas são as mais significativas. Elas não podem ser capturadas, apreendidas, apenas sugeridas.

Foto: Gour

Fica o convite:

Escolha um modo de se expressar.

 


FICHA TÉCNICA DO FILME

NASCIDOS EM BORDÉIS
(Born Into Brothels)

Direção, Produção, Roteiro e Fotografia: Zana Briski, Ross Kauffman
Trilha Sonora: John McDowell
Duração: 85 min.
Ano: 2004
País: EUA/ Índia
Gênero: Documentário

Born Into Brothels: Calcutta’s Red Light Kids, Índia/EUA, 2004 (Oscar de melhor documentário em 2005).

Compartilhe este conteúdo: