Como surgiu a instituição manicomial?

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Fazendo um breve levantamento, na Idade da Razão (séc. XVIII), época da Revolução Francesa, processo marcado por inúmeras transformações sociais, políticas, econômicas e culturais, influenciou, e influencia até hoje, na forma de compreender a saúde mental.  Philippe Pinel (pai da psiquiatria) foi extremamente participativo e atuante nos acontecimentos da Revolução Francesa, tendo seu nome atrelado a alienismo (AMARANTE, 2011).

O Hospital, enquanto instituição de saúde, principal espaço do exercício das ciências médicas, nasceu em meio a Revolução Francesa. Anteriormente a realidade e a finalidade dos hospitais eram outras. Amarante (2011) relata que o hospital foi criado na Idade Média e era uma instituição médica, e sim uma instituição de caridade, pois o objetivo era dar abrigo, assistência religiosa e alimentação aos pobres, desabrigados e doente.

Rosen (1994), aponta que no nível primitivo de conhecimento, as explicações e a prática quase sempre se baseavam no sobrenatural. Este cenário mundo com a medicina moderna, originando questionamentos baseadas em dados empíricos de investigação e observação, diferenciando sintomas e buscando explicações racionais.

Os médicos antigos e medievais, em geral, não distinguiam as diferentes doenças e se preocupavam, ao invés, com vários grupos de sintomas. Explicavam-se as evidências de desordem na saúde por meio de teorias sobre a mistura anormal dos fluidos do corpo (humoralismo) ou acerca dos estados, construídos ou relaxados, das partes sólidas do corpo (solidismo). Enquanto essas concepções de saúde prevaleciam, os médicos não podiam concentrar-se em sítios da enfermidade. (p.33)

A Revolução Industrial beneficiou muito o desenvolvimento das cidades, ni entanto houve também um maior acúmulo de lixo, o que acarretou doenças e todo o tipo de mazela social. Era necessário para o bem comum, livrar-se de todo o refugo social e “limpar” as cidades. Devido toda a constituição econômica, cultural e social na idade Medieval, era comum a aglomeração de pessoas. Visto que a maioria da população que constituía essas cidades conservava hábitos do campo, dentre eles, a criação de animais de pequeno e grande porte, o que facilitava o acúmulo de sujeira e excrementos resultantes de tal prática (ROSEN, 1994).

Fonte: encurtador.com.br/aflqG

Diante de tal cenário, o crescimento de instituições hospitalares deu-se de forma importante. As cidades cresceram, práticas de saneamento foram sendo retomadas, era necessário varrer as ruas de toda imundície produzida, e nesse aspecto considerava-se inclusive as mazelas humanas (ROSEN, 1994). Como forma de resolver o problema, criaram-se hospitais e abrigos para homens, mulheres e crianças, leprosos, prostitutas, alienados, órfãos, criminosos, todos considerados a escória da sociedade.

Deviat (1999) diz que oito mil pessoas foram hospitalizadas, ao mesmo tempo, na Salpêtrière, uma das instituições que compunham o Hospital Geral de Paris. O objetivo era varrer as ruas te toda mazela que retratava a realidade de descaso e miséria. E o autor cita a lista dos perfis: Os mendigos e vagabundos,  os criminosos, os rebeldes políticos, as prostitutas, os libertinos, os sifílicos, os alcoólatras, os loucos, os idiotas, os maltrapilhos, as esposas molestas, as filhas violadas. O autor ainda diz que através ´´dessa limpeza“, os perfis citados se tornaram invisíveis, ou seja, indigentes e sem valor algum para a sociedade.

Rousseau disse que “o homem nasce livre e por toda parte vive acorrentado”, o que retrata bem como era o tratamento oferecido aos doentes mentais no séc. XVIII: trancafiados em prisões, casas de correção, asilos e hospícios. Rosen (1994) diz que  a insanidade era interligada ao pecado, ou seja, era vista como atributos de alguém que praticava atividades do diabo. Dessa forma, o tratamento era cheio de ´´ignorância, superstição e condenação moral de maneira forma insana (ROSEN, 1994, p.117).

Fonte: encurtador.com.br/dkY06

Este cenário de enclausuramento começou a mudar com o advento da Revolução Francesa e dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Estes trouxeram consigo as noções de democracia, cidadania e república, o que refletiu no modo de se relacionar. Essa nova ordem social passou a exigir uma nova compreensão acerca da loucura, uma compreensão científica, mensurável, observada através de uma prática médica para além da caridade.

A nova ordem social exigia uma conceituação de loucura e, acima de tudo, de suas formas de atendimento. Com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, com o Contrato Social e a livre circulação de pessoas e mercadorias, a nova soberania civil tinha que refletir sobre a responsabilidade e os limites da liberdade. O grande enclausuramento descrito por Foucault, símbolo eloquente do absolutismo tinha que ser abolido (DESVIAT, 1999, p.16).

É importante ressaltar que o enclausuramento dos alienados não deixou de existir, mas ganhou uma nova explicação. Passou a ter caráter terapêutico e indispensável. Era necessário isolar os pacientes da sociedade, pois esse meio era considerado prejudicial às mentes perturbadas. Para curar os pacientes era preciso isolá-los, interná-los em lugares apropriados. Surgem os asilos, e desta maneira, a primeira especialidade médica: a psiquiatria, que trouxe consigo a justificativa legalmente plausível para o encarceramento da loucura, agora sob o nome de internação.  Ao considerar todas as características que constituíam essa nova sociedade democrática, fica bastante claro que o louco não era um sujeito de direito, pois era considerado irresponsável por seus atos, por sua conduta social.

Fonte: encurtador.com.br/nvFI8

Essa aliança entre a psiquiatria e o direito perdura até nossos dias atuais. Os paradigmas de periculosidade, criminalidade e cronicidade continuam tão presentes em nossa sociedade quanto na época de Pinel.

“Essas idéias iriam fundamentar a psiquiatria, ao lado dos conceitos de periculosidade, incurabilidade e cronicidade, com graves consequências até hoje… Loucos, criminosos, alcoólatras, revolucionários e artistas ficaram sob a suspeita de sofrer de distúrbios mentais degenerativos.” (Desviat, 1999, p.18)

A prática da psiquiatria produziu saberes nos hospitais, e através de estratégias disciplinares possibilitou o agrupamento das doenças, sua classificação através da observação do isolamento dos pacientes. Segundo Desviat (1999) o reconhecimento da subjetividade e certa racionalidade apresentada pelos alienados possibilitaram uma intervenção terapêutica, constituindo as bases do tratamento moral.

Para Amarante et al (2003, p. 17) Pinel discordava de que toda alienação era incurável, para ele, o papel do alienista seria o de “ajudar as forças naturais nesta reação salutar do organismo”. Ou seja, era preciso ´´trazer o alienado a realidade“, e isto acontecia por meio do controle de seus impulsos, ilusões e delírios.  Para isso, estratégias de tratamento moral foram desenvolvidas. Acreditava-se que o trabalho moral dentro dos asilos poderia resgatar o real interesse pelo mundo objetivo e racional, pois a disciplina estava atrelada ao sentido terapêutico, pois a ordem e disciplina ajudaria a mente desregrada para que pudesse  novamente encontrar seus objetivos e verdadeiras emoções e pensamentos.

O objetivo final do tratamento moral era obter a cura para os males da mente. Se antes os hospitais era um espaço destinado a caridade, tanto que era comum a próprias freiras liderando hospitais, pela primeira vez os hospitais tornaram-se um lugar de tratamento, e não mais um lugar que acolhe para aguardar a morte e ser salvo em Cristo. Por outro lado, as e instituições manicomiais tornaram-se depósito de pessoas que passaram a ser tratadas de forma desumana e cruel por não se “enquadrarem” no que os padrões sociais definiam como “comportamento normal”, ou seja, fora da linha de pureza imposta pela sociedade (BAUMAN, ).

Fonte: encurtador.com.br/dhloQ

Há questões que merece destaque, através do novo modelo hospitalar supracitado, aconteceu a descoberta dos medicamentos psicotrópicos, o desenvolvimento da psicanálise e também o desenvolvimento da saúde pública. Tais pontos foram essenciais para o inicio de uma reforma psiquiátrica, que iniciou na Europa, tendo como destaque a postura adotada pela Itália, o que fez o que o Brasil seguisse os passos.

Referências:

AMARANTE, Paulo Duarte de Carvalho. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.

____________. Saúde mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011.

ROSEN, George. Uma História da Saúde Pública. São Paulo, Ed. Unesp, 1994

DESVIAT, Manuel. A Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.

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A loucura submissa à razão em Foucault

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A loucura sem a intenção de parecer um louco ou a simples intenção sem loucura merecem o mesmo tratamento, talvez pelo fato de obscuramente terem a mesma origem: o mal ou, pelo menos, uma vontade perversa.
Michel Foucault

O modo de o homem lidar com a loucura, passou por várias transformações ao longo dos séculos, e a forma como a mesma foi vista pelos olhos da razão também. Foucault descreve a loucura, em sua narrativa desde o Renascimento até a sua consolidação na sociedade. Tendo início com a disseminação da lepra, através das cruzadas. Estas, iam até o Oriente, onde era o foco dominante de contaminação da enfermidade, sendo trazida para a Europa, onde se espalhou rapidamente, atingindo numerosas pessoas.

A partir da alta Idade Média, e até o final das Cruzadas, os leprosários tinham multiplicado por toda a superfície da Europa suas cidades malditas. Segundo Mathieu Paris, chegou a haver 19.000 delas em toda a cristandade. Em todo caso, por volta de 1266, à época em que Luís VIII estabelece, para a França, o regulamento dos leprosários, mais de 2.000 deles encontram-se recenseados. Apenas na Diocese de Paris chegou a haver 43: entre eles Bourg-la-Reine, Corbeil, Saint-Valère e o sinistro Champ-Pourri; e também Charenton (FOUCAULT, 1972, p. 07).

O desaparecimento da lepra não foi efeito de práticas médicas, mas um resultado natural, da consequência do fim das cruzadas, e o rompimento com os focos orientais de infecção. Com a retirada da lepra, os lugares lúgubres que não eram usados para tratá-la, mas sim para fixá-la a uma distância sagrada, se tornam sem utilidade.

A Nau dos Loucos de Hieronymus Bosch. Fonte: http://zip.net/bgtHr3

Existindo para permanecer ainda, muito mais que a lepra, fazendo com o personagem do leproso excluído, fosse esquecido, à margem, retirados do mundo e da visibilidade da comunidade da igreja.

Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Frequentemente nos mesmos locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que salvação se espera dessa exclusão, para eles e para aqueles que os excluem. Com um sentido inteiramente novo, e numa cultura bem diferente, as formas subsistirão — essencialmente, essa forma maior de uma partilha rigorosa que é a exclusão social, mas reintegração espiritual (FOUCAULT, 1972, p.10).

De acordo com Foucault, a lepra foi substituída inicialmente pelas doenças venéreas. De repente, ao final do século XV, elas sucedem a lepra como por direito de herança. Porém as mesmas não terão tamanha importância, como a lepra e a loucura tiveram, sendo depois incorporadas à outras doenças mais comuns. No entanto, as pessoas acometidas pelas doenças venéreas, precisavam ser internadas para ter tratamento, o que os levaram à exclusão, junto aos leprosos e loucos. Eles foram considerados por Foucault, os excluídos da sociedade. Que precisaram desaparecer urgentemente da visibilidade das pessoas. Carregando marcas da exclusão e discriminação.

Quadro de Bosch. Fonte: http://zip.net/bdtHXM

Foucault (1972, p.12) diz que, de fato, a verdadeira herança da lepra tem que ser buscada em um fenômeno bastante complexo, do qual a medicina demorará para se apropriar. Esse fenômeno é a loucura. Porém, será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que esse novo espantalho, que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação que, no entanto, lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença.

O que se tinha, nesta fase, é a loucura, imersa nos jogos de semelhanças entre micro e o macrocosmo da Renascença, como espelho da experiência trágica da pequenez do homem diante da infinitude do universo, em sua proximidade constante com a morte. É o que ilustram os quadros de Bosch, de Brueghel, de Thierry Bouts e Dûrer ao mostrarem, não só a loucura, mas a própria realidade do mundo, absorvida no universo de imagens fantásticas, atravessado pela ameaça da fome, da tentação, da fatalidade e das guerras (SILVEIRA & SIMANKE, 2008 p. 27).

A loucura, cujas vozes a Renascença, acaba de libertar, cuja violência, porém ela já dominou, vai ser reduzida ao silêncio pela era clássica através de um estranho golpe de força. (FOUCAULT, 1972, p. 52). Na Renascença, os loucos eram carregados em navios e barcos para cidades distantes das suas, em busca da razão. Segundo Foucault (1972, p. 12), o louco era “prisioneiro da mais aberta das estradas”, comparando, assim, a pequenez duma prisão à imensidão do mar. O lugar para onde o insano estava indo não era a sua terra, muito menos era aquela que ficou para trás. A terra do louco se limita à distância entre ambas as terras, a que foi sua e a que nunca será. Dessa forma, a água simboliza esta territorialidade com a qual a loucura será presenteada pelo Ocidente. Literalmente, o louco não tinha chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha grades (FOUCAULT, 1972, p. 12).

A loucura, cujas vozes a Renascença, acaba de libertar, cuja violência, porém ela já dominou, vai ser reduzida ao silêncio pela era clássica através de um estranho golpe de força. (FOUCAULT, 1972, p. 52). Na Renascença, os loucos eram carregados em navios e barcos para cidades distantes das suas, em busca da razão. Segundo Foucault (1972, p. 12), o louco era “prisioneiro da mais aberta das estradas”, comparando, assim, a pequenez duma prisão à imensidão do mar. O lugar para onde o insano estava indo não era a sua terra, muito menos era aquela que ficou para trás. A terra do louco se limita à distância entre ambas as terras, a que foi sua e a que nunca será. Dessa forma, a água simboliza esta territorialidade com a qual a loucura será presenteada pelo Ocidente. Literalmente, o louco não tinha chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha grades (FOUCAULT, 1972, p. 12).

Segundo Foucault (1972, p.88), “a Igreja católica, bem como para os países protestantes, a internação representa, sob a forma de um modelo autoritário, o mito da felicidade social: uma polícia cuja ordem seria inteiramente transparente aos princípios da religião, e uma religião cujas exigências seriam satisfeitas, sem restrições, nas regras da polícia e nas coações com que se pode armar”.

Fonte: http://zip.net/brtHsL

Ainda de acordo com Foucault (1972, p.89),

A internação é uma criação institucional própria ao século XVII. Ela assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como esta era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido. Nasceu uma sensibilidade, que traçou uma linha, determinou um limiar, e que procede a uma escolha, a fim de banir. O espaço concreto da sociedade clássica reserva uma região de neutralidade, uma página em branco onde a vida real da cidade se vê em suspenso: nela, a ordem não mais enfrenta livremente a desordem, a razão não mais tenta abrir por si só seu caminho por entre tudo aquilo que pode evitá-la ou que tenta recusá-la. Ela impera em estado puro num triunfo que lhe é antecipadamente preparado sobre um desatino desenfreado. Com isso a loucura é arrancada a essa liberdade imaginária que a fazia florescer ainda nos céus da Renascença. Não há muito tempo, ela se debatia em plena luz do dia: é o Rei Lear, era Dom Quixote. Mas em menos de meio século ela se viu reclusa e, na fortaleza do internamento, ligada à Razão, às regras da moral e a suas noites monótonas.

“Do outro lado desses muros do internamento não se encontram apenas a pobreza e a loucura, mas rostos, bem mais variados e silhuetas cuja estatura comum nem sempre é fácil de reconhecer” (FOUCAULT, 1972, p. 90). Com isso, é evidente que o internamento, em suas formas primitivas, funcionou como um mecanismo social, e que esse mecanismo atuou sobre uma área bem ampla, dado que se estendeu dos regulamentos mercantis elementares ao grande sonho burguês de uma cidade onde imperaria a síntese autoritária da natureza e da virtude.

Daí a supor que o sentido do internamento se esgota numa obscura finalidade social que permite ao grupo eliminar os elementos que lhe são heterogêneos ou nocivos, há apenas um passo. O internamento seria assim a eliminação espontânea dos “a-sociais”; a era clássica teria neutralizado, com segura eficácia — tanto mais segura quanto cega — aqueles que, não sem hesitação, nem perigo, distribuímos entre as prisões, casas de correção, hospitais psiquiátricos ou gabinetes de psicanalistas. (FOUCAULT, 1972, p.90).

Assim, o desatino aparece, com todas as significações que o Classicismo nele elaborou, como um campo de experiência, demasiado secreto sem dúvida para ter sido alguma vez formulado em termos claros, demasiado combatido também, da Renascença à era moderna, para receber o direito à expressão, mas bastante importante para ter sustentado não apenas uma instituição como a do internamento, não apenas as concepções e as práticas referentes à loucura, mas todo um reajuste do mundo ético. É a partir dele que se torna necessário compreender a personagem do louco tal como ele surge na época clássica e a maneira pela qual se constitui aquilo que o século XIX acreditará reconhecer, entre as verdades imemoriais de seu positivismo, como a alienação mental.

Antigo hospital colônia de Barbacena. Fonte:http://zip.net/bgtHr5

Nesse campo, a loucura, da qual a Renascença tivera experiências tão diversas a ponto de ter sido simultaneamente não-sabedoria, desordem do mundo, ameaça escatológica e doença, nesse campo a loucura encontra seu equilíbrio e prepara essa unidade que se oferecerá, talvez de modo ilusório, ao conhecimento positivo; a loucura encontrará desse modo, mas através de uma interpretação moral, esse distanciamento que autoriza o saber objetivo, essa culpabilidade que explica a queda na natureza, essa condenação moral que designa o determinismo do coração, de seus desejos e paixões.

Anexando ao domínio do desatino, ao lado da loucura, as proibições sexuais, os interditos religiosos, as liberdades do pensamento e do coração, o Classicismo formava uma experiência moral do desatino que serve, no fundo, de 122 solo para nosso conhecimento “científico” da doença mental. Através desse distanciamento, através dessa dessacralização, a loucura atinge uma aparência de neutralidade já comprometida, dado que só é alcançada nos propósitos iniciais de uma condenação. (FOUCAULT, 1972, p.121).

Nosso saber positivo nos deixa incapazes para decidir se se trata de vítimas ou doentes, de criminosos ou loucos: estavam todos ligados a um mesmo modo de existência, que podia levar eventualmente tanto à doença quanto ao crime, mas que não lhes pertencia desde o início. É desse tipo de existência que dependiam os libertinos, devassos, dissipadores, blasfemadores, loucos. Em todos eles, havia apenas uma certa maneira, bastante pessoal e variada em cada indivíduo, de modelar uma experiência comum: a que consiste em experimentar o desatino. Nós, os modernos, começamos a nos dar conta de que, sob a loucura, sob a neurose, sob o crime, sob as inadaptações sociais, corre uma espécie de experiência comum da angústia. Talvez, para o mundo clássico, também houvesse uma economia do mal, uma experiência geral do desatino. E, nesse caso, ela é que serviria de horizonte para aquilo que foi a loucura durante os cento e cinquenta anos que separam a grande Internação da “liberação” de Pinel e Tuke (FOUCAULT, 1972, p.122). 

“Em todo caso, é dessa liberação que data o momento em que o homem europeu deixa de experimentar e compreender o que é o desatino — que é também a época em que ele não mais apreende a evidência das leis do internamento.” (FOUCAULT, 1972, p.123).

Antigo hospital colônia de Barbacena. Fonte: http://zip.net/bktHtw

Foucault vê que seria falso considerar que o internamento dos insanos nos séculos XVII e XVIII seja uma medida de polícia que não se coloca problemas, ou que pelo menos manifesta uma insensibilidade uniforme ao caráter patológico da alienação. Mesmo na prática monótona do internamento, a loucura tem uma função variada. Ela já periclita no interior desse mundo do desatino que a envolve em seus muros e a obseda com sua universalidade. Pois se é fato que, em certos hospitais, os loucos têm lugar reservado, o que lhes assegura uma condição quase médica, a maior parte deles reside em casas de internamento, nelas levando praticamente uma existência de correcionais.

De fato, essa ausência de cuidados médicos, exceção feita à visita prescrita, põe o Hospital Geral quase na mesma situação de uma prisão. As regras nele impostas são em suma aquelas que a ordenação criminal de 1670 prescreve para a boa ordem de todas as casas de detenção; se há um médico no Hospital Geral, não é porque se tem consciência de que aí são internados doentes, é porque se teme a doença naqueles que já estão internados. Teme-se a famosa “febre das prisões”. Na Inglaterra, gostavam de citar o caso de prisioneiros que tinham contaminado seus juízes durante as sessões do tribunal; lembrava-se que os internos, após a libertação, haviam transmitido a suas famílias o mal contraído nas prisões (FOUCAULT, 1972, p.128).

O internamento não é um primeiro esforço na direção da hospitalização da loucura, sob seus variados aspectos mórbidos. Constitui antes uma homologação dos alienados aos outros correcionais, como demonstram essas estranhas fórmulas jurídicas que não entregam os insanos aos cuidados do hospital, mas os condenam a uma temporada neles (FOUCAULT, 1972, p. 129).

Barbacena. Fonte: http://zip.net/bktHtx

O essencial, portanto, é saber se a loucura é real e qual o seu grau: quanto mais profunda for, mais a vontade do indivíduo será considerada inocente. Pelo contrário, no mundo do internamento pouco importa saber se a razão está de fato atingida; caso esteja, e seu uso está com isso impedido, é sobretudo por uma flexão da vontade que não pode ser inteiramente inocente, pois não pertence à esfera das consequências.

O fato de pôr-se em causa a vontade na experiência da loucura tal como é denunciada pelo internamento não está evidentemente explícito nos textos conservados, mas transparece através das motivações e dos modos de internamento. Aquilo de que se trata é todo um obscuro relacionamento entre a loucura e o mal, relacionamento que não mais é considerado, como na época da Renascença, como relacionado com todos os poderes ocultos do mundo, mas com esse poder individual do homem que é sua vontade. Assim, a loucura lança raízes no mundo moral (FOUCAULT, 1972, p.156).

A loucura sem a intenção de parecer um louco ou a simples intenção sem loucura merecem o mesmo tratamento, talvez pelo fato de obscuramente terem a mesma origem: o mal ou, pelo menos, uma vontade perversa. Por conseguinte, a passagem de uma para outra será fácil, e admite-se facilmente que alguém se torna louco pelo simples fato de ter desejado ser um louco (FOUCAULT, 1972, p. 156).

 Nisso consiste, sem dúvida, o paradoxo maior da experiência clássica da loucura; ela é retomada e envolvida na experiência moral de um desatino que o século XVII proscreveu através do internamento; mas ela está ligada também à experiência de um desatino animal que forma o limite absoluto da razão encarnada e o escândalo da condição humana.

Colocada sob o signo de todos os desatinos menores, a loucura se vê ligada a uma experiência ética e a uma valorização moral da razão; mas, ligada ao mundo animal e a seu desatino maior, ela toca em sua inocência monstruosa. Experiência contraditória, se se quiser, e bastante distanciada das definições jurídicas da loucura, que procuram estabelecer a divisão entre a responsabilidade e o determinismo, entre a falta e a inocência. Distanciada também dessas análises médicas que, na mesma época, prosseguem em sua análise da loucura como um fenômeno da natureza.

Fonte: http://zip.net/bntHt9

No entanto, na prática e na consciência concreta do Classicismo existe esta experiência singular da loucura, percorrendo num átimo toda a distância do desatino; baseada numa escolha ética e, ao mesmo tempo, inclinada para o furor animal. Dessa ambiguidade o positivismo não conseguirá sair, ainda que de fato ele a tenha simplificado: retomou o tema da loucura animal e sua inocência numa teoria da alienação mental como mecanismo patológico da natureza (FOUCAULT, 1972, p.180).

E mantendo o louco nessa situação de internamento que a era clássica havia inventado, ele o manterá, de modo obscuro e sem o admitir, no aparelho da coação moral e do desatino dominado. 181 A psiquiatria positiva do século XIX, e também a nossa, se renunciaram às práticas, se deixaram de lado os conhecimentos do século XVIII, herdaram em segredo todas essas relações que a cultura clássica em seu conjunto havia instaurado com o desatino; modificaram essas relações, deslocaram-nas; acreditaram falar apenas da loucura em sua objetividade patológica, mas contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela ética do desatino e pelo escândalo da animalidade (FOUCAULT, 1972, p.180).

A psiquiatria positiva do século XIX, e também a nossa, se renunciaram às práticas, se deixaram de lado os conheci-. mentos do século XVIII, herdaram em segredo todas essas relações que a cultura clássica em seu conjunto havia instaurado com o desatino; modificaram essas relações, deslocaram-nas; acreditaram falar apenas da loucura em sua objetividade patológica mas, contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela ética do desatino e pelo escândalo da animalidade (FOUCAULT, 1972, p.181).

Para Silveira (2008, p.34), a loucura é fragmentação da articulação corpo-ama, afetada pelas paixões descontroladas, no desequilíbrio das causalidades mecânicas, na contrução da conduta irracional e de um campo de irrealidade.

Fonte: http://zip.net/bxtJkL

Segundo López (2006):

A loucura num sentido trágico não pode pertencer à razão, ao discurso. O ato de nomeá-la suporia tê-la posto no espaço e no tempo da razão e da história. A loucura, num sentido trágico, é portanto, um fundo de sem-sentido a partir do qual se estabelece qualquer sentido, mas que sempre permanece inacessível a este e por isso o ameaça radicalmente. A obra da história, da razão, da linguagem só é possível sobre um fundo caótico. Trata-se de um espaço de sem-sentido que percorre a história por baixo, ameaçando-a, e que se renova a cada instante, com cada palavra e com cada novo gesto da razão, mas que é ao mesmo tempo o segredo de seu devir.

A loucura é para Foucault, “barulho surdo debaixo da história, o murmuro obstinado de uma linguagem que falaria sozinha –sem sujeito falante e sem interlocutor” (FOCAULT, 1961/1999a: 144). A loucura é linguagem, mas não discurso. É o ponto cego da linguagem, é isso que sempre escapa à linguagem, mas que faz parte de seu próprio devir, “raiz calcinada do sentido” dirá Foucault (1961/1999ª: 144). Não se trata então de fazer a história de um conhecimento, mas a arqueologia de uma experiência, nada menos de uma experiência que conduz até o fogo primordial onde se forja o sentido. Não estamos frente à história de um saber, mas à arqueologia de uma experiência do pensar (LÓPEZ, 2006).

REFERÊNCIAS:

FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Éditions Gallimard, 1972.

LÓPEZ, Maximiliano Valerio: “A ‘FILOSOFIA COM CRIANÇAS’ DESDE UMA PERSPECTIVA TRÁGICA”. (Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade do Estado de Rio de Janeiro. Orientador: Walter Omar Kohan). Rio de Janeiro, 2006.

SILVEIRA, Fernando de Almeida. A Psicologia em História da Loucura de Michel Foucault. – Disponível em: <http://www.uff.br/periodicoshumanas/index.php/Fractal/article/view/118/283> Acesso em 13 de março de 2017.

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Ceulp/Ulbra recebe o CSI Tocantins – 2º Estudo de Caso da Polícia Científica

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Palestra vai abordar casos reais do ponto de vista do estudo psicológico e jurídico.


O CEULP/ULBRA recebe no próximo dia 27, a partir das 19h, no miniauditório da sala 543, a segunda palestra do CSI Tocantins – Estudo de Caso de Polícia Científica. Com o tema “Psicologia e Psiquiatria Forense – repercussão midiática sobre insanidade mental”, o evento terá como palestrante a enfermeira doutora em Psiquiatria Helisiane Fernandes Moreira Figueiredo, que é servidora da Polícia Científica do Tocantins no Instituto Médico Legal (IML) do Tocantins e perita forense do Tribunal de Justiça (TJ) de Goiás. Serão abordados casos de surto-psicótico puerperal (infanticídio) e de doença mental, ao exemplo da esquizofrenia, tendo como fator agravante o uso de drogas ilícitas e alucinógenos, como no caso do assassinato do cartunista Glauco Villas Boas e seu filho Raoni Villas Boas, em 2010.

Deste modo, o evento propõe uma abordagem de casos reais, do ponto de vista psicológico, psiquiátrico e jurídico. “Você periciar algo que se pode ver é uma coisa, outra é você periciar a psique. Então esse 2º Estudo será sobre aspectos da psiquiatria e até mesmo jurídico. Ou seja, é importante analisar como a Justiça observa casos que envolvem aspectos psicológicos do indivíduo”, comentou o diretor da Polícia Científica do Tocantins, Gilvan Noleto.

O evento é voltado para acadêmicos de Psicologia e Direito, além dos profissionais da Polícia Científica, como peritos, legistas e papiloscopistas, bem como delegados, agentes, escrivães da Policia CIvil, peritos, delegados e agentes da policia federal, entre outros profissionais da área jurídica. Para Noleto há situações em que “a psicologia entrelaça com aspecto criminal, assim como o aspecto jurídico entrelaça com o psicológico. Então é importante estender nossos estudos de caso de perícias para a sociedade, porque a polícia científica se torna uma espécie de um laboratório e nós precisamos compartilhar conhecimento com os futuros profissionais como também termos contato com novas ideias e tendências oriundas da academia”.

O CSI Tocantins –  Estudo de Caso de Polícia Científica é uma realização da Diretoria de Polícia Cientifíca da Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP), em parceira com os cursos de Psicologia e de Direito do Centro Universitário Luterano de Palmas.

O evento é aberto ao público sem necessidade de inscrição prévia. A certificação será de 3h.


Sobre a autora:

Em sua trajetória a palestrante participou de casos relevantes, um exemlo é ter auxiliado a acusação do caso Suzane Von Richthofen e atualmente acompanha o caso do suposto serial killer de Goiás.

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