O Milagre na Cela 7: colaborações do pensamento sistêmico

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O Milagre na Cela 7 é um filme turco que se tornou uma sensação inesperada na Netflix, remake de um filme sul-coreano de Lee Hwan-gyeong. A filmagem ocorre na Turquia, precisamente em Mugla e BeyKoz em Istambul. O filme apresenta Memo, pastor de profissão, que vive na casa da avó com a sua filha, Ova. Ele possui deficiência intelectual e apresenta uma relação mais de amizade que de autoridade com a filha.

No contexto apresentado, a família protagonista é caracterizada por ser multigeracional, sendo classificada como uma família estendida, concomitantemente, em situação de vulnerabilidade social e com a presença de uma pessoa que exige cuidados especiais. A teoria sistêmica da família, descrita e publicada na década de 80 por Minuchin (1988), trouxe uma nova forma de visualizar os estudos sobre família. Considerar a visão sistêmica significa destacar a família como um sistema complexo, composto por vários subsistemas que se influenciam mutuamente, como: marido-esposa, genitores-filhos, irmãos-irmãos, avós-netos (Dessen, 1997).

Fonte: encurtador.com.br/qzB14

O melodrama gira em torno do fato da criança, Ova, querer a mochila de uma personagem que outra garota, filha de um comandante do exército, adquire antes. Ao vê-la com o acessório em uma reunião de família ao ar livre, Memo segue a garota, que o provoca em uma espécie de brincadeira. Nesse jogo, contudo, a criança escorrega em pedras íngremes,  bate a cabeça, cai na água e vem a óbito. Memo busca a menina e a leva de volta à família aos prantos, e, claro, é acusado injustamente de matar a garota. Posteriormente, o desenrolar de Memo é marcado pelas muitas violências que sofre antes e depois da chegada na prisão. Já na prisão o personagem sofre as consequências de estar preso por “matar uma criança”, os demais detentos punem o indivíduo que pratica tal ato. Ao se recuperar, Memo consegue conquistar amigos detentos, todos presos na cela de número 7 – de onde vem o nome do filme.

A narrativa de Milagre na Cela 7 vagueia entre o conforto de se sustentar na figura de Memo, que cativa sem muitas dificuldades, e a benevolência de absolutamente todos ao seu redor (exceto pelo tenente-coronel, tido como o grande vilão). O amor que Memo sente pela filha Ova é belíssimo de se contemplar, mas pouco sabemos sobre como ele a criou ou como era a relação de ambos quando a menina era mais nova. O carinho que vemos em tela mais se qualifica com um sentimento de irmãos, do que em geral estamos acostumados a ver entre pai e filha.

Fonte: encurtador.com.br/amIN2

Ao passo que a hierarquia familiar veio se tornando mais flexível em direção a maior igualdade de papéis entre os genitores, as relações maritais e parentais também se modificaram (Dessen & Braz, 2005b). Uma concepção semelhante no que se refere à ênfase nas relações interpessoais, segundo Zamberlan e Biasoli-Alves (1997), a família é um grupo primário condicionado pelo parentesco e pelas relações interpessoais entre seus membros, as quais são sustentadas por sentimentos de afeição, apoio, partilha de tarefas, cuidados com a prole e cooperação mútua em várias outras atividades.

Durante o desenrolar da história é possível notar que a filha, Ova, apesar da pouca idade tem compreensão da deficiência intelectual do pai, preocupação com os cuidados e o bem-estar dele. A escassez de estudos a respeito de pais com necessidades especiais dificulta a obtenção de dados estatísticos, mas sabe-se que a adaptação dessa família a essa condição pode ser bastante variável, a depender dos recursos que cada família possui.

i“[…] sobre o ciclo vital da família, afirma que esta deve cumprir suas tarefas fundamentais: a prestação de cuidados que satisfaça as necessidades físicas e afetivas de cada um dos seus elementos, […] e a socialização dos seus membros, que os inicia nos papéis e valores da sociedade em que interagem, permitindo a adaptação à cultura que os rodeia.”(Gomes;2007, p.1 apud Relvas,1996:II3).

Fonte: encurtador.com.br/qAPRS

Este é sim um filme que toca em temas sensíveis e humanos: a intolerância com pessoas que apresentam diferenças mentais e baixos recursos financeiros, a dificuldade em ouvir o outro e, também, a capacidade de evolução do ser humano para alcançar o auto perdão. Logo, os cuidados cativados por Memo, através de diversos coadjuvantes durante o filme, nas mais diversas circunstâncias, nos remete ao que postula Zinker (2007) que “não é preciso amar uma pessoa para cuidar dela com respeito” (p. 19).

A intersubjetividade agrega as interações e as relações entre os indivíduos como construtora da experiência real, sendo através dela que tudo pode existir. Ao saber que a intersubjetividade nasce na interação com o outro, o indivíduo se percebe como parte de algo e entende que tudo pode ser coconstruído nessa relação, sendo a coconstrução uma capacidade de unir o que diz respeito a sua existência em conjunto com a do outro (VASCONCELLOS, 2002).

Fonte: encurtador.com.br/uwGT4

Quando a forca, designada por pena de morte, aparenta ser um fim para Memo, seus companheiros de prisão pactuam uma forma para salvar o inocente. No fim, Memo não é salvo por um testemunho tão aguardado, mas sim pela união de seus companheiros de cela, do Diretor, do guarda da prisão e Yusuf, um colega de cela que troca de lugar com Memo e morre enforcado em seu lugar, realçando o processo de coconstrução pois partiu de um reconhecimento da realidade do outro, como significativo e válida também para sua realidade.

Em suma, Memo e Ova são colocados em um barco, para fora do país com o intuito de fugirem para escapar da violência policial. Na prisão, a morte de Memo é registrada, e Yusuf, é considerado fugitivo, como se tivesse conseguido escapar no caos da noite da execução. Por fim, retornam à cena para Ova, já crescida e prestes a casar, segurando o objeto a qual lhe foi dada pelo homem que salvou seu pai.

FICHA TÉCNICA

 

Fonte: encurtador.com.br/nDQ09

MILAGRE NA CELA 7

Título original: Koğuştaki Mucize
Direção: Mehmet Ada Öztekin
Elenco: Aras Bulut İynemliNisa Sofiya AksongurDeniz Baysal
Ano: 2019
País: Turquia
Gênero: Drama

REFERÊNCIAS

Dessen, M. A. (1997). Desenvolvimento familiar: transição de um sistema triádico para poliádico. Temas em Psicologia, 3, 51-61.

Dessen, M. A., & Braz, M. P. (2005b). As relações maritais e sua influência nas relações parentais: implicações para o desenvolvimento da criança. In M. A. Dessen & A. L. Costa-Júnior (Orgs.), A ciência do desenvolvimento humano: tendências atuais e perspectivas futuras (pp. 132-149). Porto Alegre: Artmed.

Dessen, M. A. Estudando a família em desenvolvimento: desafios conceituais e teóricos. Psicologia: Ciência e Profissão, São Paulo, v. 30, p.202-219, 25 out. 2010.

Gomes, A. P. Famílias Heroínas – enfrentar a adversidade de ter um filho diferente. Cadernos de Estudo. Porto: ESE de Paula Frassinetti. ISSN 1645-9377. N.º5 (2007), p. 15-18.

Minuchin, P. (1988). Relationships within the family: A systems perspective on development. In R. A. Hinde & J. StevensonHinde, Relationships within families: Mutual influences (pp. 7-26). Oxford-UK: Clarendon Press.

Vasconcellos, Maria José Esteves de. Pensamento Sistêmico: O Novo Paradigma da Ciência. Campinas: Papirus, 2002. 272 p.

Zamberlan, M. A. T., & Biasoli-Alves, Z. M. M. (Orgs.). (1997). Interações familiares: teoria, pesquisa e subsídios à intervenção. Londrina: Editora da UEL.

Zinker, J. (2007). Processo criativo em Gestalt-terapia. São Paulo, SP: Summus.

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‘Você’: uma perspectiva Sistêmica das relações

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Série exalta complexidade, instabilidade e intersubjetividade do ser humano

Amar e ser amado! A grande máxima da vida de milhares de pessoas. ‘Você’, série recém-lançada pela Netflix, traz um enredo que flutua em torno da busca incessante de Joe por alguém que o ame assim como ele ama. E como ele ama? De uma forma uma tanto intensa e assassina!

Vários personagens estão envolvidos nessa trama, no entanto, essa análise se atentará a três principais: Joe, Beck e Peach.

A história de amor construída por Joe – Joe trabalha numa livraria que herdou de seu acolhedor, por ter sido ele abandonado pelos seus pais que eram adictos. Em um dia comum de trabalho, Beck adentra a livraria e os dois se conhecem. Esse primeiro encontro não rende muita esperança para ele, já que Beck deixa suas intenções soltas no ar.

E o que Joe faz? Segue a vida normalmente e espera ver se o tempo colabora com esse romance? Não mesmo! Ele determina que esse romance irá acontecer e para isso começa procurando por ela nas redes sociais e descobrindo seu endereço, para então passar a espiá-la todos os dias pelas janelas de sua casa.

De início Joe descobre que ela tem uma relação com um homem chamado Bengi, que na verdade é um completo mulherengo que não sente nada por Beck. Vendo o quão ruim era esse relacionamento para ela, o que Joe faz? Mata Bengi, porque para ele é totalmente compreensivo que ele tire esse homem da vida dela, já que ele só piora as coisas e se coloca como um obstáculo para seu possível namoro.

Fonte: encurtador.com.br/cqLQS

Na cabeça de Goldberg (Joe) facilitar os acontecimentos da vida de Beck para que eles possam ter um relacionamento sem nenhum impedimento ou complicação, é simples e o correto a se fazer. E ele realmente consegue estar na hora certa e no local certo para que o namoro aconteça, e ele acontece.

É incrível pensar a partir dessa ótica, como seria se pudéssemos controlar todas as ações que envolvessem as pessoas que “amamos”, com o intuito de nunca perdermos elas. É como se realmente tivéssemos o poder de controlar a vida, fazendo com que tudo aquilo que quiséssemos acontecesse, e tudo que não gostássemos não acontecesse mais. Essa habilidade traria muita segurança para a pessoa dotada, já que nada sairia do seu comando. Entretanto, o que Joe não sabia era que mesmo que ele tentasse controlar as coisas, as coisas não se tornariam constantes e estáveis, porque afinal o indivíduo é um ser Complexo, Instável e Intersubjetivo (VASCONCELLOS, 2002).  

A seguir uma analogia será feita entre os três personagens citados no início e os três pilares do Pensamento Sistêmico Novo-paradigmático trazido por Maria José Esteves de Vasconcellos.

Fonte: encurtador.com.br/hst14

Joe e a ‘Complexidade’ – Joe sabe muito bem o que quer desde o início, ficar com Beck acima de qualquer coisa e fazer todo o possível por ela. É por isso que a partir do momento em que eles se conhecem, ela passa a ser o único foco da vida dele, e é para esse foco que ele direciona toda a sua atenção e importância.

Dessa forma, ele não estabelece outros tipos de relacionamentos ou de hobies. E a sua visão geral de felicidade na vida, está totalmente atrelada a um relacionamento perfeito com Beck.

Joe age totalmente de forma oposta ao olhar da complexidade sobre a vida. A dimensão da complexidade da vida traz que é necessário entendermos que pensar a existência de maneira complexa, é ampliar o foco de observação, percebendo que um único fenômeno isolado nunca será livre das mais variadas influências (VASCONCELLOS, 2002). Portanto, uma tentativa de manter um relacionamento livre de complicações ou estímulos de outras pessoas, é no mínimo uma tentativa fracassada e ingênua de estabelecer uma ordem, o que Joe descobrirá apenas na prática.

A complexidade implica no conhecimento de que múltiplos sistemas estão em contato uns com os outros, e se afetam mutuamente. Esses sistemas são definidos como “um conjunto de componentes em estado de interação” (VASCONCELLOS, 2002, pág. 198). Na vida de Beck existiam vários sistemas, que eram suas amigas, sua vida de escritora, seus flertes no Tinder, seu psicoterapeuta, seu pai adiccto, seus próprios comportamentos e dilemas existenciais, e esses sistemas influenciavam sua relação com Joe e, portanto, de acordo com a visão reducionista de funcionamento vital dele, todos esses sistemas deveriam sumir e não os atrapalharem nunca mais.

Fonte: encurtador.com.br/ftzGO

Beck: a ‘Instável’ – Beck é a personificação da instabilidade. Formada em Literatura, egressa num programa de mestrado, residente em uma casa fornecida pela universidade, professora de Yoga, amiga de três garotas ricas, interessada em homens instáveis e voláteis, aventureira no Tinder, escritora. É a garota que em um dia sabe tudo o que quer e no outro duvida se realmente quer aquilo, uma hora pensa que consegue lidar com sua vida, outra hora se sente totalmente incapaz. Beck é a realidade do jovem nova-iorquino de classe média, e porque não dizer da maioria dos jovens da geração millenium.

A instabilidade da vida se compara exatamente a forma como Beck vive, já que a dimensão da instabilidade retrata o quão imprevisível e incontrolável os acontecimentos podem ser. Apresentando ainda como devemos enxergar essa desordem que é viver, como normal, já que é inevitável que as coisas mudem e evoluam independente se muitas vezes achamos estar no controle (VASCONCELLOS, 2002).

E como já deu pra perceber, é óbvio que Beck daria “muito trabalho” para Joe. É possível notar na maioria das cenas de desentendimento do casal que Beck era a quem sempre saía transtornada e sem ver solução para os conflitos, e Joe era o que sempre tinha uma solução para normalizar a situação. Essa diferença de paradigmas, ou seja, de maneiras de pensar (VASCONCELLOS, 2002), ia desde escolher a comida para o jantar, escolher entre sair com as amigas ou sair apenas o casal, decidir sobre a hora certa de escrever ou não. Para Joe todas essas decisões eram simples de serem feitas, mas para Beck eram difíceis de serem tomadas, e quando eram, podiam e mudavam facilmente. Beck era a tempestade impetuosa no mar calmo da vida de Joe.

Fonte: encurtador.com.br/ryIV4

Peach: a ‘Intersubjetiva’ – Peach era o centro da complicação do relacionamento do casal antagônico. A amiga de Beck que queria a todo custo separá-la de Joe. Peach vinha de uma família rica, tinha glamour, fama, viagens, roupas bonitas e caras, beleza, casa luxuosa, mas não tinha relações profundas com ninguém, e foi na amizade com Beck que ela estabeleceu a sua intersubjetividade e conseguiu se ver parte de um processo de intimidade na relação com o outro.

A intersubjetividade coloca as interações e as relações entre os indivíduos como construtora da experiência da realidade, é através dela que tudo pode existir. O indivíduo quando sabe que sua intersubjetividade nasce na interação com o outro, se percebe como parte de algo e entende que tudo pode ser coconstruído nessa relação (VASCONCELLOS, 2002).

E o que seria essa coconstrução? A coconstrução é a capacidade de unir aquilo que é de sua existência com a existência do outro, sem o estabelecimento de qual experiência é correta ou não, porque na verdade qualquer uma delas é válida partindo do princípio da intersubjetividade (VASCONCELLOS, 2002).

Mas é importante ressaltar que essa coconstrução não parte do pressuposto de algo positivo ou negativo, mas sim de um reconhecimento da realidade do outro como importante e válida também para a sua realidade. Isso é o que acontece com Peach e Beck, já que apesar de o relacionamento delas ser marcado por uma toxicidade e instabilidade, as duas em diversos momentos aprendem a serem e existirem uma com a outra.  

Fonte: encurtador.com.br/iACEL

‘Você’ e a performance do Pensamento Sistêmico – Joe, Beck e Peach, o que eles têm em comum? A busca pelo amor. E o que acontece nesse meio tempo de 10 episódios, é o que o Pensamento Sistêmico defende. Dez episódios que nos mostram o quanto a visão do que é amor para cada um deles é totalmente diferenciada. Cada um viveu e experimentou as experiências românticas a sua maneira, acreditando ser a maneira como eles experimentaram a única correta e aceitável.

No entanto, isso não é possível a partir do instante em que você percebe e leva em consideração as três dimensões da teoria Sistêmica: Complexidade, Instabilidade e Intersubjetividade. Maria José Esteves de Vasconcellos diz que “(…) se não há leis definitivas sobre a realidade, se só temos afirmações consensuais, não teremos mais as expectativas da previsibilidade e controlabilidade. E encontrar diferentes afirmações nos levará a perguntar pelas condições, pelos contextos em que foram feitas (2002, pág. 152).”

Fonte: encurtador.com.br/pyDLR

É aqui que você deve se perguntar, em quais condições e em quais contextos cada personagem viveu? O que os levou a ver e construir as formas de amar da maneira como elas são apresentadas na série. Talvez aí você entenda e coconstrua junto com os personagens, ou talvez não. Pode ser que de acordo com a sua experiência de vida, nem mesmo esse texto inteiro faça o menor sentido para você. Porque é realmente disso que se trata, da complexidade, da instabilidade e da intersubjetividade do ser humano, do ser ‘VOCÊ’!

REFERÊNCIA:
VASCONCELLOS, Maria José Esteves de. Pensamento Sistêmico: O Novo Paradigma da Ciência. Campinas: Papirus, 2002. 272 p.

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