Relato de uma servidora do judiciário tocantinense

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A dificuldade da justiça em combater os instintos violentos do ser humano

Sou serventuária do Judiciário Tocantinense e gestora da 2ª Câmara Criminal. Na Câmara, cumprimos todos os despachos e decisões prolatadas pelos Desembargadores. Alí assiste-se todos os crimes cometidos no Estado, em grau de recurso ou impetração de Habeas Corpus e mandados de segurança, resguardando a garantia dos direitos do cidadão, seja ele vítima (sujeito passivo) ou autor (sujeito ativo) do crime. Cujos crimes, vão dos mais simples aos mais complexos.

Ouvir que a justiça pouco faz para dirimir a violência no país é um discurso corriqueiro entre os indivíduos quando reunidos ou diante de um fato de comoção nacional, no entanto, é a sociedade quem cria oportunidades para alterações nas leis. Elas só mudam, se se provocadas.

Créditos: Rondinelli Ribeiro

É de bom alvitre, definir o que seja crime e violência. Por um lado temos o crime,  um fato típico- tem que haver previsão legal, contido em lei incriminadora e antijurídico, é o comportamento do sujeito o qual descumpre , desrespeita, viola e infringe uma lei penal, reprimida com prisão ou detenção, o qual segundo o Decreto- Lei nº 3.914, de 9 de dezembro de 1941, in fine:

Art 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

Por outro lado, temos a violência, uma questão social e cultural quando se refere à violência contra a mulher. Violência, definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) como sendo:

“uso intencional da força ou poder em uma forma de ameaça ou efetivamente, contra si mesmo, outra pessoa ou grupo ou comunidade, que ocasiona ou tem grandes probabilidades de ocasionar lesão, morte, dano psíquico, alterações do desenvolvimento ou privações.”

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay 

Pode-se aferir que a violência seja um indicador social e situação é gravosa e, quando trata-se de crime culturalmente aceito desde o pretérito, torna-se ainda mais complicado em extirpar- lo.  Dentre os tipos dessa violação, elenco a violência contra a dignidade sexual pois, uma vez ser a mais associada ao conceito de violência.

Sendo a mulher e a criança, os agentes passivos dessa infâmia pública e, de forma comum e corriqueira, as pessoas feridas, ainda são alvos do preconceito dos profissionais da justiça e da sociedade, razão esta, que muitas dessas vítimas deixam de denunciarem seus algozes. É o bis idem da dor, são incriminadas por terem sido vítimas de um crime. Desse modo, a sociedade as faz sentirem diminuídas, experienciando novos sofrimentos, levando-as vitimização secundária.

Desses anos de labor no judiciário, sou testemunha dos esforços das vítimas e/ou de parentes, clássico caso Daniela Peres, onde sua mãe Glória Peres , lutou de forma hercúlea, para tornar o homicídio em crime hediondo. É a sociedade movimentando-se para que os legisladores reconheçam e criem mecanismos e normas mais rígidas capazes de coibir os instintos primitivos e violentos do ser.

Somos testemunhas, em especial, da violência doméstica contra crianças e mulheres, antes velada, pela ausência de norma jurídica, hoje explicita, ocorrendo em nome do amor, assim definido pelo autor.

Isto posto, ela faz-se presente de forma contundente nos relacionamentos amorosos, em particular, sendo o agente ativo, pessoas íntimas, que possuem relação de confiança com o agente passivo. Neste rol, envolve-se também, filhos, pais, sogros e outros parentes, pessoas que dividem o mesmo teto e até mesmo vizinhos e amigos.

Irrefutável que a violência doméstica está enraizada sobremaneira na vida social de muitas famílias, e que passa a ser entendida como uma situação normal, “está seguindo o ciclo de violência familiar”, tratam-na como “maldição hereditária”.

Imagem de Ralf Seemann por Pixabay

Nesse diapasão, crianças e mulheres são tratadas como propriedade e objetos pessoais de  seus atormentadores e, para conter o ímpeto em combater a violência contra a criança e adolescente, fora decretada, sancionada e regulamentada a Lei   8.069/1990, ECA- Estatuto da Criança e Adolescente, cujo estatuto é definido como sendo o conjunto o ordenamento jurídico, com objetivos para ofertar proteção dos direitos da criança e do adolescente. A pedra oblonga legal e regulatória dos direitos humanos de crianças e adolescentes.

A Lei 12.015/09, a qual versa sobre os crimes contra a dignidade sexual contra crianças e adolescentes, veio corroborar com as alterações necessárias às vítimas, quando modificou o texto do   Art. 3o  o  Decreto-Lei nº 2.848, de 1940, Código Penal, o qual fora acrescido os seguintes artigos:

“ 217-A Estupro de vulnerável , 218-A Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente , 218-B “Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável , 234-A- Aumento de pena , 234-B-   Os processos em que se apuram crimes definidos neste Título correrão em segredo de justiça.” e 234-C- fora vetado em virtude do tipo penal estar previsto no art. 218-B.”

Imagem de Sam Williams por Pixabay 

Os artigos 217-A e seguintes, são os mais corriqueiros nas pautas de julgamento do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. Antes dessa alteração, o crime de Estupro era próprio, exigia-se a condição de ser mulher para que ocorresse o declinado crime. Com advento dessa alteração essa figura desaparece e uniformiza, todas as crianças que sofrem violência sexual é estupro, seja ele menino ou menina.

Imagem de Alexa por Pixabay 

Corroborando com esse ordenamento, visando menor exposição da vítima, fora estabelecida a Escuta Especializada e Depoimento Especial, Decreto nº 9.603/2018, que regulamenta a Lei nº 13.431/2017, com fundamento em conceder tratamento diferenciado à criança e/ou ao adolescente que é vítima ou testemunha de violência, preservando-lhe a saúde física e mental, visando dirimir os danos para com o desenvolvimento moral, intelectual e social .

Anterior a este ordenamento, a criança e/ou adolescente, vítima ou testemunha de violência, era exposto a repetir a cena e o crime por várias vezes. Seu primeiro depoimento era na Delegacia, a coleta do depoimento era sem o menor critério e zelo pela identidade das vítimas. Logo após, outro depoimento, este acontecia perante o Luiz, Promotor de Justiça, Escrivão, e pasmem, diante de seu algoz. E, não muito raro, a vítima era convocada para novos depoimentos para confirmação dos fatos. Era uma exposição cruel, ilimitada e desnecessária a quem já estava tão ferido.

Imagem de Marcos Cola por Pixabay 

Em virtude dessas exposições e formas desarrazoadas de coleta de provas, muitos depoimentos foram invalidados e concomitantemente, o autor não fora punido em virtude da negativa das vítimas, pois, uma vez estando tete a tete com o autor, suas ameaças tornavam-lhes passivas de serem concretizadas. Vítimas de violência sexual, sofrem as piores e mais cruéis ameaças, haja vista, o autor, possuir relação de confiança e próximo afetivamente da vítima, tais como pai, padrasto, avô, tio, amigo da família e vizinho, estes são os mais clássicos.

Com o advento da Escuta Especializada e do Depoimento Especial, as vítimas são poupadas de quaisquer contatos, mesmo que visual, com o suposto autor ou acusado, e/ou de outra pessoa que lhe traga medo, ameaça, coação ou constrangimento.

Imagem de Mahmur Marganti por Pixabay 

Assisti e acompanhei a luta de uma mulher, para penalizar seu cônjuge por tentativa de homicídio, por ser vítima de maus tratos , dos arroubos e desmande de seu cônjuge , Maria da Penha Maia Fernandes, em 1983, fora vítima de 2 (dois) homicídios, cuja lei recebeu seu nome face à sua incansável luta em punir seu agressor. Sua luta chegou aos portais dos Tribunais  Internacionais, CEJIL (Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional), e CLADEM (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher) contra a decisão, proferida em desfavor do conjugue, estavam favorecendo o autor, e pela vítima Maria da Penha à CIDH/OEA (Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos). Primeira denúncia acolhida pela OEA de violência doméstica.

Imagem de Marcos Cola por Pixabay

Decretada e Sancionada a Lei 11.340/2006- Lei Maria da Penha, violência contra a mulher:

“Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.”

Imagem de akiragiulia por Pixabay

Destarte, é imprescindível o entendimento de que a violência doméstica não se resume somente à violência física, o Art. 7º da lei em voga, versa sobre as maneiras diversas de violência, que muitas vezes antecedem o uso da força física, a violência psicológica, a violência sexual, violência patrimonial, moral.

Por tratar-se de crime cultural, muitas mulheres só creem ser violentadas quando há a violência física. E, em nome da união da família, quando não há mais sentido em estarem juntos, justificam-se aduzindo que suas genitoras, avós, passaram por estas situações, “isso é normal”, fator este que dificulta o afastamento e punição do agressor, quando em muitos casos, esse argumento, resultam em feminicídio.

Mesmo sendo declinado a necessidade de regulamentação e implantação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, ainda são poucas as Comarcas que os implantaram. Idealizados para dirimir outros crimes dos agentes públicos, pois, no ato do Registro do Termo Circunstanciados, quando ocorre nas Delegacias de crimes comuns, a mulher mais uma vez, tem que enfrentar situações constrangedoras e violadores de direitos.

Pode -se dizer que outra conquista da mulher, a Lei 13.104/15 – lei do Feminicídio, que alterou o art. 121 do Código Penal, incluindo o aludido termo, usado para o crime de ódio  baseado no gênero, assassinato de mulheres em violência doméstica ou por ter aversão ao gênero da vítima, misoginia,  sendo este uma qualificadora , aumento de pena:

“§ 7º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado: I – durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; II – contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência ; III – na presença de descendente ou de ascendente da vítima.” (NR).

Imagem de Diana Cibotari por Pixabay

Em suma, diante de estudos para aumento de pena, classificar novas qualificadoras para aumentar as penas, recursos usados para incrementar a punição, parece que nada intimida ou retrai o instinto agressivo e assassino dos homens, aqui não de forma genérica e sim, sexo masculino, haja vista o crescente aumento da violência contra a mulher, criança e adolescente.

        Imagem de succo por Pixabay

Confesso, quando do julgamento de alguns crimes, diante de tantas atrocidades contra uma pessoa e, em especial uma criança, não há como não verter -me lágrimas.

Créditos: Rondinelli Ribeiro

 Muitos diziam-me que com o tempo eu deixaria de impactar-me, já se vão quase 30 anos de judiciário, não perdi a capacidade em indignar -me, tampouco de solidarizar com o sofrimento alheio. Pelo contrário, conhecendo a realidade dessa violência, enveredei-me para a graduação em psicologia, para, entender o ciclo da violência e idealizar forma de trabalhos sociais para associar o direito com a psicologia, pois, o direito, quase sempre é draconiano, apenas dirimi os efeitos e as causas não são trabalhadas. Creio que essa geografia da violência, somente será dirimida, quando categorizá-la como questão de saúde pública.   E assim, finalizo meu relato.

 

Referências

 

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988, Disponível  em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art226%C2%A78. Acesso em: 11 março 2023.

                   Decreto  – Lei nº 2.848, de 1940- Código Penal

_________Decreto -Lei nº 3.914, de 9 de dezembro de 1941.

                   Lei 11.340/2006

                   Lei n° 12.015/2009

                   Lei nº 13.431/2017

SITES ACESSADOS

http://www.bireme.br/

https://www.cnj.jus.br/

https://www.conjur.com.br/2023-mar-11/campanha-stj-reforca-apoio-mulheres-vitimas-violencia- Acessado em 10.03.2023

 

 

 

 

 

 

 

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Medidas socioeducativas: um discurso moralista

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Hoje, após um longo atendimento a um adolescente indignado com a conduta da maior parte dos profissionais da área de disciplina nos Centros de Atendimento Socioeducativo, especialmente onde trabalho, reflexões foram surgindo sobre o sistema socioeducativo imputado aos jovens cujo reconhecimento e prestígio é obtido pelo modo como se relacionam com as leis e regras básicas de convivência com o outro em nossa sociedade.

L. é um jovem de 17 anos. A restrição de liberdade se deu em razão de um sequestro mal sucedido. Reside em uma grande comunidade na cidade de São Paulo. Revólveres, bandidos, drogas, sexo, violência fazem parte do seu dia a dia.

Há nove meses realizo os atendimentos psicológicos, ora individualmente, ora em grupo. Neles, seria mais fácil circunscrever os desejos de L. aos meus: de que a medida socioeducativa serviu como um momento de reflexão e arrependimentos onde pôde se rever enquanto cidadão de direitos e deveres. Bonito, se não fosse inverídico.

L. costuma ser bem-humorado, embora oscilante. Os atendimentos (des)contraídos permitem que seus anseios e desejos sejam colocados sem retaliação. L. gosta de intensidades, ainda que tenha uma vida breve; gosta de luxo, mas não quer se enveredar pelo caminho do trabalho, tampouco dos estudos. Ao mesmo tempo, é divertido, ama sua família e tem flashes de arrependimento por agir de modo tão egoísta. É mais fácil para ele do que para mim.

Há alguns meses tenho pensado nas falhas da medida socioeducativa de internação e o porquê de tantas reincidências (confesso que já prevejo a de L.). Em que pesem os fatores sociais, culturais, econômicos e psicológicos em que os adolescentes estão inseridos, procurei rever meus métodos e os da instituição onde atuo.

É neste momento de auto-avaliação como profissional que o atendimento realizado a L. se insere.  Hoje, ao comentar sobre seu cotidiano, ficou irreconhecivelmente irritado. Inicialmente, desculpou-se comigo, como se não pudesse se permitir a expressão de sentimentos considerados negativos. Ao perceber meu interesse e tranquilidade em escutá-lo, L. prossegue, chega a levantar-se e encenar situações.

A irritação, ironicamente, era com o sistema de justiça aplicado a todos aqueles que cometem crimes: “Por que não somos tratados com respeito aqui dentro”, dizia ele. “Aqui dentro é fácil oprimir… Andar com um rádio no bolso como se fosse um três oitão”, prosseguiu. Em outro momento, observou: “A regra tinha que ser a mesma. Funcionário bateu não dá nada, então a gente tem que poder bater sem dar nada”. Procurei, descrente, asseverar que ninguém estava ali para agir e nem sofrer com violência.

Disse por dizer. Gostaria de garantir a paz pelo qual L., em outras palavras, procurava.

A medida socioeducativa de internação deveria possibilitar que os adolescentes vivenciassem um ambiente menos violento daquele já trazido por eles ao chegar à instituição. De nada adiantam palestras educativas ou grupos temáticos sobre a paz quando somos incapazes de oferecê-lo na prática, no cotidiano institucional. A violência continua sendo uma rotina diária.

L. possivelmente estava irritado porque falhamos todos. Os sermões e discursos moralistas voltados ao “desenvolvimento de sua capacidade crítica e empática” são uma falácia, porque são hipócritas. Não conseguimos provar a ele que é possível conviver sem sermos capturados pelo poder e violência. E é exatamente isso que L. procurava (e, possivelmente, precisava).

Assisto, assim, incólume, chances de um recomeço serem desperdiçadas quase diariamente. A medida socioeducativa de internação deveria ser um momento de reflexão e mudança. Contudo, ao invés disso, tem cronificado e perpetuado posturas pelas quais a instituição, em verdade, deveria combater.

L., desejo que encontre a paz pela qual você não se acostumou a encontrar e que, paradoxalmente, você insiste em procurar. Obrigada pela confiança, sempre.

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