Resumidamente, o programa em questão tem três dimensões que se entrelaçam: o incentivo para que médicos – estrangeiros e brasileiros – fixem-se e trabalhem em áreas carentes de profissionais (pequenos municípios e periferias de grandes cidades); o investimento em infra-estrutura (construção e melhoria de unidades de saúde nos municípios que se cadastrarem no programa, compra de equipamentos, investimento em hospitais universitários etc.); além de uma dimensão que diz respeito à formação dos médicos (aumento do tempo de duração do curso de seis para oito anos e aumento do número de vagas tanto para a graduação quanto para a residência médica)1. Cada uma dessas dimensões mereceria, por si, uma análise mais aprofundada, o que – obviamente – foge do objetivo deste texto.
É importante – contudo – que se note que não é necessária muita argúcia e nem é preciso nos determos tempo demais sobre o que se tem dito na mídia, para que possamos rapidamente concluir que o debate em torno do Programa Mais Médicos está temperado de ignorância, desinformação, alienação política, falácias mal disfarçadas e, frequentemente, uma pitada de arrogância.
As entidades médicas se mostram terminantemente contra o programa e baseiam seu posicionamento, principalmente, no fato de que a importação de médicos não obedecerá a legislação vigente. O Revalida – exame ao qual médicos, brasileiros ou não, formados fora do Brasil, devem se submeter caso queiram exercer a profissão no país, não será necessário para os médicos estrangeiros vindos através do Programa Mais Médicos.
O Revalida garante que uma instância superior julgue e certifique a habilitação do profissional, baseado no fato inquestionável de que aquele que é atendido por um médico não tem, em geral, condições de julgar a expertise deste. Aliás, exame semelhante, destinado a médicos, está presente em grande parte dos países do mundo. Neste sentido, e sem entrar na questão sobre qual seria a melhor maneira de julgar os conhecimentos de um profissional (talvez, o Revalida não seja mesmo a melhor forma), o exame é de fundamental importância, assim como é importante que, diante da incapacidade de um leigo em julgar as habilidades de um piloto de avião, algum órgão competente o faça. O Governo Federal, por sua vez, contesta a argumentação das entidades médicas, à medida em que o Programa Mais Médicos pressupõe uma capacitação com duração de três semanas para os médicos estrangeiros a ele vinculados, ao final das quais o profissional será avaliado, podendo ser desligado do programa em caso de reprovação1.
Outro argumento corrente das entidades médicas e que faz parte do discurso oficial da classe (como se pode ver no link a seguir: http://www.crmpb.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=22138:a-solucao-nao-e-f..) é o de que não faltam médicos no Brasil, já que o país, com cerca de 1,8 profissional para cada mil habitantes, teria mais médicos do que o que é preconizado como ideal pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que seria 1 profissional para cada mil habitantes.
Misteriosamente, aqueles que divulgam tal dado, mesmo em textos acadêmicos, jamais esclarecem exatamente de onde o tiraram e não mostram qualquer documento, trabalho ou estudo da OMS que o confirme. Neste ponto, não se pode deixar de comentar, em nome de um debate honesto e informativo, que o motivo de tal omissão é tão simplesmente por ser esse um dado falso e a divulgação dele só pode se justificar pela ignorância ou pela intenção de confundir. A Organização Mundial da Saúde não recomenda qualquer proporção ideal médico/habitante e o motivo disso é claro como o Sol: afinal, como se poderia recomendar a mesma taxa, seja ela qual for, de modo a contemplar lugares tão díspares como, por exemplo, a Amazônia, o Saara, Tóquio e São Paulo? E é exatamente pelo mesmo motivo que a proporção inglesa de 2,7 médicos para cada mil habitantes, almejada pelo Governo Federal, é tão arbitrária e aleatória quanto qualquer outra, já que dois países cultural, geográfica, histórica e politicamente tão distintos quanto a Inglaterra e o Brasil têm certamente necessidades de saúde amplamente diferentes.
Não se pode deixar de comentar, também em nome da honestidade, a respeito do uso político e eleitoreiro que a presidente Dilma Rousseff tem feito do Programa Mais Médicos e, assim como outras partes envolvidas no debate (incluindo aí as próprias entidades médicas), o discurso da presidente, não raro, visa mais confundir que esclarecer, de forma que alguns dados são obviamente manipulados. É interessante e curioso notar, por exemplo, que o discurso proferido pela presidente no dia 21 de junho deste ano, após as manifestações do dia dezessete, onde Dilma prometeu trazer de imediato milhares de médicos do exterior2, o que causou pruridos entre as entidades que representam a classe, foi “coincidentemente” seguido da publicação, apenas 12 dias depois, de um estudo do IPEA (órgão do governo) que aponta a Medicina como a carreira mais bem remunerada entre as quarenta e oito carreiras universitárias pesquisadas3.
Ora, em um país como o Brasil, em que o salário médio de profissionais de nível superior, segundo o próprio IPEA3, não passa de R$ 2.400,00, não se pode dizer francamente que um médico ganhe pouco (segundo o mesmo estudo, o salário médio do médico brasileiro gira em torno de R$ 8.500,00). O salário inicial de um médico na Inglaterra, segundo site oficial do próprio governo inglês, equivale a algo em torno de R$ 6.400,004, ou seja, mais baixo do que o salário de R$ 10.000,00 oferecido pelo Programa Mais Médicos. É claro que, considerando os benefícios sociais a que os ingleses têm direito, a comparação não pode ser feita assim de forma direta e sem as devidas ressalvas.
Contudo, a imagem do médico – divulgada pela imprensa, disseminada socialmente e apoiada pelo discurso oficial do governo – como um profissional nababescamente remunerado e da Medicina como uma profissão que garantirá o enriquecimento fácil daquele que a exerce faz parte de um conjunto de manobras claras para a manipulação da opinião pública e tem – por consequência – efeito danoso à imagem e à representação social que tem a Medicina e os médicos como um todo. Pintar a Medicina com essas cores é esquecer outros matizes que talvez demonstrem que o que se tem demandado desse profissional, muitas vezes, está além de suas possibilidades pessoais.
Inúmeros estudos têm demonstrado, com dados estatísticos bem consistentes, que a vida profissional dos médicos, no Brasil e no exterior, não parece ser exatamente esse mar de rosas que se pinta. Se não, como explicar o fato de os médicos mentalmente adoecerem mais5 e se matarem mais do que a população em geral?6,7,8,9,10. Como explicar o resultado de um estudo escocês, que mostra que os médicos têm duas vezes mais chance do que outros profissionais tanto de serem dependentes de álcool quanto de serem tratados por doenças afetivas?11 O que significa o achado de que os médicos, quando comparados a outros profissionais de mesmo nível sócio-econômico, tendem a ter casamentos mais pobres, além de fazerem mais uso de tranquilizantes e anfetaminas?12
Muitos outros aspectos dessa discussão não têm sido convenientemente abordados pelos diversos setores que se ocupam da questão, ora por ignorância ora por leviandade. Entre eles, os quase 15 bilhões de reais que serão investidos (boa parte deles nos municípios) em vésperas de uma campanha eleitoral.
Contudo, há uma questão maior e anterior, que perpassa o Programa Mais Médicos e que não tem sido abordada seriamente, que é o fato de se atribuir ao médico a responsabilidade quase exclusiva pela melhoria (e, consequentemente, pela atual precarização do Sistema Único de Saúde), como se um bom sistema de saúde fosse feito apenas por médicos. Tal fato representa uma flagrante contradição em relação ao que o próprio SUS preconiza: um conceito ampliado de saúde que reconhece a importância de outras disciplinas na construção de um saber e de uma prática holísticos nessa área. A hegemonia da Medicina frente a outras disciplinas da área da saúde é algo apregoado aos quatros ventos pelas entidades médicas e, nesse momento, aparentemente, os médicos estão colhendo os frutos de sua própria arrogância classista.
A ideia de saúde baseada em um modelo biologicista, em que a Medicina aparece como atriz principal, tem se mostrado claramente insuficiente para responder às demandas de saúde da população, uma vez que aborda o homem a partir de uma mirada única, transformando-o em um mero depositário de órgãos e tecidos e à doença em um simples desarranjo desses órgãos, sem que se leve em conta os muitos outros aspectos que contribuem para a saúde ou o processo de adoecimento humano. Tal questão é algo que nem as entidades médicas nem o Governo Federal abordam francamente no debate, pois – aparentemente – esse é um ponto de convergência em seus discursos, já que tal forma de se fazer saúde interessa a ambas as partes neste momento.
É necessário que se faça notar que aqui não há uma crítica à Medicina em si, mas à transformação do modelo biomédico em prisma único através do qual se deve olhar a saúde. Nesse sentido, qualquer outro modelo que não permitisse uma ideia integradora do processo de adoecimento humano seria tão danoso quanto o ora hegemônico.
Em relação a isso e para finalizar este texto, que já não está tão curto quanto manda o bom senso, torço para que outras profissões da área da saúde se organizem e exijam sua participação no programa em questão, sob pena de que se vejam transformar em meras coadjuvantes no processo de construção SUS e de que fiquem omissas diante do Programa Mais Médicos, que – a rigor – representa um reafirmação espetaculosa e oficial do modelo biologicista acima comentado.
Quem sabe assim, ao invés de Mais Médicos, pudéssemos realmente alcançar mais saúde?
Referências:
1.Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/area/417/mais-medicos.html. Acessado em 25 de julho de 2013.
2.Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/dilma-comenta-os-protestos-no-brasil-leia-a-integra-do-discurso. Acessado em 25 de julho de 2013.
3.Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/radar/130703_radar27.pdf
4. Disponível em: http://www.nhscareers.nhs.uk/explore-by-career/doctors/pay-for-doctors/. Acessado em 25 de julho de 2013.
5. BENNETT G. The wound and the doctor. In: Healing technology and power in modern medicine. London: Secker and Warburg, 1987:14-28.
6. SIMON W, LUMRY GK. Suicide among physician-patient. J Nerv Ment Dis 1968; 147(2): 105-12.
7. ROSS M. Suicide among physicians: a psychological study. Dis Nerv System 1973; 34(3): 145-50.
8. RICHINGS JC, Khara GS, Mc Dowell M. Suicide in young doctors. Br J Psychiat 1986; 149: 475-8.
9. ROSE KD, ROSOW I. Physicians who kill themselves. Arch Gen Psychiat 1973; 29: 800-5.
10. AGARIE CA, LOPES PS, CORDÁS TA. Suicídio, “Doença das condições do trabalho” entre médicos e estudantes de medicina. Arq Med ABC 1983; 6(1:2): 5-7.
11. RUCINSKI J, CYBULSKA E. Mentally ill doctors. BrJ Hosp Med 1985;33:90-4.
12. VAILLANT G, BRIGHTON J, McARTHUR C. Physicians use of mood-altering drugs. N Engl J Med 1970;282:365-70.
Ultimamente, temos visto na mídia diversas manifestações, tanto individuais quanto coletivas, relacionadas ao Programa Mais Médicos, do Governo Federal. As entidades médicas andam em polvorosa com a promessa de importação de médicos estrangeiros para o país e não é diferente com a população em geral, que tem se manifestado ora a favor ora contra o programa. Diversos dados, estatísticas e opiniões (referentes ao número de médicos no Brasil, aos benefícios e malefícios de um programa como esse etc.) têm povoado jornais, televisão, revistas e sítios naweb.