A Jornada de “Lady Bird”: a caminhada para a maturidade e os laços familiares

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Para cada adolescente que se torna independente, há um adulto lutando para desapegar.

Aos 17 anos, Christine “Lady Bird” MacPherson (Saoirse Ronan) está no último ano do colégio católico e enfrenta os dilemas da adolescência, como o primeiro amor, a descoberta do sexo, a tentativa de ser popular na escola e a relação tumultuosa com sua mãe, Marion (Laurie Metcalf). No filme “Lady Bird – A Hora de Voar”, Christine deseja fazer faculdade longe de Sacramento, Califórnia, uma ideia firmemente rejeitada por sua mãe. Lady Bird, como a jovem de forte personalidade exige ser chamada, não se dá por vencida e leva adiante o plano de ir embora. Enquanto sua hora não chega, ela se divide entre as obrigações estudantis, o primeiro namoro, os rituais de passagem para a vida adulta e inúmeros desentendimentos com a mãe.

O filme foi indicado a cinco Oscars: melhor filme, melhor atriz para Saoirse Ronan, melhor atriz coadjuvante para Laurie Metcalf, melhor roteiro original e melhor direção para Greta Gerwig, que se tornou a quinta mulher a ser indicada na categoria.

Em “Lady Bird”, as relações familiares desempenham um papel central, evidenciando a essência do gênero ‘coming of age’, que trata das inevitáveis mudanças da adolescência. A família, como primeira organização social, desempenha um papel crucial ao impor expectativas, cobranças e esperanças. Esse impacto é perceptível especialmente durante a adolescência, quando se espera que se apresente ao mundo a pessoa que se está escolhendo se tornar. Por isso, parece estranho que muitos filmes dessa fase tratem os pais como meros coadjuvantes.

“Lady Bird” ilustra magistralmente esse cenário ao focar na relação mãe-filha. Embora o título do filme seja o alter ego da protagonista, Christine, o título provisório era “Mães e Filhas”, reforçando que toda história de amadurecimento tem dois lados: o jovem que aprende a amadurecer e o pai que aprende a dizer adeus. Enquanto os adolescentes anseiam por sair da casa dos pais, estes enfrentam seus próprios conflitos internos ao aceitar a liberdade dos filhos. “Lady Bird” se destaca ao mostrar o protagonismo “escondido” de Marion, além de como a força de uma personagem exerce influência sobre a outra.

                                                                                                  fonte: A24

A cena após a discussão entre Lady Bird e sua mãe (que terminou com Lady Bird pulando do carro) mostra que ela escreveu “f*** you, mom” em seu próprio gesso imobilizador. Detalhe interessante que acrescenta à sua ,ainda infantil, rebeldia.

O filme intercala cenas de Christine com amigos, professores e namorados com cenas dela e sua mãe, mostrando como os acontecimentos de uma esfera desencadeiam os da outra. As interações entre Christine e Marion, explosivas ou discretas, são as que mais se destacam, dando substância ao que poderia ser apenas mais uma comédia adolescente sobre uma garota mimada se rebelando.

SEndo caracterizado pelo gênero ‘coming of age’, Lady Bird captura a transição turbulenta da adolescência para a vida adulta, explorando relacionamentos amorosos, pertencimento, desentendimentos familiares e a busca por novas experiências. Para Christine, a universidade distante representa a oportunidade de se libertar das imposições familiares, da situação econômica e da religião. Lady Bird busca um recomeço, experimentando a existência sem as correntes de sua origem. A cena inicial do filme destaca o conflito entre gerações, com Christine tentando se distanciar de tudo o que a família representa, adotando um alter ego que a define e a separa do passado.

O clímax ocorre quando Christine é levada ao aeroporto pelos pais para embarcar para Nova Iorque, onde cursará faculdade. A instabilidade da relação entre Christine e Marion é evidente. Há um momento desconcertante em que Christine pergunta se a mãe a acompanhará até o portão de embarque, e Marion responde que não, citando o custo do estacionamento. Quando Christine sai do carro, Marion começa a chorar enquanto dirige sozinha, tentando conter suas emoções. Ela retorna ao aeroporto, mas já é tarde demais; Christine havia alçado voo. E é nesse momento que fica claro o primeiro contato de Marion com o ninho vazio, visto que o irmão mais velho de Christine não tem o mesmo ímpeto de sair de casa o mais rápido possível.

Essa transição, conhecida como  ninho vazio, ocorre quando os filhos deixam a casa dos pais para seguirem seus objetivos de vida. Os pais perdem a função antes exercida na criação dos filhos, afetando diretamente o psicológico deles. A maturidade, embora desejada durante o processo de amadurecimento dos filhos, passa a ser motivo de solidão, e muitas vezes, sem perspectiva do que fazer para o futuro, perdendo até mesmo a visão do casamento depois dos filhos irem embora. Sentir saudades de filhos distantes não é incomum, e se preocupar também não. Porém, quando falamos da síndrome, esses sentimentos são de sofrimento e depressão, causando até mesmo reações físicas nos pais.

 fonte: A24: Universal Pictures Focus Features

Lady Bird é o raro filme que reconhece plenamente a complexidade do amor entre mãe e filha, bem como como as melhores intenções dos pais para com o filho podem ser obscurecidas ou confusas por má comunicação ou problemas pessoais.

Por outro lado, o sofrimento do jovem adulto é marcado por desafios emocionais, sociais e econômicos durante a transição para a vida adulta.  Portanto, a transição para a vida adulta é caracterizada por uma série de mudanças e eventos específicos, incluindo concluir a escolaridade, ingressar no mercado de trabalho, casar e tornar-se mãe ou pai. Em certa medida, a juventude é mais uma etapa de assumir grandes responsabilidades. No entanto, devido às diferenças de classe social, gênero e diversidade cultural e étnica, essas experiências emocionais variam em sociedades e histórias específicas.

Nas cenas finais do filme “Lady Bird”, é possível ver a protagonista se colocando em risco, bebendo com desconhecidos e andando sem rumo pela nova cidade onde se encontra. Ela liga para os pais: “Sou eu, Christine. É o nome que vocês me deram. É um bom nome” e fala com a mãe, demonstrando saudades de casa. O filme acaba com as falas de Christine: “Eu te amo. Obrigada.”Assim, é nítido que algumas das expectativas com o sonhado mundo de Lady Bird foram quebradas e ela está enfrentando as dificuldades da nova vida adulta.

Os jovens adultos também passam pelo luto de sua infância/adolescência, e a atuação do psicólogo pode ser um aliado nessa turbulenta fase. A psicoterapia para o jovem adulto é recomendada quando há sofrimento no momento em que o jovem passa a fazer escolhas de forma mais independente. O processo de amadurecimento pode acarretar ambivalências e angústias intensas frente ao desafio que é se tornar adulto na nossa sociedade. Aspectos como classe social, raça e gênero impactam e determinam as experiências emocionais do jovem.

Diante dessas demandas, a saída de casa de um dos filhos pode ser um período turbulento tanto para quem vai quanto para quem fica. Um psicólogo qualificado desempenha um papel crucial para os filhos que estão saindo e para os pais que estão ficando. A atuação do psicólogo oferece um espaço seguro para que os jovens e seus pais expressem suas preocupações, ajudando-os a desenvolver resiliência e estratégias de enfrentamento. O psicólogo trabalha para diminuir o estigma em torno da saúde mental, facilitando o acesso a tratamentos e promovendo a importância do bem-estar psicológico. Além disso, ele pode orientar na construção de identidade e autonomia, ajudando a navegar as pressões sociais e expectativas de futuro.

Lady Bird, 2017 – Estados Unidos

Direção: Greta Gerwig

Roteiro: Greta Gerwig

Elenco: Saoirse Ronan, Laurie Metcalf, Tracy Letts, Lucas Hedges, Timothée Chalamet, Beanie Feldstein, Stephen McKinley Henderson & Lois Smith

Fotografia: Sam Levy

Trilha Sonora: Jon Brion

Montagem: Nick Houy

Design de Produção: Chris Jones

Referências

GERWIG, G., Lee, B., & McWilliams, J. (2017). Lady Bird. Universal Picture.

Hassan, Nuha. Lady bird: the complex love story of a mother and daughter. Disponível em <: https://medium.com/narrador-personagem/lady-bird-e-a-import%C3%A2ncia-das-rela%C3%A7%C3%B5es-familiares-na-narrativa-coming-of-age-439fc6b7784 >. Acesso em 20 de maio  2024.

Telavita. A forte saudade do filho e a síndrome do ninho vazio. Disponível em <: https://www.telavita.com.br/blog/sindrome-do-ninho-vazio/ >. Acesso em 20 de maio de 2024.

FERREIRA, T. L. Aspectos psicossociais do ninho vazio em mulheres: uma compreensão da psicologia analítica. 2012. Dissertação (Mestrado em psicologia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Disponível em: . Acesso em 22 mai. 2024.

HERDAYANTI, Kicki.; SATRIA, Robby. Psychological Conflict Of The Main Character Reflected In Lady Bird Movie . Ejournal Universitas Putera Batam  Vol. 8 No. 2 (2021): JOURNAL BASIS UPB  . DOI:  < https://doi.org/10.33884/basisupb.v8i2.3766> .

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A romantização da maternidade e as consequências de quem a vivencia

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A romantização e até mesmo a naturalização da maternidade são fatores que podem desencadear consequências que impactam diretamente no bem estar físico e psicológico das mulheres.

A concepção de amor materno costuma estar vinculado a algo natural, ao passo que encontra-se correlacionado a essência e feminilidade da mulher, podendo complementar com o que a autora Resende (2017) traz “o tema do amor materno geralmente envolve uma série de associações condicionadas a sentimentos naturalmente positivos na condição de ser mãe, muitas vezes levando a uma divinização desse estado como algo abençoado pela natureza”.

Apesar disso, em seus estudos, Resende (2017) salienta que essa concepção em relação ao papel de mãe como algo relacionado ao afeto, só se torna evidente a partir do século XVIII, em que de acordo com a autora, as palavras amor e materno se tornam sinônimos nesse contexto, trazendo à tona os sentimentos em relação a esse vínculo e consequentemente como sentido para o papel da mulher enquanto mãe. Como consequência desse novo olhar para o papel materno, a autora traz a visão de Badinter (1985), em que é expresso que após essa mudança de paradigma, se torna incumbido para as mulheres o tornarem-se mães, alimentando assim, o pensamento de que toda mulher possui o desejo de maternar e como esperado, o amor incondicional pelo filho.

Enquanto mulher na atualidade, é percebido de maneiras “suaves” as formas pelas quais a sociedade tenta impor e/ou passar que a figura feminina “aflore” o lado materno, isso é possível notar por meio dos brinquedos dados para as meninas quando criança, como por exemplo, bonecas que trocam fraldas, que precisam alimentar ou vestir, brinquedos de panelas, fogão como forma de estimular o cuidado com as tarefas domésticas. Sobre isso, as autoras Marques et al. (2022) traz em seu trabalho que as meninas/mulheres são “transformadas em corpos dóceis onde prevalece a imagem de esposas e boas mães, que sabem cozinhar e cuidar da casa”.

“(…) em determinados contextos sociais as mulheres são naturalizadas em ambientes domésticos, nos quais a maternidade é considerada como uma condição do feminino e pode estar fortemente relacionada às questões identitárias da mulher, sendo considerada um dever. Historicamente, os homens não são instruídos a serem pais, mas trabalhadores, políticos, engenheiros, jogadores, bem como a constituir diversos atributos que reafirmem a masculinidade, como força e poder. Por outro lado, as mulheres, desde o seu nascimento, são ensinadas a serem esposa e mãe, são ensinadas a cuidar de bonecas como se fossem bebês, a cozinhar com panelas em forma de brinquedos e cuidar da casa; ou seja, o papel feminino é condicionado a características como pureza, delicadeza e fragilidade” (MONTEIRO; ANDRADE, 2018, apud Marques et al., 2022).

Apesar disso, as autoras Marques et al. (2022) pontuam que mudanças ocorreram e ainda ocorrem no contexto histórico e social trazendo mudanças sob a perspectiva do papel da mulher na sociedade, dando um novo espaço para a escolha ou não de exercer o papel de mãe. Mas, em contrapartida, ainda é possível encontrar mulheres em sofrimento ou experienciando a culpa pela cobrança em “formar uma família”. Isso se dá por meio dessa romanização e tentativa de naturalizar que a vida da mulher se baseia em “nascer, crescer, casar e ter filhos, netos e assim por diante”, sendo essa, uma cobrança para aquelas que não o deseja (MARQUES et al., 2022).

Para Tourino (2006), muitas se culpam por não se sentirem ou não agirem de acordo com os modelos valorizados na sociedade, por ocasião das normas inconscientemente internalizadas que se reproduzem através das gerações, integram a subjetividade feminina e modelam papéis (apud MARQUES et al., 2022).

Quando uma mulher se recusa a viver o processo de maternar, Marques et al. (2022) evidencia a visão de alguns autores que, normalmente são aquelas mulheres que geram estranheza ou até mesmo “choque” na sociedade, pois de acordo com a autora, seria como deixar o feminino “morrer”, já que isso seria parte da essência da mulher, levando para um nível de naturalização e romantização esse processo. Referente a essa romantização da maternidade, de acordo com o ponto de vista exposto pela autora Dias et al. (2020), tanto a sociedade quanto os canais de mídias sociais auxiliam na perpetuação do amor materno, de que esse é um momento de amor genuíno, puro, pleno, sinônimo de realização da vida, gerando uma visão errônea de que é viver um momento perfeito.

“O mito do amor materno afirma que a maternidade e o amor acompanham a mulher desde toda a eternidade e faz parte da natureza feminina. Porém, Badinter (1984) questiona a ideia do amor materno como algo inerente a todas as mulheres, pois ao se percorrer a história das atitudes maternas, nasce a convicção de que o instinto materno é um mito. Não existe nenhuma conduta universal e necessária da mãe. Ao contrário, o que constata-se é a extrema variabilidade de sentimentos maternos, ambições ou frustrações, segundo cada cultura. Dessa forma, a autora afirma que o instinto materno é um mito, pois é um sentimento que pode existir ou não, ser e desaparecer. Tudo depende da mãe e da história, sendo que não há uma lei universal nessa matéria. Destarte, a autora conclui que o amor materno não é inerente às mulheres, e sim adicional” (Damaceno et al. 2021).

Além de que, ao esperar por um momento “mágico” e repleto de boas experiências/vivências no papel materno ser um grande perigo, o período gestacional também acarreta consequências na vida da mulher, pois é o momento em que a mulher começa a lidar com mudanças das quais poderia não estar preparada para lidar de fato, como a transformação rápida e visível que ocorre no corpo, por exemplo, ganho de peso, surgimento de estrias, manchas na pele, inchaços pelo corpo, algumas podem até desenvolver alguns problemas de saúde como a Diabetes Mellitus Gestacional, hipertensão e outras complicações. Se constitui como “alterações físicas e psicológicas que vão resultar em mudanças que impactarão, significativamente, as experiências vividas pela gestante” (Facco; Kruel, 2014), fatores esses que ocasionarão mudanças no modo de viver dessa mulher com ela mesma, assim como com o parceiro e até mesmo a relação mãe e filho.

Quando uma mulher vivencia esse período de maneira saudável, contando com apoio familiar ou de amigos, que possuem uma renda financeira estável e que permite viver bem, pode-se dizer que ela conseguirá aproveitar a maternidade e saberá lidar com as dificuldades que surgirem, mas quando a mulher não conta com nenhuma dessas alternativas ou até mesmo quando cria a ilusão do processo da gravidez, do que é ser mãe e de como será esse momento, pode ser algo que trará como resultados frustração, sofrimento e até mesmo sentimento de culpa, pois é passado para a mulher/mãe, que ela consiga dar conta de tudo, ao passo que deve cuidar bem da criança, deve também cuidar de si e às vezes até do outro, ocasionando ainda, exaustão física e mental.

Trazendo à tona o que Dias et al. (2020) evidencia no sentido de que quando esses papéis que esperam que a mulher ocupe mas não é como fora idealizado, traz sofrimento quando não conseguem alcançar o esperado para elas socialmente, podendo trazer como consequência prejuízos psicológicos, situações de estresse, experienciando situações de tristeza e para aquelas que se tornam mães, mas não é como no conceito ilusório de maternidade que é exposto o tempo todo, podem ocasionar depressão pós-parto, crises ansiosas, entre outras situações.

“Sentimentos como ansiedade, incertezas, além do medo pelo aumento da responsabilidade frente à vinda da criança podem emergir. Esses fatores emocionais desencadeados pela maternidade, podem despertar a depressão pós-parto ou baby blues, conhecido também como tristeza pós-parto ou melancolia da maternidade, esse distúrbio pode ser caracterizado pela alteração de humor das puérperas entre o terceiro e o quinto dia após o parto, mas que geralmente, some com o tempo. Contudo, outras mulheres podem apresentar quadros depressivos mais graves, podendo implicar na capacidade diminuída para o autocuidado e para o cuidado com os filhos” (KROB et al., 2016; JORENTI, 2018 apud Dias et al. 2020).

No processo de maternar, algumas ilusões podem ser quebradas como, há mulheres que não conseguem realizar o aleitamento materno e com isso sentem-se incapazes, já que sempre é propagado a importância da amamentação para os bebês. Há também o mito do amor incondicional ao estar com o filho no colo e em algumas situações as mães, devidos a problemas pós-gestação como é no caso de depressão pós-parto, podem não sentir esse amor com o filho ou simplesmente não conseguirem sentir vontade de cuidar de si e da criança também e como consequência disso, podem viverem dias de culpa e mal-estar, principalmente quando enfrentam essas situações sem o amparo de uma rede de apoio.

“Outro ponto importante, é o enfoque dos sentimentos como anseios e incertezas, além dos fatores emocionais como estresse e frustração. Isso polemiza o que a mídia e sociedade mostram, através de uma visão romantizada, que difunde uma realidade apenas de amor e carinho, que nem toda mulher consegue alcançar” (Dias et al. 2022).

“(…) percebe-se uma dualidade do idealizado e o enfrentado à maternidade real, ocorre um abalo que pode gerar angústias nas mães ao não terem suas expectativas atendidas com a maternidade. Segundo Borsa, Feil e Paniagua (2007), a ruptura da personificação ideal da maternidade pode ser acompanhada por sentimentos de desapontamento, desânimo e desencantamento, além da sensação de incapacidade frente à maternidade. Em concordância, Rapoport e Piccinini (2018) apontam que é normal neste período as mães se depararem com sentimentos ambivalentes, ao mesmo tempo que elas doam tudo de si para o bebê, elas vivenciam a angústia de pouca ou quase nenhuma retribuição, sempre exigindo-se mais cuidados e atenção” (Marques et al. 2022).

Fonte: nicoletaionescu no iStock

Mulher com aparência de cansaço indo amamentar a criança/filho chorando.

Normalmente quando uma mulher torna-se mãe, costuma esperar que ela se dedique à maternidade, enquanto o homem, apesar de avanços na sociedade, ainda ocupa a posição de exercer a função de proteção e principalmente, prover a renda financeira como forma de “manter” essa família, “(…) Essa perspectiva equivocada de divisão de papéis faz muitas vezes com que as mulheres vivenciem uma sobrecarga, o que pode gerar uma gama de sentimentos, como angústia, tristeza, desamparo, frustração, entre outros” (Dias et al. 2022).

Os efeitos da cobrança em maternar e dessa romantização acerca desse papel, perpassa até as mulheres que decidem não se tornarem mães, mulheres que decidem focar em sua carreira profissional, aproveitar a vida e em até alguns casos, decidem não ter filhos para não “estragarem” seus corpos, mas, como a sociedade lida com esse desejo dessa mulher? Oliveira e Pereira (2023), traz em seu estudo que quando mulheres optam por não gestar uma nova vida, tornam-se pessoas excluídas de grupos ou experienciam o julgamento da sociedade. Isso acontece, pois de acordo com as autoras, a visão romantizada da maternidade não permite observar e compreender o lado das mulheres que escolhem não ter filhos e complementam com o estudo de Colores e Martins (2016), que não existe o “dom” de ser mãe, não é algo inato na mulher, mas sim, algo que deve ser considerado a subjetividade e o desejo do indivíduo. Já em mulheres que lidam com problemas de saúde que não permite engravidar, como em casos de infertilidade, as autoras Oliveira e Pereira (2023) expõem a visão de outras autores que dizem que essas mulheres costumam sentirem-se tristes e incompletas, experienciando a pressão social e até mesmo sentimentos de inferioridade.

Fonte: invincible_bulldog no iStock

Mulher em dúvida sobre quais caminhos seguir em sua vida: família ou carreira?

O fato de viver em uma sociedade em que ainda cobra o papel de ser mãe e que ainda impõe “a maneira correta de ser mãe” (por meio de como deve agir, sentir ou até mesmo o querer), se torna exaustivo tanto para quem possui o desejo quanto para quem não deseja tornar-se mãe. Independente da escolha de cada mulher, é algo deve ser respeitado e acolhido, pois é algo que muda por completo a vida da mulher, onde ela precisaria, em algumas vezes, precisaria renunciar planos e sonhos. Assim como há grandes dúvidas, medos, angústias sobre a criação de uma outra pessoa. Se faz necessário o acolhimento tanto familiar, social e até mesmo dos profissionais que acompanham essa mulher, independentemente de sua escolha, pois de acordo com Moraes (2016), citado por Dias et al. (2020), “(…) enfatiza que os fatores negativos podem ser minimizados através de uma atenção acolhedora e esclarecedora dos profissionais que acompanham a mulher (…)”.

 

Referências:

DAMACENO, Nara Siqueira; MARCIANO, Rafaela Paula; DI MENEZES, Nayara Ruben Calaça. As Representações Sociais da Maternidade e o Mito do Amor Materno. Perspectivas em Psicologia, Uberlândia, v. 25, n. 1, p. 199-224, 2021. 

DIAS, Tamires Alves; MENDES, Stéffane Costa; GOMES, Samara Calixto. Maternidade Romantizada: Expectativas e Consequências do Papel Social Esperado de Mãe. 2020.

FEITOSA, Fernanda Soares et al. Opressão Social de Mulheres Que Não Desejam a Maternidade: Estudo Bibliográfico Sob a Ótica da Psicologia. OPEN SCIENCE RESEARCH X, v. 10, n. 1, p. 1222-1240, 2023.

FACCO, Daiana; KRUEL, Cristina Saling. “O meu corpo mudou tão depressa”: as repercussões da gravidez na sexualidade feminina. Disciplinarum Scientia| Ciências Humanas, v. 14, n. 2, p. 141-155, 2013.

MARQUES, Christiane Jussara de Carvalho; SANTOS, Kassia Cintia dos; DANIEL, Natasha Saney Silva. A romantização da maternidade e seus impactos psicológicos. 2022.

PEREIRA TAVARES DE ALCANTARA, P.; ALVES DIAS, T. .; DE CASTRO MORAIS, K.; DA SILVA SANTOS, Y. C. .; MARTINS DA SILVA, J. W. .; BASTOS FERREIRA TAVARES, N. .; CALIXTO GOMES, S. .; DE SOUSA MORAIS, A. B. Maternidade Romantizada: Expectativas do Papel Social Feminino Pós-Concepção. Revista Enfermagem Atual In Derme, [S. l.], v. 96, n. 40, p. e–021313, 2022. DOI: 10.31011/reaid-2022-v.96-n.40-art.1508.

RESENDE, D. K. Maternidade: Uma Construção Histórica e Social. Pretextos – Revista da Graduação em Psicologia da PUC Minas, v. 2, n. 4, p. 175 – 191, 5 jun. 2017.

 

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“Respire Fundo” – sombras da maternidade

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O filme “Respire Fundo” conta a história da personagem Julie (Amanda Seyfried) que é autora, desenhadora e escritora de livros infantis. De maneira sensível, a obra retrata a realidade por trás da maternidade e dos transtornos mentais, indo contra a lógica de que o papel de mãe é perfeito, quebrando de fato a romantização que impera na sociedade.

No decorrer do filme, temos acesso ao seu passado complexo. Em relação ao seu meio familiar na infância, a personagem sofreu violência física e emocional por parte do pai na infância. Sendo assim, os traumas a seguiram até o momento presente onde engravidou e se tornou mãe. As vivências passadas a moldaram e de certa forma repercutiram em dúvidas, questionamentos, receios e sofrimento. Apesar da ausência e afastamento do pai, suas lembranças a perseguem. Por essa razão, compreender a personagem se torna fácil. A atuação espetacular favorece a empatia pela sua história e pelos seus sentimentos; somos balançados pelo seu receio central se será uma boa mãe e se deveria se ausentar ou não da vida dos filhos, o que a faz repensar a própria sobrevivência.

Fonte: Freepik

A sociedade comumente romantiza a sociedade, quase que impedindo que a maternidade tenha o seu lado obscuro e desafiador. Por isso se constitui como um assunto tabu e bastante estigmatizado, que requer diálogos e reflexões para maior aceitação das infinitas facetas que a fase da maternidade pode possuir. 

O filme, então, é um grande ensinamento e de maneira singular, demonstra como a tristeza pode influenciar e impactar a vida de uma mãe, que mesmo com uma rede de apoio, com uma profissão estabelecida, não encontra sentido e não visualiza um futuro promissor ou o momento presente de gerar um filho e criá-lo, uma ação potente e bonita quando permeada de sentimentos funcionais e bonitos. A rede de apoio que a cerca também expõe a importância de se ter pessoas ao redor que saibam escutar e enxergar além… Ou seja, a obra traz exemplos nítidos de experiências que muitos atravessam na vida real.

Fonte: Freepik

No DSM-5-TR, versão mais recente e atualizada do manual de classificação, a “depressão pós-parto” não é apresentada e reconhecida como uma patologia específica. Entretanto, é incluído o especificador de episódio depressivo após o perinatal em até quatro semanas. A personagem se enquadraria em muitos dos possíveis sintomas, enfrenta prejuízos em sua vida em decorrência da sua vivência interna, muitas vezes silenciosas, porém que implica fortemente em reações e consequências na vida de uma pessoa. As consequências são vistas para além do emocional e mental, seu meio social e familiar também são afetados, o que corrobora com um Transtorno Depressivo Maior por indicador com início após o parto, no puérpero. 

A personagem realiza tratamento psiquiátrico e medicamentoso, expondo a importância do apoio especializado para o enfrentamento de transtornos mentais como a depressão. Medicação esta que é, de maneira analógica, como aquilo que devolve a cor ao seu mundo. Paralelamente, a personagem busca encontrar um sentido e se reencontrar, sobreviver… Na escrita e no desenho, consegue se expressar e se encontrar em certos momentos. 

O clímax da história de dá com a morte da personagem, que a mesma consegue descrever em uma de suas histórias infantis: ela relata um monstro que devorava as estrelas no céu e compara as estrelas com o seu amor pelos filhos, como algo que nem sempre seria visível, mas que sempre existiria de alguma forma os acompanhando. O sofrimento dela, apesar de silencioso, carregava uma potência estratosférica, repercutindo no seu desejo de alcançar uma perfeição e ser a melhor mãe que poderia sim, entretanto, a depressão e o peso da maternidade, tomaram forma e cresceram, fugindo de seu controle.

Essa obra cinematográfica representa uma fase da vida de muitas mulheres que se encontram em uma encruzilhada ditada pela pressão social e suscetíveis a terem transtornos psicológicos que podem afetar a sua saúde física e mental, intensificando os sentimentos de incapacidade e culpa perante a ação de ser mãe em um contexto novo e sensível como gerar um filho e criá-lo. Ou seja, é uma obra que caracteriza a vivência de muitas mulheres e por isso, de extrema importância para fomentar reflexões e diálogos acerca do assunto.

 

Referências:

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION – APA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5-TR. 5a ed, texto revisado. Porto Alegre: Artmed, 2023.

GONÇALVES A. L. C; SILVA J. A; PRETO V. A. Análise Reflexiva: Depressão pós – parto e suas consequências emocionais para o binômio mãe e filho no Brasil. UniSALESIANO Araçatuba. Disponível em: https://unisalesiano.com.br/aracatuba/wp-content/uploads/2021/06/Artigo-Analise-ReflexivaDepressao-pos-parto-e-suas-consequencias-emocionais-para-o-binomio-mae-e-filho-no-Brasil-Pronto.pdf . Acesso em: 13 jun. 2023.

RESPIRE FUNDO. Direção: Amy Koppelman. Produção de Trudie Styler e Celine Rattray. Estados Unidos: Stage 6 Films, 2021. HBO streaming.

 SCHWENGBER, D. D. DE S.; PICCININI, C. A.. O impacto da depressão pós-parto para a interação mãe-bebê. Estudos de Psicologia (Natal), v. 8, n. 3, p. 403–411, set. 2003. 

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Pensando fora da caixa: breve reflexão acerca da maternidade

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A sociedade na qual vivemos se constituiu permeada pelo patriarcalismo, que historicamente, posiciona a figura feminina em submissão a masculina, transpassada por papéis de gêneros, onde cada indivíduo deve desempenhar sua função pré-estabelecida. Para as mulheres, a maternidade por muito tempo foi classificada como uma questão necessária e obrigatória, julgava-se que, enquanto mulher, existe o dever em ter filhos, a atribuição fundamental que a vida lhe concedeu. De acordo com Caporal et al (2017), verifica-se que existe uma romantização  da  maternidade, colocando-a como realização da mulher, invalidando suas subjetividades e as opressões por eles experienciadas, sendo assim, mulheres que tomam a decisão de não serem mães, são pressionadas pela maternidade  compulsória,  considerada como  o propósito inato feminino, outro fator relevante a ser citado é extrema romatização da maternidade.  

Romantizar quer dizer tornar o fato mais romântico, doce ou agradável. No universo feminino, podemos perceber falas como “parem de romantizar a mulher”, abrindo discussão para o fato de que não somos diferentes dos homens: podemos falar alto, podemos não querer vivenciar o casamento e a maternidade. Então, ouvimos muito a frase: “Parem de romantizar a maternidade” como um pedido para que a sociedade mude o foco das matérias a esse respeito, ou que, pelo menos, admita que exista outro lado da maternidade que não aparece com frequência nas capas de revista. (SILVA; ARANHA, 2020, p.68).

Atualmente, mulheres ainda são cobradas, seja pela família ou amigos, com apontamentos sobre o ideal de felicidade, e que, enquanto mulher, ela só será completa quando for mãe, não é incomum que em conversas cotidianas, em que uma mulher expresse verbalmente o seu desejo de não ter filhos que frase como: “você vai mudar de ideia com o tempo”, “eu também pensava assim e hoje amo o meu filho”, “você vai se arrepender quando for mais velha”, “quem vai cuidar de você na velhice?”, “tomara que você tenha vários filhos”, entre outras frases que soam como uma maldição lançada contra aquela pessoa que escolheu não maternar. 

Fonte: Alleksana/Pexels.

Outro ponto importante para se pensar é, para os homens a perspectiva é o total oposto, sempre são considerados novos demais para analisar a possibilidade de paternidade e quando eles se deparam com tal responsabilidade, grande parte a rejeita, não sendo surpreendente os inúmeros casos de abandono paterno, que mesmo sendo muito numerosos, a importância que dão para rejeição de tal comportamento  não chega aos pés do mínimo da cobrança que as mulheres recebem. E além dos homens não receberem condenação familiar e social, muitas vezes ainda ouvimos discursos de defesa em relação a sua negligência.

O fato de homens mal participarem das discussões relativas à maternidade (ou mesmo à paternidade) já demonstra que não possui grande peso em suas vidas. Os raros que se apresentam como responsáveis pela maior parte da maternagem dos filhos expõem justamente a diferença na forma como são reconhecidos e tratados pela sociedade em comparação com mulheres que demonstram o mesmo envolvimento na criação dos filhos. Não relatam se sentirem oprimidos, mesmo que suas ações se distingam das de boa parte dos pais ou do que socialmente se espera que um homem faça em relação àqueles que concebe ou adota. (SOUZA, 2019, p. 66).

Quando uma mulher apresenta pensamentos relacionados a não maternidade, esses têm a tendência de incomodar, quando se adota uma postura, e um estilo de vida que não é composto por esses padrões definidos previamente. Em concordância com Rios e Gomes (2009), quando não se decidem pela maternidade, a mulher é vista socialmente com contestação, pois essa atitude vai na direção oposta ao papel social designado a mulher, dessa forma, mulheres que escolhem não ter filhos são classificadas como pessoas egoístas, entre outros atributos negativos, pelo simples fato de não quererem ser mães. 

Fonte: Kassandre Pedro/Pexels.

Ainda que seja possível observar que o feminino é rotineiramente rotulado, e designada para diversos papéis ao qual a mulher é “destinada”, ao longo dos anos também é viável apontar que essa formatação vem se alterando por meio de lutas sociais relevantes lideradas por mulheres em busca de equidade e autonomia, principalmente em relação ao próprio corpo, consoante com Araújo (2014), é necessário entender a maternidade enquanto processo natural vivenciado durante a vida de uma mulher, mas não colocar esse fator como parte essencial da identidade feminina, eliminando essa ideia de que é uma parte indispensável que deve ser experienciado por todas as mulheres. A maternidade compulsória estabelece que toda mulher foi criada para ser mãe, tal ideia foi naturalizada e pouco questionada, no livro “O Segundo Sexo” Simone de Beauvoir afirma que: 

(…) Não há nisso nenhum ‘instinto materno’ inato e misterioso. A menina constata que o cuidado das crianças cabe à mãe, é o que lhes ensinam; relatos ouvidos, livros lidos, toda a sua pequena experiência o confirma; encorajam-na a encantar-se com essas riquezas futuras, dão-lhe bonecas para que tais riquezas assumam desde logo um aspecto tangível. Sua ‘vocação’ é imperiosamente ditada a ela”.  

Ser mãe deveria ser resultado de uma decisão individual, não uma obrigação coletiva, principalmente quando a maternidade é imposta a todas as mulheres, e é colocada como algo idealizado, e uma função essencial para completar a vida feminina, porém isso é baseada em estereótipos que não levam em conta a subjetividade e individualidade de cada pessoa, além de excluir e ignorar os inúmeros desafios que ter um filho de forma não pensada podem gerar, sustentada por essa pressão social. A maternidade deve ser realocada como um caminho possível para aquelas que querem seguir nessa direção, e as mulheres que seguirem para outros lugares não deveriam ser julgadas, cobradas ou amaldiçoadas por isso, pois a natureza de uma mulher é complexa demais para ser restrita unicamente a ser mãe, para finalizar, é sempre importante ressaltar que, as mulheres deveriam ter suas escolhas respeitadas, optando ou não pela maternidade. 

 

Referências

ARAÚJO, Elisângela Lima. Representações Sociais da Maternidade Por Mulheres Adolescentes. Recife, 2014. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/10302. Acesso em: 07/06/2023. 

CAPORAL, B. R. et.al. Romantização da maternidade: reflexões sobre gênero. XXII Seminário Institucional de Ensino Pesquisa e Extensão [Anais], 2017. Disponível em: https://home.unicruz.edu.br/seminario/anais/anais-2017.pdf. Acesso em 17/05/2023.

RIOS, M. G.;GOMES, I. C. Casamento contemporâneo: revisão de literatura acerca da opção por não ter filhos. Estudos de Psicologia, v. 26, n. 2, p. 215-225, 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/j/estpsi/a/88yxf5HcJdYKY7DZv6ZmhDf/#. Acesso em: 27/05/2023. 

SILVA; Janaina, ARANHA, Maria de Fátima. Pode uma mãe não gostar de ser mãe? as controvérsias acerca do feminino. 1. ed. Curitiba: Appris, 2020.

SOUZA, A.L.F. “Me deixem decidir se quero ou não ser mãe!”: narrativas pessoais de mulheres sobre a maternidade nas mídias sociais. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/handle/1/14957. Acesso em: 09/06/2023. 

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Venda Nova: Bertrand, 1976.

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Não ter filhos como emancipação das mulheres e objetivação de novas formas de viver

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Sempre falam sobre a experiência de ser mãe como algo que todas deveriam ter. Como se uma mulher não estivesse completa se não engravidar ou “cuidar” de suas filhas e filhos. E a família cumpre papel central nesta suposta experiência de completude. Quando alguma mulher ousa em escrever ou diz algo sobre como é viver em uma outra possibilidade, sem filhos, ela passa para um outro status na sociedade. Quando ela ousa criticar a família patriarcal que vive de sugar as forças das mulheres e controlar seus corpos e suas ideias, são vistas como “loucas”, “anormais” e “histéricas”. Como poderia uma mulher viver fora dos padrões e dos parâmetros tão sublimes da família e da maternidade?

O primeiro ponto a se destacar em uma decisão como esta, a de não se acomodar em padrões, é dizer que nem sempre mulheres têm escolha. Não é fácil viver sobre a pressão da sociedade patriarcal e do seu reforço, sempre poderoso e sobrenatural, que é a religião. Para muitas são duas potências quase que intransponíveis. A família é o lugar de organização e controle da sexualidade e da capacidade reprodutiva da mulher exercida pelo homem como reafirmação dos valores morais do Estado. As leis sobre casamento, previdência social, aposentadorias e pensões são provas da condição da mulher dentro desta esfera. Não precisamos ir muito longe na legislação brasileira para encontrar registros sobre o como a mulher se tornava propriedade de um homem e de como quando ela o “traía” a ele pertencia o legítimo direito à defesa da honra o colocando, inclusive, na prerrogativa de cometer violência sobre ela. Não precisa muito para encontrar outros similares na história mundial ao longo da história.

É sobre quatro pilares (partes da totalidade sistêmica do capitalismo) que colocamos foco sobre a decisão de não ter filhos: o Estado, o capital, a família e a religião. Como já mencionado acima, o status da mulher na sociedade está sim definido por um Estado Patriarcal. Suas leis colocam as mulheres em condição de subordinação e subserviência. Demorou muito para que as mulheres superassem a educação como mera prática das “prendas domésticas”. Quando a mulher foi integrada ao mercado de trabalho foi força barata, flexível e sem qualificação, o que a colocava em situação de grande vulnerabilidade e abuso dos patrões, já que o medo de perder seus empregos e de não conseguir sustentar seus filhos era tudo que o que um patrão queria para super explorar suas capacidades sem limites. Como força de trabalho barata e precária e reprodutora do capital, foi se constituindo o que hoje chamamos de duplas e triplas jornadas de trabalho. Nem mesmo uma mulher sem filhos consegue se equiparar a um homem, porque a tarefa do cuidado (da casa, do homem, dos filhos, dos mais velhos) continua sendo seu destino e seu fardo.

Podemos falar também do ponto de vista da geopolítica. Países centrais e países periféricos também têm relações distintas sobre este tema. Ainda que não deixemos para trás as relações de classe e raça que estão absolutamente impingidas em todos os lugares do mundo, a relação de subordinação, dependência e desigualdade em que vivem os países periféricos, em especial os da América Latina e Caribe, torna a vida das mulheres ainda mais polivalente, multifuncional, consequentemente vulnerável e perigosa.

As “qualidades” e “virtudes” femininas são transformadas em meios para fazê-las mais super exploradas e violentadas. Ser mulher é o exercício da política do sofrimento cotidiano, e a função materna, quando rechaçada, a coloca em situação de maior mal estar ainda. Em muitas ocasiões, quando explicações como essa aparecem em tela para outras mulheres, criam-se situações de conflito entre elas. Como se a defesa da não maternidade, do não querer ser mãe, fosse uma agressão profunda àquelas que estão e exercem esta condição.

O fato é que ninguém deveria sentir qualquer mal estar em tomar decisões se vivêssemos em uma sociedade verdadeiramente justa, igualitária e respeitadora da diversidade e da diferença. Quando as próprias mulheres adotam essa postura de coerção em relação a outra é a prova mais iminente de que suas vidas foram confiscadas pelo capital e pelo patriarcado. A maternidade compulsória ou qualquer outra de suas expressões não pode e nem deve ser usada como parâmetro ou como única forma de existência das mulheres. Existem outras possibilidades e nenhuma delas deveria ser problema alheio. A lógica do patriarcado é implacável: coloca, inclusive, mulheres contra mulheres.

A consolidação do Estado burguês ainda no século XIX impôs, dentre tantas outras coisas, uma ideologia de classe que definiu de maneira mais proeminente os papéis de homens e de mulheres na sociedade. O discurso sobre a maternidade e a veneração da feminilidade se tornou o status mais alto e nobre que uma mulher poderia alcançar. Zelar pela educação, pela saúde e pela família consolidou a mulher casada como fortaleza moral da família. Mulheres tratadas como unidades reprodutoras, simulacro dos imperativos políticos e religiosos, colaboravam com a manutenção de uma sociedade e de uma situação que, em verdade, era (e continua sendo!) sua própria escravidão. A religião opera como reforço da opressão e o Estado legitima juridicamente a condição de subalternidade da mulher. Nem quando alcança uma posição no mercado de trabalho, ela está desassociada ao que chamavam de “instinto natural” ligado ao cuidado: são professoras, enfermeira, secretárias, cuidadoras. Sigmund Freud ao tratar sobre a questão das mulheres, forneceu as bases científicas que sustentariam a ideologia burguesa de que a mulher nasceu para ser mãe.

Este é um conjunto amplo de reflexões que apresentamos sem a pretensão de esgotar o tema. Recorrer à história também nos pareceu uma metodologia válida para compreender que a libertação das mulheres não é uma tarefa individual, nem uma decisão unilateral. Se trata de uma mudança mais radical da sociedade, de refletir sobre os seus seculares pilares e propor alternativas. Se trata de olharmos e enxergarmos todas as camadas e suas respectivas densidades. Vai desde repensar os currículos escolares e questionar se a religião tem o direito de impor qualquer barreira às nossas decisões, sobre o que queremos fazer das nossas vidas e dos nossos corpos. Às mulheres que reforçam as vozes do patriarcado sustentando as posições de submissão das quais aceitam sem questionar, essas talvez sejam o nosso maior desafio. Essa potência fragmentada e em rota de colisão talvez seja o mais puro caldo que o patriarcado adora beber para se alimentar. Aquilo que contorna a base econômica e social do sistema capitalista e que fortalece ideologias, religiões e costumes precisa ser controlado para manter a lógica da exploração da nossa condição de gênero.

A decisão de não ter filhos não pode estar dissociada a uma simples análise sobre as correntes que nos impedem de avançar, de se movimentar. A decisão de não gerar e não gerir uma família nos moldes tradicionais precisa ultrapassar a ideia de que é apenas uma rebeldia de quem não conseguiu um “bom casamento” ou não “encontrou um bom homem”. A decisão passa pela consciência de si e da outra, passa pela capacidade de desobstruir o olhar, enxergar mais além, ver as camadas de opressão e encontrar os caminhos de luta e construção da emancipação das mulheres. Certamente muito disso passa pelo feminismo. O que está em questão não é aceitar ou não os papéis que nos foram definidos. É fomentar lugares de práxis que rompam com qualquer tentativa que ameace nossa livre existência.

Não ter filhos é um desses lugares que muitas de nós ocupamos, mas que somos sistematicamente tachadas de tudo e de nada ao mesmo tempo. O simples fato de ser feliz nesta condição é matéria de comentários violentos e discriminatórios, quase como uma doença que precisa de cura. Diversidade e fluidez são bons mecanismos para abalar as estruturas de uma sociedade perversa e opressora. O século XXI tem sim sido capaz de grandes insurgências e transgressões e de construção de novas identidades políticas. Como substantivo feminino, as insurgências estão no campo dos movimentos capazes de gerar novas formas de organização social, culturas e identidades.

O pensamento feminista e os debates com mulheres na sua diversidade têm colaborado muito para fortalecer decisões e posições. Escolher não ser mãe tem sido o debate de mulheres brancas e negras que, conscientes das opressões que sofrem e do caráter político de suas decisões, escolhem não ser mães e não fornecer força de trabalho barata, precarizada e sem direitos para satisfazer o capital e os capitalistas. Escolhem superar a condição de unidade reprodutora para a manutenção do sistema. Escolhem por si e para si uma vida cujas atividades práticas possam ir além de cuidar de filhas e filhos. Escolhem suas profissões, seus amores, lugares e outras bandeiras de lutas por e para perspectivas diversas a fim de emancipar a si e outras tantas que não conseguem enxergar alternativas. Elas existem!

Devemos também destacar que no capitalismo de cariz neoliberal, termos como meritocracia, individualidade e consumo se irradiaram como ideias de exaltação do particular, do bem estar individual. A predominância de conceitos como estes, que valorizam a experiência pessoal, secundarizando as noções de classe e de luta coletiva, foram ganhando terreno no campo político e cultural. Podemos dizer que pressupostos como esses dão novo fôlego às ideias de família e religião, como se o esforço pessoal, a dedicação e a devoção fossem os únicos caminhos para a liberdade e para uma vida plena. Podemos dizer que a maternidade segue esta mesma linha de raciocínio. O que temos visto é a atualização dos valores éticos e morais do capital e o recrudescimento das violências, objetivas e subjetivas, que permeiam as relações e decisões sobre nossos corpos, sobre o que queremos e o que somos. O que conseguimos nesta caminhada foram vozes dissonantes e que se rivalizam sistematicamente, nos afastando do nosso verdadeiro inimigo e das nossas vias de emancipação.

A opressão é uma categoria social que define a existência de uma relação de subordinação entre grupos sociais distintos e por diferentes processos históricos. Acrescentamos que tem sido categoria comum em todo o tecido social e de nós contra nós. Assim, vão sendo retiradas de todas o potencial contestatório e nossas capacidades de refletir e aceitar outras formas de existência. Desestabilizar as normas hegemônicas não é tarefa fácil. Cada mãe e cada mulher sem filhos, que não pode ou não deseja tê-los, precisa compreender que estamos nas mesmas batalhas e nas mesmas trincheiras.

Enquanto dialogamos aqui, a Marcha Mundial de Mulheres está discutindo salário igual e justo entre homens e mulheres, o direito à previdência social (incluindo licença maternidade e paternidade), a adoção de políticas públicas de apoio à reprodução social, como creches, lavanderias e restaurantes coletivos. Essas atividades nem sequer são conhecidas por mulheres. O feminismo é tão refutado e descredibilizado que debates deste tipo são invisibilidades e totalmente desconhecidos por muitas delas. Mulheres com e sem filhos estão nessas batalhas, mas outras tantas estão alheias a este debate e concentrando suas forças em defender a família e a religião como verdades absolutas. A maternidade não é um imperativo biológico indiscutível e os debates em torno dela são muito mais complexos do que podemos imaginar. Esperamos que os apontamentos acima colaborem para um debate mais amplo e profundo e que saia do simples campo pessoal.

 

Para nortear reflexões…

AGUIAR, Neuma. Mulheres na força de trabalho na América Latina: análises qualitativas. Petrópolis: Vozes, 1984.

ASSUNÇÃO, Diana. (org). A precarização tem rosto de mulher. 3 ed. São Paulo: Iskras, 2020.

BORGES, Maria de Lourdes, TIBURI, Marcia, CASTRO, Susana. (orgs). Filosofia feminista. São Paulo: Senac, 2023.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista brasileiro. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2019.

SCHNEIDER, Graziela (org). Emancipação feminina na Rússia soviética: artigos, atas, panfletos, ensaios. São Paulo: Boitempo, 2017.

TOLEDO, Cecília. Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide. Cadernos marxistas. São Paulo: Editora Xamã, 2001.

 

Por Fabiana Scoleso é professora adjunta II do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins e coordenadora do Grupo de Estudos Globais e América Latina (GEGAL-UFT) fscoleso@uft.edu.br

 

 

 

 

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Gerar ou não gerar um filho não qualifica uma mulher

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Dizem que a natureza é perfeita e que não deveríamos ir contra o fluxo dela. Nós mulheres, historicamente, percebemos que o fluxo era ser aceita por um homem, ser obediente e disciplinada com as demandas da casa e ser mãe. Independente do século em que estamos, esse estereótipo norteia a mente coletiva a tal ponto, que mesmo uma mulher estando convicta em trilhar direções opostas a essa cultura, acaba se sentindo culpada e muitas vezes não sabe nem mesmo dizer o porquê. Sobre esta culpa Badinter salienta que,

No final o século XVII é marcado pelo fato de a sociedade exigir das mulheres um modelo de mãe devota, cuidadosa e dedicada, destinada a exercer as atividades maternas conforme o “instinto maternal”. Para isso, foi preciso “apelar ao seu senso do dever, culpá-la e até ameaçá-la para reconduzi-la à sua função nutritícia e maternante, dita natural e espontânea” (BADINTER, 1993 [1985], p. 144)

Talvez seja a culpa pela culpa. Sentimos culpa por ser culpada por ser um elo quebrado na corrente da maternidade. Como uma maçã podre em uma fruteira viçosa em meio a tantas outras frutas frescas ou como uma persona não grata. Toda decisão contrária a cultura popular gera desconforto, arriscamos até em dizer que o desconforto maior está em quem decide, pois o desafio de sustentá-la em meio a pressão dos olhares, das revelias e até mesmo rejeições, é como um tribunal em céu aberto. Simone de Beauvoir 1967, retrata esta situação com primazia quando diz que, “não podemos pensar em mães omissas, desleixadas, pois ela crê que o amor de mãe não seja comum e que por isso, não há um perfil de mãe boa ou mães más,  só as que as que fogem do estereótipo social”.

As vezes a decisão em não se tornar mãe é genuína, achamos. Achamos porquê de fato nos questionamos se não seria para desafiar um padrão, por medo, por traumas ou por simplesmente não fazer sentido. Essa sopa traz ânsias sempre que nos sentimos exposta às perguntas clichês: Você não filhos? Não tem vontade de ter? Essas perguntas geralmente irritam. Hoje só são cansativas. cansa ter que ser empática o suficiente para entender que o padrão de consciência da pessoa que pergunta tem um molde diferente do nosso e que o julgamento dela está baseado no que é usual e padronizado. E por isso, nos atende sempre a responder com gentileza, quando as indagações não ultrapassam certos limites, é claro.

Viver a escolha de não ser mãe, quando é solo, acaba sendo uma consequência. Mas, viver essa mesma escolha estando inserida em uma relação, um casamento, é quase um mártir.  Por que de repente temos a sensação de que uma mulher que não deseja ser mãe, uma vez que se case, se torna uma ingrata, uma contradição. Já ouvimos comentário paralelos que dizem: – se não quer ter filhos, por que se casou então? É como se uma escolha anulasse a outra por não poder existir dentro de outros contextos.  Mais caótico então quando nos deparamos com dados históricos que nos trazem verdades tais como a de Tubert, 1991 que diz que “parece evidente que em toda sociedade patriarcal a mulher entra na ordem simbólica apenas como mãe. (Tubert 1991, p. 78).

Uma mulher que não é mãe, é menos mulher?  Vou te provar que sim. Na sequência irei debruçar sobre as inúmeras expressões e julgamentos populares a cerca de uma mulher que exerce o direito de não ser mãe. Inclusive, pode lhe servir como uma lista guia daquilo que você, caro(a) leitor(a), pode a partir de hoje decidir não as usar, caso as use. “Quando você tiver filhos vai saber; só quem tem filhos sabe; uma mulher sem filhos não é completa; quem casa, quer casa e filhos; filhos é a maior benção que uma mulher pode ter e experimentar; filhos são herança de Deus aqui na terra…”

Não existe certo ou errado, verdades ou inverdades nessas expressões. O que existe é a inadequação em proferi-las na presença de uma mulher que decidiu não realizar essa escolha. É impressionante como as pessoas discorrem expressões e teorias filosóficas sobre certos assuntos, se achando até nobre, para defender seus pontos de vista sendo que na essência do diálogo existe a agressividade do julgamento e não aceitação do que difere do “normal”. Concordo com Foucault quando ele diz que, “a busca de uma forma de moral que seria aceitável por todo mundo – no sentido de que todo mundo deveria submeter-se a ela-me parece catastrófica” (FOUCAULT, 2006, p. 262-263).

Passivos agressivos é o que somos constantemente uns com os outros ao tentarmos persuadir as escolhas alheias através de vieses culturais e ideológicos. Já parou para imaginar o quanto perdemos em não ouvir com profundidade as pessoas que rompem padrões, que fazem escolhas “controvérsias”?  Uma mulher que escolhe não ter filhos, ofende as mulheres que defendem a maternidade como condição ou uma necessidade. Desde que o mundo é mundo a mulher foi convencida de que a sua utilidade maior era a de procriar, e em tempos ainda mais retrógrados de preferência filhos homens, porque do contrário todo aquele empreendimento perdia seu “valor de mercado”.

Fonte de arquivos próprios.

Quantas escravidões veladas nós, mulheres, não fomos condicionadas? É importante reforçar aqui que toda dissertação não defende nenhuma ideologia, apenas a sacralidade da figura feminina. O que é trazido aqui são convites para reflexão da crueldade que praticamos conosco e para com as nossas.  O quando nós, mulheres, em pleno século XXI, fazemos escolhas ancoradas em escravidões mentais de um padrão a ser seguido para sermos aceitas, requisitadas, bem quistas.  Você já parou para se perguntar se o que você diz que quer é realmente o que quer? E se for, já se perguntou o porquê? E se descobriu o porquê, saberia responder o para que? E se descobriu o para que, tem clareza dos preços que vai precisar pagar para arcar e assumir suas escolhas?

Nossas escolhas e decisões ao longo da jornada podem acabar sendo reflexos daquilo que pegamos emprestado. Pegamos emprestado dos pais, irmãos, amigas, sociedade. A prova, rasa, disso fica exposta quando perguntamos a alguém do que ela gosta, quais seus sonhos, se sabe quem és e aonde quer chegar. Você que lê essas linhas, saberia responder sem um minuto de silencia a essas simples perguntas sobre si mesma? Perguntas essas que saberia responder quem se conhece, quem vive a base das suas próprias convicções e que já se curou da dependência emocional em sempre precisar da validação dos olhares e das opiniões alheias para caminhar na vida.

Liberdade! Há pouco tempo me deparei admirando pessoas que são livres. Pessoas livres tem um frescor diferente, uma leveza elegante, uma ausência de necessidade em ter que justificar-se. A liberdade, percebi eu, é um ato. É a tomada de decisão. Uma mulher que se movimenta da vida com liberdade incomoda e é alvo de um dos sentimentos mais vis que existe, que é a inveja.  Assistir uma mulher bem sucedida, inteligente, divertida, que não quer ser mãe, que é feliz com a sua escolha, sem depressão, sem ansiedade, sem síndrome do pânico por andar na “contra mão”, causa uma pane emocional em outras mulheres.

Então quer dizer que de repente existem mulheres que são felizes e realizadas mesmo não sendo mães? Como assim?  O primeiro impulso que salta a mente e a boca de uma pessoa invejosa é a invalidação. Quando invejamos algo tratamos logo de invalidar para que perca seu valor e sua autenticidade.  Ao invalidar reforçamos nossas crenças e nos convencemos de que nossa forma de pensar e sentir é a correta e perdemos uma grande oportunidade de reavaliar nossos padrões adoecidos.

Costumamos a considerar que todo impulso que temos ao invalidar a conduta, comportamento ou escolha de alguém, é um convite, uma oportunidade que estamos tendo para questionar a nós mesmos. Invejamos o que não temos, o que queremos e não possuímos ou do que não temos a coragem suficiente de fazer. Façamos um convite a considerar a inveja como uma bússola que te guia para os seus desejos mais profundos. Use ela ao seu favor ao invés de a usar em desfavor de alguém. A inveja envenena a alma de quem sente.  Envenenar seria o mesmo que condenar, em nossa míope percepção. Pois, não estaria condenado quem envenena ou quem é envenenado? Percebem o ciclo vicioso que temos o poder de sustentar quando normalizamos certos padrões de pensamentos e comportamentos? Tornar-se mãe é o mesmo que maternar? Gerar é o mesmo que exercer a maternidade? Para exercer a maternidade existe somente um caminho? Será?

Deixe vir a mente uma expressão que muitas de nós usamos ou ouvimos outras pessoas dizerem, “essa mulher é como uma segunda mãe pra mim”. Interessante, não é? Porque essa mesma mulher mencionada por vezes nem é do mesmo seio familiar. Trata-se somente de uma mulher que genuinamente embala, acolhe, se doa, direciona sem julgar, sem castrar, agrada, acarinha, ama. Seriam essas capacidades exclusivas de mulheres que geram um filho ou simplesmente qualquer mulher que se propõe a estar nesse lugar? Gerar é uma condição para ser mãe ou para ser mãe basta se colocar em uma condição de maternar? Maternar o lar, os amigos, os familiares, os amimais, a vida. Como algo com tanta profundidade pode se limitar a apenas um molde?

Te convidamos a repensar sobre as infinitas possibilidades que uma mulher tem para exercer esse papel tão sublime na sociedade. Não se limite ao óbvio.  E a vocês, mulheres que peitam as aberturas de novos horizontes renunciando às imposições, mesmo que veladas, de não gerar um filho, não se percam. A liberdade também tem seus preços e um deles é de não se perder no trajeto. Uma escolha quando sustentada por medo ou pela necessidade de contrariar algo ou alguém é também uma escravidão. Por vezes podemos acabar silenciando ou anulando certos desejos por revolta ou um medo aterrorizante de algo que não queremos revelar nem a nós mesmas. Gerar ou não gerar um filho não qualifica uma mulher. Gerar é só mais uma de tantas potencias que nós mulheres, genuinamente temos entranhadas em nós.

 A maternidade não muda uma mulher. A maternidade potencializa, o que de melhor e pior essa mulher tem e que também pode ser acessada de inúmeras outras fontes quando se propõe a mergulhar em si mesma, até o útero.  Liberte-se da necessidade de se qualificar para ter qualidade ou para ser de qualidade. Todas as mulheres são mães e isso é um dom. Até porque se gerar bastasse, estaríamos no paraíso.

O maternar que habita em mim, saúda o maternar que existe em ti.

 

Referências

GOMES, M. Marcel; et.al. O cuidado de si em Michel Foucault: um dispositivo de problematização do político no contemporâneo. Disponível em: https://www.scielo.br/j/fractal/a/HDPxLw3pNsbmmZPLdnx6BRk/?lang=pt. Acesso em 24/02/2023

MESTRE, O. Simone; SOUZA, R. Érica. 2021. “Maternidade guerreira”: responsabilização, cuidado e culpa das mães de jovens encarcerados. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/DjkdxzG7YCwqtQfnBFTwnLR. Acesso em 24/03/2023

TRINDADE, A. Zeide; ENUMO, F.R. Sônia. 2002. Triste e Incompleta: Uma Visão Feminina da Mulher Infértil. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pusp/a/jR8vxx3VJBfcQcppNcwhztj/?lang=pt. Acesso em 24/02/2023.

 

Por Marina Rocha – Graduada em Administração e Comercio Exterior; MBA em Gestão e Marketing; Hipnoterapeuta pela Omni Hipnoses Trainning Center; Criadora do Áudio Hipnokids, uma ferramenta que se tornou eficaz em casos de crianças com transtorno de sono e medos; Reichiana; Terapeuta Ayurveda; Terapeuta Floral; Mentora Emocional; Escritora nas horas Livres.

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Maternidade: uma questão de biologia, escolha ou poder?

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Por Carmem Teresa do Nascimento Elias – Pós-graduada em Letras (Português/Inglês, Línguas e respectivas Literaturas) pela University of Cambridge, Universidade Federal Fluminense e pela UERJ.

Desde os primeiros movimentos sociais de emancipação da mulher, a partir, principalmente, da luta pelo direito ao voto, ou pela participação no mercado de trabalho, desde século XXVIII, por exemplo, a questão do feminino e do feminismo avança, a passos lentos, porém precisos, em busca de um posicionamento igualitário, digno e justo da mulher na sociedade. Após o surgimento da pílula anticoncepcional nos anos 1960, a liberdade sexual da mulher entrou em evidência, concedendo-lhe o direito ao prazer nos relacionamentos, sem o histórico estigma de preconceitos, exclusão, e riscos de uma gravidez indesejada. A discussão toma força, agora no início do século XXI, em torno do exercício do pleno direito e poder da mulher sobre seu próprio corpo, especialmente no tocante à maternidade compulsória, ou seja, sobre a esperada premissa de que a mulher só se realiza plenamente como mãe. Verdade é que muitas mulheres passaram a optar por não ter filhos. Compete a cada uma delas decidir se tem ou não o desejo, vocação, habilidade ou necessidade maternal. Porém, tal opção ainda é revestida de reações adversas, que submetem essa mulher não mãe de novos questionamentos e preconceitos, desta vez por opor-se ao ‘biologicamente programado’.

O mais importante a se destacar, antes de qualquer posicionamento sobre o tema, é o entendimento das relações de poder e dominação que perpassam pela circunscrição das mulheres no contexto histórico social.   Desde os tempos mais primitivos, a maternidade é vislumbrada como grande mistério e sacralização do feminino. Os registros ancestrais posicionam o feminino como divindades. As primeiras culturas atribuíam a criação do mundo a uma entidade divina feminina: a Grande Deusa Mãe, Gaia, Pachamama, por exemplo. Os conceitos de deidade e religiosidade emergem na cultura humana a partir do atributo biológico da fertilidade. As estatuetas mais antigas já encontradas esculturavam mulheres grávidas, de seios volumosos, como a famosa Vênus de Wilendorf, esculpida há cerca de 30 mil anos e encontrada em 1908 na Áustria. Num universo ainda em construção da sociedade, em que pouco ou quase nada se sabia sobre a fecundação e gestação, o mistério revestia a gravidez de poder implícito. Houve épocas, de sociedades matriarcais, cujo centro do poder era regido pela mulher. Sucederam-se épocas em que o masculino e o feminino conviviam lado a lado com maior afinidade. Mesopotâmia, Egito, Grécia, Roma, por exemplo, dividiam muitas deidades em ambos os gêneros: Isis, Afrodite, Atenas, Hera, entre tantas outras, eram reverenciadas no panteão dos deuses. Enheduanna (2285-2250 A.C.) foi uma princesa e alta sacerdotisa em Ur, uma das primeiras cidades das quais se têm conhecimento na História, na Suméria. Seu poder era tanto ritualístico sacerdotal quanto político, e literário.

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Entidade Divina

Ela teria sido a primeira mulher poeta conhecida e coube, justamente a ela, unificar as várias cidades da Suméria. No tocante ao poder político, no Egito Antigo, mulheres ocuparam o cargo máximo de faraó, como Hatshepsut (1479-1458 A.C.), uma das mulheres governantes mais poderosas da História, responsável pela maior expansão do território de domínio egípcio. Não é necessário, portanto, questionar que capacidade, inteligência e poder sempre foram competências também femininas. Entretanto, com a implantação das religiões monoteístas, principalmente após a fuga dos hebreus do Egito, a sociedade patriarcal, cujo cunho sempre estivera presente também desde priscas eras, passa a exercer um domínio absoluto, execrando a função das mulheres, implantando tabus e dogmas à sexualidade, restringindo a elas o papel apenas de esposa e mãe, sujeitas à vida doméstica e criação dos filhos. Surge o culto ao pecado, condenando, principalmente, a mulher, como pecadora ou bruxa, caso não obedecesse aos desígnios político-religiosos vigentes. Antes, a mulher, inclusive, poderia aspirar ao cargo de papisa nos primórdios do Cristianismo; assim como os sacerdotes podiam se casar. Só no século XI estabeleceu-se a proibição oficialmente.  Muitas mulheres, acusadas de bruxaria, muitas vezes, por causa de sua inteligência, eram queimadas.

Séculos se passaram, até que à mulher fosse permitido recuperar seu direito ao exercício de sua cidadania, consciência, poder de decisão particular e social, vontade e poder sobre seu próprio corpo e vida. A luta feminina e feminista por espaço e voz é permanente. Até hoje em dia não são raros os contextos em que a mulher ainda é tratada como propriedade e patrimônio de seus maridos, além de parideira destinada a dar filhos aos homens. O ranço patriarcal é tão grande, que até para grandes pesquisadores da mente humana, como Freud e Lacan, dois grandes alicerces das teorias psicanalíticas, os elementos subjacentes ao universo feminino não foram elaborados no conjunto de suas obras. Freud não tirou a mulher de um papel passivo, inserido no ambiente doméstico do casamento e nem mesmo no contexto mitológico por meio do qual exemplifica seus estudos. O autor coloca seu foco de pesquisa nas histerias sexuais femininas, contudo, em sua obra Totem e Tabu, por exemplo, exclui a participação feminina nas supostas mitologias de origens de formação do inconsciente humano, e do arcabouço das leis e liberdades individuais e coletivas! Freud chegou inclusive, a concluir ser indecifrável um modelo psicanalítico do feminino, sugerindo que se consultassem os poetas sobre elas.

Patriarcados e brincadeiras à parte, são as escritoras mulheres quem melhor definem o poder do universo feminino. Como escreveu a autora Hilda Hilst (1930-2004) na obra O Desejo, “há um incêndio de angústia e de sons sobre os intentos… a mulher emergiu descompassada no de dentro da outra”.  Enquanto Freud nos deixou com a pergunta sem resposta ‘o que querem as mulheres?’, a escritora Simone de Beauvoir (1908-1986) é incisiva: ‘Ninguém nasce mulher; torna-se mulher’, e ainda nos explica que ‘é pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a distância que a separava dos homens… e garantir uma independência concreta’. Simone de Beauvoir, em sua obra O segundo Sexo recuperou a construção do feminino como elemento ativo de poder da mulher na esfera pessoal e social, politizando sua geração em busca de reivindicação de autonomia sobre seu corpo e contra ideias conservadoras de moral. Surge, assim, o primeiro momento em que o corpo feminino passa a ser uma questão requisitada exclusivamente por quem o possui, ou seja, unicamente de direito da própria mulher.

Beauvoir libertou o pensamento feminino do ideal social vigente de ‘mulher boa esposa e mãe’. Beauvoir, inclusive, contesta até a Psicanálise do estigma freudiano centrada na inveja do falo, enquanto Betty Friedan denunciou que a construção psicanalítica centrada no falo concretizava uma ideia de inferioridade da mulher em relação ao homem. A partir então deste contexto traçado ao longo dos anos 1970, a maternidade passou a ser questionada como um dilema entre o biologicamente natural e o socialmente construído diante da mulher.  Em pleno século XXI, sobre a mulher moderna, cidadã, livre, consciente, independente, trabalhadora, financeiramente autossuficiente, ainda recai a cobrança diante da decisão sobre ser ou não mãe. Ainda falta destruir a barreira que incomoda a sociedade diante de uma escolha que compete à mulher. Por legitimidade, os estigmas sociais vêm sendo abolidos. Temas tabus como aborto, violência doméstica, discriminação estão em pauta numa sociedade que avança em defesa de direitos igualitários. Muitas mulheres, inclusive, são atuais chefes de família, cabendo a elas o papel de provedoras, antes destinado aos homens. A emancipação feminina traz cada vez mais para debates questões pertinentes ao papel da mulher no mundo. Há mulheres envolvidas e felizes com seus estudos e carreiras, sentindo-se plenas em sua vida pessoal. Há mulheres para as quais a maternidade pode até mesmo vir a ser um prejuízo diante de suas agendas e interesses de vida. A biologia de uma mulher não lhes obriga, necessariamente, a ter de ser mãe. O útero lhes confere uma possibilidade biológica; jamais, uma obrigação.  A escolha pela maternidade ou não, acima de tudo, é uma decisão pessoal e, como tal, inquestionável.

No mundo atual, o sistema populacional revela ainda a existência de dois extremos. Por um lado, classes sociais mais abastadas, com famílias de poucos herdeiros, e até sem herdeiros, como vem acontecendo em países europeus, sobretudo na Itália. Por outro lado, classes de menor acesso a informações adequadas sobre métodos contraceptivos, ou que por questões outras sejam avessos a impedir gravidezes, ainda resultam em muitas mulheres que acumulam uma quantidade significativa de filhos, predominantemente sem condições econômicas de prover o básico necessário ao bom desenvolvimento infantil. Vale a pena trazer mais um filho a um mundo assim de forma tão desestruturada?   A própria legislação de um país dispõe, ou não, de instrumento de alicerce aos interesses da mulher, ou exclusivamente ao do homem. No Brasil, até o início de 2023, uma mulher era proibida de fazer laqueadura sem autorização do marido! Ela não podia decidir sobre seu próprio corpo a menos que tivesse mais de 25anos, dois filhos vivos e permissão do homem. Em caso de laqueadura juntamente com o parto, só era possível caso a mulher já tivesse passado antes por duas cesárias. Finalmente, a lei está em processo já definitivo de mudança e a autorização masculina não mais será requisito.

As relações de poder e dominação não podem, contudo, continuar a exercer pressão sobre a mulher que opta por não querer ser mãe em hipótese alguma. Maternidade não é algo exclusivo e inerente à identidade feminina. Além da geração uterina, um bebê requer atenção parental, atenção e cuidados que não são exclusividade de que se possa imbuir apenas a uma mulher parideira. Casais de orientação sexual homoafetiva têm competência tão boa como qualquer mulher a prestar todos os cuidados a um bebê. E uma mulher sem filhos não deve ser julgada como ‘infeliz, frustrada, incompleta’, como, por estereótipo do preconceito histórico, possa vir a ser taxada. As questões de gênero atualmente evoluem de forma mais igualitária sobre a função e o exercício das funções parentais, que não mais atribuem apenas à mulher a função materna. Um aspecto importante de ser abordado, contudo, sobre a escolha pela não maternidade em uma mulher é que a opção seja genuinamente pensada, refletida e conscientemente madura. A opção da mulher deve ser respaldada por sua autossatisfação, autoconhecimento e autodeterminação. Do mesmo que a maternidade não pode ser uma imposição social masculina, também a opção pela não maternidade não pode ser cercada de pressões feministas ou modismos de uma geração.

O complexo psíquico de uma mulher pode ser povoado por medos e traumas que não justificam a negação da maternidade. Optar por não ter filhos não é a resposta para medo do parto, medo de engordar e perder a beleza, medo de sentir dor, medo de perder a liberdade, medo de perder a individualidade. Tais argumentos, que já ouvi algumas vezes, apontam para a necessidade de um melhor esclarecimento. Similarmente, mulheres que não podem biologicamente ter filhos por algum comprometimento no aparelho sexual, infertilidade ou doenças também devem estar cientes de que defender não ter filhos diante de outras mulheres não deve servir como válvula de escape de suas próprias dificuldades. Tal argumento também já pude observar em algumas justificativas contra a maternidade, mas não passam de respostas paliativas a conflitos pessoais internos que não servem como pressuposto em defesa da decisão segura e plena de uma mulher ao optar em não passar pela experiência da maternidade.

Falamos de experiências de vida, de escolhas de voz e poder absoluto sobre si mesma, escolhas das quais um dia não haverá mais volta. Falamos de liberdade acima de tudo. De liberdade pessoal. Do mesmo modo, uma sociedade amadurecida não pode continuar a confrontar a mulher com cobranças acerca de sua opção. Já passamos do ponto em que dizer ‘Não é não’ para qualquer tipo de estigma que se impõe à mulher e à sua autonomia. Nada justifica que ao declarar sua escolha uma mulher venha a ser questionada por familiares, por colegas, por amigas. Vivemos um século que se inicia sob a égide da diversidade, do direito, da vida ativa e pública. A opção não válida é por uma maternidade problema que torne a relação mãe-filho um processo frustrante para ambas as partes, que sacrifique a mulher diante de seus desejos e aspirações de vida pessoal, que traga ao mundo uma criança sem perspectiva de atenção e carinho. Não pode haver mentiras na relação com a maternidade.  Dados estatísticos apontam para uma redução de 14 por cento na taxa de mulheres que têm filhos no Brasil. Os números são significativos de uma sociedade em mudança, na qual a mulher se instala cada vez mais no cenário público ativo e profissional, restaurando o papel social de ser humano plenamente capaz de exercer a função de sua escolha.

Referências

Beauvoir, S. (1977). Le deuxième sexe. Gallimard, Paris.

Freud, S. (1971).  La feminitè, In Nouvelles Conferences du psychanalyse. (trabalho original publicado em 1936.

Friedan, B. (2020) A mística feminina. Roa dos tempos. Portugal.

Hilst, H. (2004). Do Desejo. Editora Globo. São Paulo.

Knibierlher, S. (1978). Mães: um estudo antropológico da maternidade. Martins Fontes, SP.

Nunes, S.A. (2011). Afinal, o que querem as mulheres? Maternidade e Mal-estar. Psic, Clin., Rio de Janeiro.

 

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A maternidade como objeto de validação feminina

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Por Dayane Salles – Doutoranda em Sustentabilidade Ambiental Urbana, com mestrado em Processos Sustentáveis, Dayane tem experiência em escrita acadêmica, gestão e desenvolvimento de projetos e estudos ambientais.

A bisavó de Ana, pariu 12 vezes, a avó, 8, a mãe de Ana, 4. Ana, só pariu Clarice, que não quer parir ninguém. Nos jantares de família, a pergunta se repete desde que Clarice completou 30 anos: “Quando vem o bebê?”, “Da sua idade eu já tinha 4 filhos”, “Vai ficar mesmo pra titia?”. O assunto da noite, sempre adentra à intimidade de Clarice sem nenhum pudor, em intromissões e indagações indelicadas, disfarçadas em tom leve de uma brincadeira, que trata como inadequada a mulher que se recusa a seguir o enredo que lhe é imposto. Entoam, por todos os lados e cantos, uma só voz, em um coro que a define: “Egoísta!”, “Mal-amada!”. Por romper com a cultura da maternidade, somos julgadas como incompletas. Categorias! Adoram nos colocar nelas. Um script, um roteiro. A mulher “ideal”. Mas ideal de quem, e para quem? A feminilidade aparece sempre atrelada à maternidade como forma de validação da mulher em uma posição que lhe confere a fetichizada e inalcançável “completude”.

Para muitas de nós, a maternidade não é uma questão de escolha. Ainda que avanços tenham sido conquistados através da luta pelos direitos das mulheres, o caminho da maternidade atravessa nossa vida como uma aprovação de nossa existência. A cobrança e a pressão da sociedade que enquadra e impõe níveis de “ser mulher”, se amparam numa cartilha de normas e condutas sociais com lastro em bases fundantes da existência, desde crenças religiosas ancoradas em doutrinas que atribuem à mulher um papel de portal do pecado ao mundo, até ao simbólico nascimento de Jesus pelo ventre sagrado de uma mulher reconhecida como virgem e, talvez por isso, Santa.  Egoístas, mal-amadas, virgens, santas, e agora, na contemporaneidade, heroínas! O termo parece revelar um progresso na Agenda de direitos das mulheres, que desde a Revolução Francesa, se configura com avanços e retrocessos.  A criação de uma nova república em 1789, que buscava garantir princípios de liberdade, igualdade e fraternidade à população, não se estendeu às mulheres, que tiveram à época pequenas conquistas de direitos fundamentais, a partir de movimentos femininos que contestavam as condições de vida das mulheres. 

Séculos depois, esse movimento ganhou força, precisamente a partir de 1960, com o surgimento dos novos movimentos sociais, em que as mulheres conquistaram importantes direitos no que tange à igualdade política, jurídica e econômica. Tais movimentos continuam a se perpetuar em apelos dos mais variados, sejam em protestos, organizações, ou textos como esse, que busca promover a reflexão ao lançar luz à subjetividade feminina, de forma com que os quereres das mulheres não obedeçam às expectativas externas, e mais do que isso, que as vontades que nos são próprias encontrem solo fértil para florescerem nos tempos atuais, em que a liberdade feminina ainda é condicionada a estruturas de poder desiguais. Longe do glamour que retrata a ficção, há muitas camadas profundas que envolvem a mulher contemporânea. Existe, no “ser mulher” uma série de atributos que uma só voz nunca conseguirá destacar com a profundidade das dores, clamores e dissabores que as mulheres enfrentam. 

Segundo dados do IBGE, as mulheres se dedicam aos afazeres domésticos quase o dobro do que os homens. Uma pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revela ainda que as mulheres trabalham cerca de 7,5 horas por semana a mais do que os homens, por conciliarem as atividades do trabalho com as atividades do lar. A maternidade, sem dúvida, impõe às mulheres um degrau a mais nessa caminhada. Além da sobrecarga de trabalho, as mulheres que optam por ter filho, ainda são pressionadas a serem felizes, pela tão problemática romantização da maternidade. Os Relatórios de Transtornos Mentais da Organização Mundial da Saúde apontam que mulheres sofrem mais com ansiedade e têm mais chances de terem depressão do que os homens. A depressão pós-parto acomete mais de 25% das mães no Brasil, segundo dados da Fiocruz, e a pressão social a que essas mulheres são submetidas ao serem taxadas como insuficientes, tem grande responsabilidade nesse índice, afinal, a frase “nasce uma mãe, nasce uma culpa”, não é só um dito popular infundado, já que as questões mentais têm ligação íntima com os aspectos sociais.

A desmistificação de que a felicidade da mulher é acessada somente a partir da maternidade, é assunto urgente. A cada ano diminui o número de mulheres que querem ter filhos, como apontam os dados da SEADE (2021). Entre 2000 e 2020, o número médio de filhos por mulher passou de 2,08 filhos para 1,56 (SEADE, 2021). Em convergência a essa informação, no Brasil, 37% das mulheres em idade fértil (dos 15 aos 49 anos) não querem ter filhos, segundo uma pesquisa feita pela farmacêutica Bayer, com apoio da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do Think About Needs in Contraception (TANCO).Os motivos que amparam essas escolhas, são muitos. Dentre eles, desejos pessoais, questões financeiras, garantia de liberdade, e priorização da carreira, já que ter filhos, pode sim prejudicar as mulheres na jornada profissional e, com isso, colocá-las em diferentes patamares econômicos e sociais. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, denominada “Estatísticas de Gênero – Os indicadores sociais das mulheres no Brasil”, divulgada em 2021, indica que somente 62,6% das mulheres brancas com filhos de até 3 anos estão empregadas, enquanto que, para as mulheres pretas, a proporção é menor que 50%. Com relação à paternidade, a existência de filhos não prejudica a participação dos homens no mercado de trabalho (IBGE, 2021).

Machado e Pinheiro (2016), em um estudo sobre a maternidade e o mercado de trabalho no Brasil, revelam o alto índice de mulheres que são demitidas logo após o período de proteção ao emprego garantido pela licença maternidade. Após 24 meses, quase metade das mulheres que usam o direito da licença-maternidade estão fora do mercado de trabalho, por iniciativa do próprio empregador, sem que haja justa causa (MACHADO; PINHO NETO, 2016). O custo da maternidade para as mulheres é alto. O fato de os homens abandonarem a paternidade aumenta a sobrecarga das mulheres que precisam assumir a condição de chefe de família, se encarregando das tarefas afetivas, educacionais e financeiras dos filhos.  Dados da Central Nacional de Informações do Registro Civil (CRC), mostram que em 2020, 6,31% das crianças foram registradas somente pelas mães. No Brasil, mais de 11 milhões de mães são inteiramente responsáveis pela criação dos filhos. Romper com a cultura da maternidade é, para muitas mulheres, não só uma vontade genuína, mas uma forma de protesto pelas diferenças que homens e mulheres enfrentam no percurso de geração e criação de um filho.  Uma escolha que desrespeita a um só corpo e incomoda a tantos, se perpetua desde o início da civilização humana, em que a mulher, por vezes vista como propriedade privada, inicialmente pela figura do pai e depois do marido, tem seus direitos cerceados, e sua existência reduzida a um objeto de procriação. 

Desconstruir a ideia de que a existência da mulher precisa ser validada pela maternidade é um importante e complexo passo na tão almejada emancipação feminina. A nova leitura da maternidade pelas mulheres e pelo movimento feminista, não surge com o nascimento de uma mulher contemporânea que atende a mil afazeres e é eficiente em todos eles, mas com a libertação de uma mulher que se desfaz das amarras que lhe são postas, rompendo com o regime patriarcal que nos coloca em posição subalterna, explícita no repetido discurso de: “Mulheres nasceram para isso”. Se por um lado nos deduzem e reduzem a simplificações, por outro, a figura da mulher contemporânea que busca desfazer essas estruturas de poder, não rompe com a maternidade, mas com imposições. É preciso então transpor o papel secundário que nos é dado para ocuparmos o protagonismo de nossas vidas, autoras de nossos próprios roteiros. A essência e a aparência da maternidade se entrelaçam em um enredo de glórias e lástimas que acompanham a mulher em toda a sua existência. É necessário colocar ordem na casa e dar nome aos processos e fases que a maternidade traz, não com a intenção de desencorajar as mulheres que optam por esse percurso, mas de romper com uma lógica que aprisiona e cerceia sua existência, alojadas no mesmo endereço do discurso que diz que mulheres “nasceram para ser mães”.

Não nascemos para sermos mães se esse discurso nos impõe a obrigatoriedade de um caminho. A maternidade relacionada à mulher contemporânea é somente mais uma das arestas que engendra a forma com que a sociedade ainda enxerga nossos corpos, nossas vidas. Índices alarmantes de feminicídio, violência doméstica, psicológica, sexual, patrimonial e moral, são sintomas dessa mesma estrutura, há tempos contestada. Essa longa e tortuosa jornada, continua a ter como busca fundamental e inegociável, o respeito às mulheres, que só pode ser alcançado mediante o envolvimento de toda a sociedade. Respeito esse que deve ser expresso, não (só) por propagandas em datas emblemáticas, mas nas reuniões de empresas a portas fechadas, em que as mulheres sofrem diversas formas de abuso. Não (só) em campanhas publicitárias, mas através da igualdade de cargos e salários nas grandes corporações. Não (só) com auxílio-creche e outros benefícios financeiros, mas com a oferta de empregos às mães. 

É urgente a participação do governo através da instituição de políticas públicas que garantam e defendam os direitos das mulheres. É urgente o envolvimento das empresas na criação, desenvolvimento e manutenção de planejamentos estratégicos que abracem, envolvam e promovam essa pauta.  É preciso a mudança de comportamento de homens, revendo, a todo tempo e momento, seus papéis enquanto criadores e reprodutores de comportamentos machistas. Por último (e mais importante) é preciso reforçar o que nos trouxe até aqui. Contemos nossas histórias, falemos sobre nossas lutas. Sejamos solidárias umas com as outras, nos acolhendo, nos reconhecendo, nos apoiando, nos movimentando, juntas! Historicamente, todas as mudanças, as grandes transformações, não aconteceram em situações de conforto e calmaria. Se o hoje é tortuoso e o ontem foi ainda mais, a glória do amanhã não é só uma possibilidade. A vista do topo, há de compensar o caminho.

 

Referências

FIOCRUZ. Depressão pós-parto acomete mais de 25% das mães no Brasil. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/depressao-pos-parto-acomete-mais-de-25-das-maes-no-brasil>. Acesso em: 15 mar. 2023.

IBGE. Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2023.

IPEA, S. Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/mestrado-profissional-em-politicas-publicas-e-desenvolvimentodesafios/index.php>. Acesso em: 15 mar. 2023.

MACHADO, C.; PINHO NETO, V. The Labor Market Consequences of Maternity Leave Policies: Evidence from Brazil. Disponível em: <https://portal.fgv.br/think-tank/mulheres-perdem-trabalho-apos-terem-filhos>. Acesso em: 14 mar. 2023.

SEADE. Entre 2000 e 2020, o número médio de filhos passou de 2,08 filhos por mulher para 1,56 – Fundação Seade. Disponível em: <https://www.seade.gov.br/entre-2000-e-2020-o-numero-medio-de-filhos-passou-de-208-filhos-por-mulher-para-156/>. Acesso em: 14 mar. 2023.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. World mental health report: Transforming mental health for all. Disponível em: <https://www.who.int/publications-detail-redirect/9789240049338>. Acesso em: 15 mar. 2023.

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Feliz sem filhos: apontamentos acerca da maternidade compulsória

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Patrícia Orfila: patriciaorfila@uft.edu.br

Este texto foi escrito pensando especialmente nas meninas e mulheres que se sentem atormentadas por dúvidas a respeito da maternidade, mas, é preciso pontuar que falo do lugar de mulher branca, bissexual e de classe média, que tem consciência da branquitude como lugar de privilégio e que muitas das escolhas realizadas a partir deste lugar específico, ainda estão longe de ser opções concretas para a maioria das mulheres negras da classe trabalhadora.

Se seguirmos a lógica do essencialismo de gênero, que atribui qualidades inatas a mulheres e homens, ter tantas dúvidas sobre a maternidade, já representa em si um sinal de alerta, pois, se fosse algo tão natural, como pregam os religiosos, não deveria ser um tema envolto de polêmicas e sofrimentos. A obra “Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno”, de Elisabeth Badinter (1985), nos traz subsídios para compreendermos como o amor materno não é inato à natureza feminina e que faz parte de um comportamento social que varia ao longo da história, da geografia e dos costumes.  

A necessidade de demonstrar que se leva uma vida dentro da normativa social, o medo de ser chamada de louca, o desejo de ser aceita pela comunidade ou de ter o afeto e a proteção masculina, leva mulheres a se vigiarem mutuamente, a julgarem-se e a competirem entre si.

Todas fomos tão inundadas pelos dispositivos amorosos e maternos, um deles simbolizado na metanarrativa do “sagrado amor de mãe”, que quando uma mulher se diz feliz sem filhos, irrita absurdamente o coletivo. Já se perguntaram o porquê essa felicidade incomoda tanto? Já pararam para pensar no sofrimento que poderia ter sido poupado, se pudéssemos ter tido contato com narrativas de mulheres insurgentes, para além da maternidade, caso nossa sociedade não fosse tão conservadora e silenciasse ou estigmatizasse essas mulheres nas normas da estrutura patriarcal?

A socialização feminina é uma construção histórica, cultural e política e precisa ser amplamente discutida, portanto, quando mulheres relatam suas experiências divergentes, abrem possibilidades de conhecimento e partilha com outras que buscam informações sobre o tema. Precisamos construir condições para que se sintam livres para negar a maternidade e aprenderem com outras mulheres, como a vida pode ser gratificante sem ela.

Para grande parte das mulheres não é fácil expor suas experiências pessoais e contar as pressões sociais que sofreram, logo, aconselhar outras mulheres a reagirem à maternidade compulsória e até mesmo a repensarem o estatuto do casamento, deveria ser algo tão normal quanto o contrário. Não deveríamos subestimar a inteligência das mulheres e sim termos liberdade de dialogar com as que se sentem inseguras com a ideia de se tornarem mães e sobre a obrigatoriedade social do casamento. Lembrando que a duração de um matrimônio depende bastante do comportamento feminino, pois são as mulheres sempre a fazer as maiores concessões e algumas pagam com a própria vida, conforme comprovam as estatísticas de feminicídio. 

As religiões continuam a forjar o futuro da maioria das mulheres e devemos levar em conta que podemos nos enganar muito sobre o destino de muitas delas, pois o futuro de nenhuma está predeterminado. A educação de base feminista precisa fazer parte das novas formas de socialização nas escolas e no ambiente familiar, incentivando a escrita e as narrativas de mulheres sem qualquer tipo de censura, incluindo o tratamento do aborto como questão de saúde pública. 

Podemos ver as expressões de felicidade das outras mulheres diante da maternidade e nos solidarizarmos com elas, mas isso não pode ser um fator que impeça que outras possam falar abertamente sobre o desejo contrário, mostrando que a vida sem filhos pode ser tão agradável quanto a vida com eles. 

Mães se sentem atacadas quando outras mulheres tornam público o desejo de não procriarem, argumentam que não é necessário deixar tão explícita a questão, pois isso fomenta o preconceito contra elas e as crianças. Estaríamos, então, prejudicando mães e crianças quando abordamos sobre a ditadura da maternidade? A busca por conhecimento é o princípio básico de uma educação libertadora e no acolhimento de meninas e mulheres que podem se sentir inadequadas aos padrões sociais. 

Medo da solidão? Nem filho e nem marido aplacam a solidão, sabemos de muitas histórias ao nosso redor que comprovam isso. É possível nos sentirmos muito solitárias mesmo fazendo parte de uma grande família. Talvez, algumas que me leem não tenham coragem de assumir que se sentem deprimidas mesmo cercadas de filhos.

A solidão só é insuportável se não nos propomos a enfrentá-la e só é dilacerante se deixarmos a opinião pública guiar nossos passos. A solidão só massacra se não tolerarmos a nossa própria companhia; ademais, o tema da solidão é um clássico da filosofia, faz parte da nossa eterna contradição humana. 

Quantas e quantas vezes mulheres são chamadas de egoístas pelo fato de terem escolhido a não maternidade? E por que essas mulheres deveriam carregar culpa por dispor de tempo para cuidar de si? Por que estão erradas em não quererem adotar? Por que são arrogantes se apreciam viajar? Por que são estranhas se preferem estar sozinhas? Por que são egoístas se gostam de se presentar? Por que são inadequadas se resolvem não serem escravas de um homem? 

O fim de semana de uma mulher solteira e sem filhos pode ser muito saudável e satisfatório, pois, poder fazer escolhas é um privilégio, como dormir até mais tarde ou passear na praia, limpar a casa ou andar de bicicleta, trabalhar ou descansar, afagar o gato ou molhar as plantas. Talvez o egoísmo esteja no oposto, imaginar que filhos sejam a garantia de companhia no envelhecimento. 

Ainda podemos falar sobre a maternidade redentora, aquela que aos olhos do senso comum, torna a mulher um ser humano iluminado, agora que adquiriu a autoridade por gerar uma vida no seu ventre e até mesmo de cura para aquelas que ainda não tiveram filhos. 

Inveja da maternidade? É possível se sentir ótima sem engravidar, parir e cuidar de filhos, talvez o único problema seja não falarmos sobre o assunto sem tabus e com mais frequência.

Mas por que inundar as mulheres com imagens negativas sobre o envelhecimento? Será que não podemos sonhar com uma velhice satisfatória, com saúde, acesso a cultura e o mínimo de dignidade? Também é possível acreditar no casamento, mas não apenas nesse casamento tradicional; acreditar no amor, mas não nesse afeto submisso, que apaga a mulher e exalta o homem; acreditar na monogamia, não na monogamia baseada na opressão machista; acreditar nas diversas formas de família, não apenas na heteronormativa e até na vontade de ser mãe, mas não de forma compulsória e que coloca as mulheres em uma corrida insana contra o tempo. 

A socialização feminina também motiva mulheres a engravidarem, com o objetivo de induzir casamentos ou até mesmo para mantê-los. A hipervalorização das características fisiológicas das mulheres, centrada no aspecto da reprodução, coloca as mulheres como meras reprodutoras, incapazes de tomar decisões racionais por razões hormonais, sempre preocupadas com o período fértil e cuja “voz da natureza” surge como um imperativo  essencialista, que pesa bem mais para as mulheres do que para os homens. 

Em algum período da vida, elas podem ser vorazes na busca de parceiros sexuais e por isso serem consideradas verdadeiras caçadoras, mas com o tempo descobrem que elas próprias eram a caça, pois embora valentes e cheias de vontades, nunca conseguiam penetrar, tampouco pertencer aos territórios masculinos. Mulheres assertivas e que vão atrás das suas próprias conquistas podem amargar uma busca eterna por parceiros de vida, tentando encaixá-los em amplos aspectos dos seus interesses pessoais e políticos, enquanto esses mesmos homens só as enxergavam como parceiras sexuais. 

Para a psicóloga Vasleska Zanello, “os homens aprendem a amar muitas coisas, enquanto as mulheres aprendem a amar os homens” (ZANELLO, 2018, p.269), uma boa  parte delas passa grande parte da vida buscando parcerias masculinas, que podem nunca encontrar, sobretudo no campo intelectual. A socialização masculina acontece no formato de clubes onde mulheres não são bem-vindas e quando entram servem meramente de objetos sexuais. Quando feministas fazem campanhas contra o assédio sexual, a favor da legalização do aborto e mostram dados reais sobre feminicídio são acusadas de misandria, por homens que se sentem ameaçados, isso apenas nos mostra que o machismo e a misoginia são problemas estruturais referentes ao patriarcado.

arquivo pessoal: Patrícia Orfila

Há quem diga que mulheres com muita autonomia são infelizes por suas escolhas divergentes, nada mais salutar do que elas próprias narrem suas histórias. Devem escrever para aquelas que não sonham com o status de procriadoras e cuidadoras; para aquelas que se sentem desamparadas pela religião, pela família, pela escola e pelo Estado; escrever simplesmente porque gostariam de ter lido sobre o assunto quando eram elas as que tinham dúvidas e destacar que num planeta com 7,5 bilhões de habitantes, incentivar a maternidade compulsória é um grande contrassenso. Por esse e tantos outros motivos incômodos, meninas e mulheres com muitas dúvidas sobre a maternidade deveriam optar por não terem filhos. 

O texto enviado pela cronista Leila Guerriero a escritora Lina Meruane, autora do livro Contra os Filhos, é o desfecho deste artigo: “Nunca me comoveu a ideia de parir. Ainda me diverte o assombro que as palavras não quero produzem. Há aqueles que elaboram um consolo (Bom, logo a vontade vem), ensaiam suspeitas (talvez ela não possa e diz que não quer) ou se zangam (você não pode ir contra o instinto materno). Meu caso é mais simples. Não quero. Nunca quis. Não tenho vontade. Nem sequer penso nisso todos os dias. Diria que nem sequer penso nisso todos os anos.” 

Referências: 

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

MERUANE, Lina. Contra os filhos. Tradução Paloma Vidal. São Paulo: Editora Todavia, 2018.

ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos. Cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018. 

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