Pá de cal na parede

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Uma parede com rachaduras não precisa de cal. Necessita ser tratada para que o problema se resolva. Abrir a extensão da rachadura, raspar a tinta ao redor, preencher a trinca com uma massa acrílica para vedação.

De modo simples, esse procedimento pode resolver. Porém, se a rachadura for provocada pela fundação malfeita, exige cuidado especializado para que a edificação não seja seriamente comprometida. Assim sendo, do que adianta passar mão de cal? Ou mesmo aplicar tinta nessa parede? Em pouco tempo a fenda estará lá te dizendo que existe e que vai permanecer até você resolver.

Trazendo essa história para a nossa vida, é importante refletirmos quantas rachaduras existem e estamos convivendo com elas sem tratarmos? A saúde mental pede socorro! E você, o que tem feito? Jogado uma pá de cal, ou mesmo uma tinta por cima para tentar amenizar? Esquivar-se é um dos caminhos, porém, não resolve!

Negar que precisa de ajuda só mascara a dor! Esperar que o tempo se encarregue? Ele não vai fazer isso. Então se cuide, busque auxílio, tratamento. Não jogue pá de cal onde o que precisa é de uma boa dose de autoamor.

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ROMA: fragmentos de uma infância

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Concorre com 10 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Direção (Alfonso Cuaron), Melhor Atriz (Yalitza Aparicio), Melhor Atriz coadjuvante (Marina de Tavira), Melhor Roteiro Original, Melhor Fotografia, Melhor Filme Estrangeiro (México), Melhor Edição de Som, Melhor Mixagem de Som, Melhor Design de Produção (Eugenio Caballero, Bárbara Enriquez)

O diretor mexicano Alfonso Cuarón (ganhador do Oscar por Gravidade) apresenta de forma intimista, mas com quadros grandiosos e repletos de detalhes, um olhar sobre suas memórias de infância na Cidade do México, no início da década de 70, em um bairro chamado Roma (que dá título ao filme). Roma é apresentado sob a perspectiva de uma jovem indígena que trabalha como empregada doméstica para uma família branca de classe média. Ela também é a babá dos filhos do casal e essa personagem foi inspirada na babá da vida real de Cuarón, Liboria “Libo” Rodríguez, que desempenhou um papel importante em sua criação e a quem ele dedicou esse filme.

Desde a abertura, que mostra a água sendo jogada em um chão de azulejo e nela surge o reflexo de um céu que parece estar distante demais da sujeira que escorre pelo ralo, é revelado que a água é a metáfora condutora da história. Seja para mostrar a separação aparente das classes sociais, como analisou o cineasta Guillermo Del Toro [1], seja para dar voz finalmente a personagem principal em um dado ponto da história.

Fonte: https://goo.gl/5bddhj

Em todos os sentidos, Roma é o olhar do Cuáron sobre alguns recortes de sua infância, especialmente sobre a babá que, segundo ele, o criou e contou-lhe histórias de sua aldeia e seus costumes, fatos esses que o inspiraram em sua trajetória como cineasta [2]. Mas, não ouvimos essas histórias de Cleo, a babá interpretada por Yalitza Aparicio em seu primeiro filme, nem sabemos como é a sua família, nem temos a verbalização de suas angústias. O que vimos, na realidade, é a representação do seu silêncio ao acompanharmos sua rotina na casa da família. Ela limpa, faz compras, lava roupa, apaga as luzes, abre os portões, cuida do cachorro, coloca as crianças para dormir e, principalmente, escuta as crianças, compartilha dos seus mundos, o que aparentemente não é algo que os pais fazem.

Ao mesmo tempo que a família é grata a ela, o que é mostrado em pequenos gestos, como quando a levam ao médico para que tenha os cuidados necessários em sua inesperada gravidez, ou compartilham alguns momentos de intimidade, também pode ser observado nos detalhes da convivência a aparente irreconciliável separação entre as classes. O lugar que, de fato, Cleo ocupa naquela família transita entre dois extremos, do tipo, salvou as crianças, que ótimo, somos gratos, estamos todos emocionados, agora vai preparar uma vitamina de banana.

Em Roma, as falas estão sempre em segundo plano perante uma fotografia exuberante, apresentada em uma tela panorâmica e em preto e branco. Assim, quando a mãe da família diz a Cleo, em um momento de embriaguez, “estamos sozinhas; não importa o que eles digam, nós mulheres estamos sempre sozinhas”, novamente, temos o silêncio e o espaço como resposta.

Fonte: https://goo.gl/Nr1b8S

Dos quatro filhos do casal, é Pepe (Marco Graf, que talvez seja a representação do Alfonso Cuarón no filme) que tem mais destaque, pois é a criança mais nova e, consequentemente, a que fica mais tempo com Cleo. Com Pepe, Cuáron traz a premissa de que “tudo é cíclico”, conforme analisa o cineasta Guillermo Del Toro [1], por isso que ele sempre fala de sua vida adulta no passado, quando teve diferentes profissões e viveu inúmeras experiências. Um dos momentos mais bonitos no filme ocorre entre os dois, quando Pepe deitado em um ponto do telhado se recusa a levantar, pois está morto (já que o irmão disse que sua missão nas brincadeiras de pistola com água era morrer). Cleo deita-se também, assim quando é questionada por Pepe sobre o que está fazendo, ela diz: “estou morta”. E acrescenta: “Olha só, gostei de estar morta”. Como diz Caleb Crain [2],

Não há muitos filmes capazes de transmitir o prazer de estar no mundo sem qualquer outro objetivo além da apreciação. Assim, talvez, em parte, a gratidão do espectador por ser lembrado deste prazer é o que faz com que os personagens deste filme sejam tão caros.

Voltando a metáfora da água, citada por Del Toro [1], para contar alguns aspectos importantes na vida da personagem principal, tem-se em uma das sequências Cleo e a avó da família em uma loja de móveis, quando assistem assustadas uma manifestação estudantil se transformar em um motim policial. Cuarón não identificou o incidente, mas é conhecido no México como o Massacre de Corpus Christi de 1971. Nesse contexto, aparece em frente a Cleo, com uma arma na mão, o pai do seu filho que, ironicamente, está com uma camisa dos desenhos “Amar é”. Com o susto, a bolsa se rompe, a água jorra e, mais tarde, o bebê nasce morto. Acompanhamos o olhar dela para a criança morta sendo enrolada em uma mortalha branca, não há música, nem palavras, só a imagem e o som ambiente do movimento dos médicos, das enfermeiras e, especialmente, do seu choro sufocado. Vale ressaltar que nenhuma música foi usada no filme, o som vem apenas das ações que acontecem na tela.

Fonte: https://goo.gl/PD5etM

A outra sequência que mostra a força da água e, consequentemente a força de Cleo, é um dos momentos mais impactantes do filme. Há o barulho das ondas, o grito das crianças e o desespero da babá para conseguir resgatá-las, mesmo sem saber nadar. Quando finalmente consegue e volta a areia e toda a família a abraça, ela fala: “Eu não a queria. Eu não a queria. Eu não queria que ela nascesse.” Ali, ela conseguiu trazer à tona a dor e a angústia que a sufocavam, pois em todos os acontecimentos ela estava sempre em segundo plano, como se ela tivesse vindo ao mundo apenas para servir, para tornar a vida dos outros mais fácil.

Fonte: https://goo.gl/YpUHFv

A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que

se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem.

A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na

paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, […]

(SARAMAGO, 2006, p. 18 [3])

Quando recordo a minha infância, as imagens vêm em recortes sem uma sequência definida, não lembro de acontecimentos mundiais grandiosos vinculados a alguma passagem, mas de pequenas coisas que me marcaram, como a última vez que estive no colo da minha mãe, ou quando eu corria atrás dos barquinhos de papel jogados na lama. Mas é sempre a pessoa adulta recordando, então, como disse Saramago em suas “pequenas memórias”, talvez essas passagens tão importantes para mim sejam um tanto diferenciadas da real experiência. Assim, também, parece-me coerente deduzir que Cuáron retratou a babá que ele imaginava, ou seja, recriada por ele. Então, mesmo que ela ainda esteja viva e que eles mantenham contato, aquelas passagens descritas no filme, vivenciadas por ele quando criança, estão sujeitas a composição criada em sua memória, a partir do seu olhar. Nesse caso, um olhar em preto e branco, detalhadamente orquestrado, ainda que sem música, mas indubitavelmente pessoal. É um filme sobre Cuáron, não sobre Cleo.

FICHA TÉCNICA:

ROMA

Título original: ROMA
Direção: Alfonso Cuarón
Elenco: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Marco Graf
Países: México, EUA
Ano: 2018
Gênero: Drama

REFERÊNCIAS:

[1] https://twitter.com/RealGDT/status/1084701184110153729

[2] https://www.nybooks.com/daily/2019/01/12/roma-through-Cuaróns-intimate-lens/

[3] SARAMAGO , José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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Ilha dos Cachorros: o nazifascismo através do stop motion

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Concorre com 2 indicações ao OSCAR:

Melhor Animação, Melhor Trilha Sonora

Wes Anderson metaforiza os cães com humanos e a Ilha do Lixo com os campos de concentração dos regimes ditatoriais nazifascistas

Ilha dos Cachorros (2018), dirigido por Wes Anderson, é uma animação stop motion que conta com uma produção que harmoniza o futurismo com recordações de guerra em uma grande e bela homenagem ao Japão. O enredo apresenta uma estória tocante protagonizada por Atari, um garoto japonês de 12 anos de idade, sobrinho órfão do prefeito, que reside em Megasaki, no Japão.

A cidade fictícia é governada por Kobayashi, um prefeito corrupto que aprova uma lei que bane todos os cachorros da cidade e os manda para a Ilha do Lixo, por espalharem uma suposta febre canina que assola cães de raça e vira-latas. Atari não aceita a separação de Spots, seu animal de estimação, rouba um pequeno jato e vai para a Ilha. Lá encontra um grupo de cães que o ajudam na busca de seu fiel amigo.

Fonte: encurtador.com.br/loAF4

Wes Anderson metaforiza os cães com humanos e a Ilha do Lixo com os campos de concentração dos regimes ditatoriais nazifascistas, tema que deve ser retratado para nunca nos esquecermos de que a democracia, governo do povo, pelo povo e para o povo, como dizia o ex-presidente estadunidense Abraham Lincoln, é o caminho para a paz.

O filme representa estas ideologias extremistas através do autoritário governante de Megasaki, que faz uso intenso do marketing para convencer que os cachorros são perigosos, prejudiciais aos humanos e precisam ser excluídos da civilização, como, por exemplo, nos governos de Hitler e Stalin, que possuíam um ministério voltado exclusivamente à propaganda. Estes liderantes totalitários enfeitam as verdades e ocultam as mentiras para se promoverem e penetrarem na cabeça da população. Os governos autoritários possuem táticas repressivas contra opositores e proibição de atividades anti-regime, conforme ocorre na animação: embora a ciência provasse que havia cura para a suposta epidemia e que não havia nenhuma ameaça, o prefeito Kobayashi “plantou’’ essa ideia na cabeça de grande parte da população por intermédio do discurso de ódio, usufruindo da lavagem cerebral em massa para alcançar seu objetivo de exterminar os cães de Megasaki e assim conquistar a mente de inocentes. Logo, a execução do professor Watanabe, cientista que descobriu a cura para a febre canina demonstra a eliminação da oposição presente no autoritarismo.

Fonte: encurtador.com.br/fmQZ4

A personificação dos cães causa cenas humorísticas que não produziriam os mesmos efeitos se fosse feita com humanos, de fato, em um campo de concentração. A expressão dos animais é bastante acentuada, utilizando closes e uma produção impecável que os concede personalidades e subjetividade que permite um aprofundamento na relação de Atari com Chief, um vira-lata que vivia na rua que apresenta, no início, certa resistência ao humano. No decorrer do filme, a convivência entre os dois aumenta, gerando um afeto que é demonstrado em pequenos atos como quando o garoto dá metade do biscoitinho que iria dar para Spots, seu cão, quando o encontrasse.

O convívio com animais é uma ferramenta de aprendizado e aperfeiçoamento das relações emocionais, podendo ter consequências bastante positivas e reforçadoras e podendo até mesmo preencher vazios existenciais, não apenas físicos, mas funcionais, àqueles que vivenciam alguma fragilidade no suporte social em seu cotidiano ou a sua ineficiência em suprir suas demandas afetivas. Eles nos trazem uma realidade tangível no que diz respeito a lealdade e companheirismo incondicional, porém, mesmo assumindo os mais variados papéis, não consegue suprir, por completo a ausência de outro humano.

Fonte: encurtador.com.br/wxN04

Um ponto que se sobressai na trama é a criação de uma figura feminina de atitude: a aluna de intercâmbio Tracy, que, com ajuda dos colegas, lidera a campanha pró-libertação dos cachorros que estão exilados na Ilha do Lixo, mesmo que sem o conhecimento de que o prefeito Kobayashi pretendia exterminá-los. Nesse viés, é notável a preocupação de Wes Anderson em introduzir o feminismo, assunto histórico, porém atual e que vem sendo retratado com cada vez mais frequência nos últimos anos, uma vez que vem garantindo cada vez mais o espaço da mulher na sociedade . Na animação não poderia ser diferente: o delírio de Wes Anderson nunca sai da realidade, abordando temas atuais e de peso que precisam de tal reconhecimento.

Ilha dos Cachorros é um filme adorável, capaz de emocionar com os personagens e criticar politicamente os governos ditatoriais de forma bem humorada e divertida. Pode ser visto como uma metáfora contra a sociedade autoritária que é capaz de eleger uma minoria e fazer de tudo para alcançar seus objetivos através da repressão e violência. É uma experiência única que abre feridas que doem até os dias atuais através do stop motion e da cultura japonesa.

FICHA TÉCNICA:

ILHA DOS CACHORROS

Título original: Isle Of Dogs
Direção: Wes Anderson
Elenco: Bryan Cranston, Liev Schreiber, Edward Norton
Ano: 2018
Países
:
Alemanha, EUA
Gênero: Animação, Aventura

REFERÊNCIAS:

GRIFFIN, James A.; MCCARDLE, ‎ Peggy. Os Animais em Nossa Vida. Família, Comunidade e Ambientes Terapêuticos. São Paulo: Papirus, 2013.

LINCOLN, Abraham. Discursos de Lincoln. São Paulo: Penguin Companhia, 2013.

TIBURI, Márcia. Feminismo em comum: para todas, todas e todos. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2018.

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Virginia Woolf

À sombra de Virginia Woolf

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Fragmentos de textos (entre aspas) de Virgínia Woolf retirados do livro “Contos Completos – Virginia Woolf”, Editora Cosac & Naif, edição de 2005.

“Nesta época tão curiosa, quando já começamos a necessitar de retratos de pessoas, de suas mentes e sua indumentária, um contorno fiel, desenhado sem mestria, porém com honestidade, é bem capaz de ter algum valor.”

E mesmo quando não conseguimos definir o valor de algo, continuamos a procurar o sentido das coisas, achando que esse sentido seja mais profundo do que o contorno de seus corpos. Não sei, de fato, quem foi Virginia Woolf, sei que seu texto me assusta, inquieta-me, deixa-me um tanto sorumbática, o que é contraditório, ficar meio morta e sentir-se a ponto de ter um ataque de vida. Mas, vou tentar compreender o contorno das sombras que vejo em suas palavras. Cada palavra, um fragmento. Cada pedaço de sombra, uma ausência.

“Entretanto sou incapaz de dizer o que é que eu quero, apesar de ansiar pelo que espero de alguma forma secreta. Pois muitas vezes, e com frequência cada vez maior, à medida que o tempo passa, dou comigo de repente a interromper minha andança, como se eu fosse paralisada por um olhar estranho e novo sobre a superfície da terra que conheço tão bem. Um olhar que insinua alguma coisa; mas que se vai antes de eu perceber seu sentido. É como se um riso nunca visto furtivamente se estendesse num rosto bem conhecido; por um lado dá medo, no entanto por outro ele nos faz um sinal.”

A sensação de conhecer a terra em que pisamos e da qual fazemos parte é poeticamente claustrofóbica. Não queria ser somente barro. Queria acreditar no olhar que não vejo, ainda que insista em buscá-lo na esperança de que ele repousa sobre mim. Tudo parece novo na terra e cada expressão dos rostos sem contexto é um sinal de que sou incapaz de sair da esfera que circulei em torno dos meus pés. Talvez, ela quase compreendesse o olhar. Mas, “quase” é terrível. Que Deus não nos permita sair do círculo em torno dos nossos pés. Não ainda.

“É mais fácil escrever sobre a morte, que é comum, do que sobre uma vida única.”

Uma vida única não é qualquer vida. É terrivelmente singular. Digo “terrivelmente” porque aprendemos desde sempre a sermos muitos, a buscarmos um sentido homogêneo e grandioso para as coisas.

“Quero mergulhar cada vez mais fundo, longe da superfície, com seus fatos isolados, indisputáveis.”

Tenho medo de lagos e mares. Só confio na água que posso controlar. Acho que ela também tinha medo, as pedras nos bolsos a protegeram do instinto da vida que, por ser instinto, não nos cabe compreender.

“É curioso como instintivamente protegemos nossa própria imagem de idolatria ou de qualquer manipulação que a possa tornar ridícula, ou diferente demais do original para que ainda acreditem nela.”

Nem sei se posso realmente dizer que conheço meu original, logo a imagem que vive em mim talvez seja tudo que tenho. Ainda que “ter” seja um verbo totalmente sem significado em qualquer língua, tempo ou lugar. Penso que um nariz grande possa ser ridículo, talvez porque conviva com pessoas de narizes pequenos. Penso que muito do que há em mim possa ser questionado, adorado ou ridicularizado, mas são apenas pensamentos, nada mais.

“Suponha-se que o espelho se despedace, que a imagem desapareça e que a figura romântica com o fundo verde da floresta a envolvê-la não esteja mais lá, mas apenas aquilo, a casca de uma pessoa que é vista por outras – que mundo raso, árido, proeminente e sem ar ela se torna! Não um mundo no qual viver.”

Se eu a conhecesse, diria que ela queria muito ser “um mundo no qual viver”, mas tinha indagações demais para fazer o que alguns de nós faz, ou seja, acreditar. Acreditar só para poder levantar toda manha e adormecer toda noite com medo de que aquela noite possa ser a última. O medo é perigoso, mas nos faz, paradoxalmente, dormir e acordar.

“Quando nos encontramos face a face, nos ônibus e trens subterrâneos, é no espelho que nós estamos olhando; o que explica a vaguidão, o brilho de vidro, em nossos olhos.”

Tudo que temos são espelhos. Mas, um espelho não é assim tão ruim, ele nos permite enxergar sombras. Platão já havia descrito essa sensação e muitos depois dele também. Talvez nossos olhos não sejam “a janela da alma” (desculpe-me Machado de Assis), sejam apenas o reflexo daquilo que é possível deixar o outro ver. O outro nos vê vagamente, mas mesmo em meio a nebulosidade há um brilho. Brilho não deve ser teorizado, apenas apreciado. Teorizamos demais.

“Coisa estranha é o silêncio. A mente se torna como uma noite sem estrelas; mas de repente um meteoro desliza, esplêndido, atravessando a escuridão, e se extingue. Por essa diversão, nunca dizemos suficientemente obrigado.”

Obrigada.

“Fascinado pelo contraste entre a porcelana, tão vívida e alerta, e o vidro, tão contemplativo e calado, ele se perguntou, pasmo e perplexo, como os dois tinham vindo a existir no mesmo mundo, para plantar-se, além do mais, no mesmo cômodo, na mesma estreita faixa de mármore. Mas a pergunta permaneceu sem resposta.”

Em meio a divagações, vejo-a em uma sala com móveis brilhantes, observando através da janela um colorido jardim. Se ela fechar os olhos, pode ouvir o barulho do lago ali perto. É tanto silêncio. A mente se alimenta do silêncio, ela começa a tecer pensamentos que vão desde os alicerces para a construção de uma grande cidade até a quantidade de sopro necessária para apagar uma vela. Vejo-a com o olhar sereno, o cabelo arrumado, a roupa limpa e a luta dos dedos sujos de tinta. Pobres dedos. Nunca dedicamos aos dedos nem uma mínima fração do silêncio que usamos para alimentar a mente.

“Há um momento que não consigo imaginar: o momento da vida dos outros que deixamos sempre de lado.”

Acho que ela imaginava. Se não imaginasse, não teria a consciência de dizer que “não imagina”. Se fôssemos só nós, vá lá. Mas há os outros e eles são tantos e cada qual é uma “vida única” e cada qual carrega seus olhos de vidro e seu silêncio. “Em silêncio ele se recolheu e, embora sua voz nada fosse, seu silêncio é profundo”. Talvez o silêncio de cada um seja profundo à sua maneira.

“Por que meu pai me ensinou a ler?”

Minha mãe me ensinou a ler. Isso porque nasceu em um mundo no qual não era mais nos dada alternativa a não ser compreendermos a guerra, a política, a economia, a geografia e a nós mesmas. Podíamos acreditar em nossa inferioridade, como tanto bradou Mr. Bennett, mas tivemos que sair dos nossos lares quentes, tirar nossos bebês dos braços e fazer alguns homens [e algumas mulheres] aceitarem o óbvio – pensamos e somos diferentes. Só que isso também é uma generalização estúpida, porque muitas de nós não pensam, como também muitos deles.

“Bem que poderia ter sido qualquer outra dos milhões de pedras, mas fui eu, eu!”

Queria ser a pedra, não apenas uma pedra. Mas queria muito que todas as outras (pedras) também fossem ‘únicas’. Quero demais.

“Nem assim a vida acaba…”

É.

“Ah, a marca na parede! Era um caramujo.”

Quase sempre é um caramujo, mas é interessante brincarmos com as possibilidades que nascem quando libertamos nossa tão domesticada percepção. Só assim voltamos a enxergar as coisas com uma certa perplexidade, aquela que tínhamos quando não havia tanto silêncio.

“… eu já começava a me perguntar se as sombras morrem, e como poderiam ser enterradas…”

Pensei tanto nessa frase quando a li. Pensei especialmente nela e nas pedras em seu bolso no último passeio ao Rio Ouse. Ainda que a minha mente crie artifícios para me fazer compreender que até as sombras morrem, não consigo aceitar esse fato sem um grande espanto, pois, mesmo que isso seja lógico, parece-me absurdo. Assim, continuo olhando para meus pés, pensando que o círculo que construí ainda é mais poderoso que minha vontade de ultrapassá-lo. Sou apenas uma pedra.

Parcilene Fernandes
Paraíso, 26 de Fevereiro de 2006

Saiba mais:

Virginia Woolf foi uma escritora inglesa. Nasceu em Londres em 1882 e morreu em 1941. Foi uma importante figura do movimento modernista. Dentre suas obras, podemos elencar: Mrs Dalloway (1925), Passeio ao Farol (1927), Orlando (1928), Um Quarto Só Para Si (1929), Entre os atos (1941), Contos Completos (1917-1941).

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Quem é e o que quer Tyler Durden?

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Tyler Durden, o terrorista, subversivo, controlador de películas de cinema, fabricador de barras sabão, aquele cara que tem o seu ego mais inflado que um Zeppelin nazista, esse cara, acredite se quiser, com todos seus defeitos e qualidades vai fazer você entender mais um pouco sobre você mesmo.

“A camisinha é o sapatinho de cristal da nossa geração. Você calça quando conhece uma pessoa. Dança a noite toda e depois joga fora. A camisinha, não a pessoa.”

Segundo um artigo escrito pelo pseudônimo “Hugo”, ao site “screamyell.com.br”, o autor  Chuck Palahniuk deixa claro que mesmo com toda essa revolução pela qual o mundo vem passando, nem todos são iguais.  Ele diz que existem três tipos de pessoas: há os inconscientes, que dificilmente conhecerão o livro e o filme “Clube da Luta” e, mesmo se conhecerem, não vão ser atingidos pela idéia do livro; há os “macacos espaciais” que estarão sempre esperando um Tyler Durden e não tomarão atitudes próprias nunca; e há os Tyler Durdens propriamente ditos. Mas afinal, quem são, agora no plural, esses Tyler Durdens?

Tyler Durden é uma criação esquizofrênica de Jack, protagonista do livro “Clube da Luta”. Ele é criado pela fragmentação de Jack. Desde o início do filme e do livro, é possível registrar alguns comportamentos e frases de Jack, simplesmente Jack, que antecedem o surgimento de Tyler.  Jack estava sofrendo de insônia há seis meses e procura orientação médica. Quando pede ao médico para prescrever uma medicação por estar com medo de morrer de insônia e ele diz: “- Mas eu estou sofrendo.”, O médico responde: “-Se você quer saber o que é dor, vai ao grupo de apoio de câncer testicular… Isso sim é dor.” A ideologia de Tyler se faz presente no final da fala do médico: “…Isso sim é dor.”

Mas é somente quando Jack está no avião que realmente Tyler se personifica. Jack, após seu relato sobre a monotonia, desilusão e frustração da sua vida, pensa inclusive em um choque entre aviões. Esse choque idealizado revela a raiva interior de Jack, simbolizando as alterações psicológicas que colapsaram a sua vida e a mudaria radicalmente. É aí que Tyler é criado.

Antes disso tudo, antes de Tyler ser materializado, Jack segue o conselho – em forma de lição de moral – que o médico lhe dá, e visita vários grupos de apoio, porém, ao contrário dos frequentadores destes grupos, Jack não sofre de uma doença fatal ou de algum tipo esquisito de parasitismo sanguíneo ou cerebral. Jack se torna o próprio parasita dependente do sofrimento dos outros. Os seus bens materiais representam para ele tão pouco que só assistindo à dor dos outros consegue chorar e, assim, dormir como um bebê. Porém, rapidamente os grupos de apoio deixam de ser suficientes. A figura de Tyler serve para preencher esse vazio – Tyler é o que Jack sempre sonhou ser.

Pode-se então conhecer a atividade profissional de Tyler e alguns detalhes a seu respeito. Tyler fabrica e vende barras de sabão. Sabão? Porque uma pessoa idealizada, decorrente da fragmentação do ser humano aparece como fabricador de barras de sabão? Segundo o mesmo Hugo citado acima, “por um lado, o sabão se prende com o lavar, apagar o materialismo – exatamente o que Tyler prega durante toda e viagem a respeito dos malefícios do consumismo – por outro, o fato de Tyler roubar gordura humana de centros de lipoaspiração para fabricar as barras de sabão que vende a $20 cada, remete para o extremo oposto”. Há uma antítese nesta figura: o mesmo sabão que nos leva para o anti-materialismo, é, na verdade, proveniente da forma mais pura de materialismo: a busca pela perfeição do corpo. Essa mesma ideologia explica a comparação que Tyler faz entre a camisinha e um sapatinho de cristal, constante no segundo parágrafo deste trabalho, mencionada fora de contexto e até agora sem nexo.

Tyler insiste na filosofia de que a dor liberta a alma. Assim, Jack começa uma atividade de auto-destruição para melhorar sua existência entediante: Surge aí o CLUBE DA LUTA.

Os pensamentos destrutivos de Jack são evidentes, principalmente quando Tyler faz uma queimadura química na mão de Jack, com um beijo e potássio. Quando percebemos que Tyler e Jack são a mesma pessoa, essa cena atinge outra dimensão que leva à percepção da auto-mutilação que se pretende recriar. O beijo, que significa amor, assume aqui o papel de destruidor. Não há limites para Jack. O que era deixou de ser. Os conceitos alteram-se neste novo e complexo mundo que Jack descobriu.

É aí, quando Jack descobre esse novo mundo, que a figura de Tyler toma controle da situação. Quando os Tyler Durdens do mundo real tomam controle da situação é que a coisa começa a ficar boa.

Tyler Durden te faz perceber o que te incomoda e dá as armas de que você precisa. Na verdade, o Clube da Luta é um manual prático do terrorista amador. Está tudo lá: o quê, como é, por que fazer. E, assim, chegamos ao principal: O que Tyler Durden quer?

Na verdade o que o Tyler Durden quer, na forma mais genérica de se dizer, é o desapego às coisas materiais. Contudo, como, quando e onde  ele quer vai depender do Tyler Durden de cada um e do quanto o Tyler Durden que existe em você – e que aparece através dos seus sonhos – está preparado para se mostrar.

Mas não se preocupe, logo depois de ensinar como fazer um silenciador caseiro ou de como preparar um monitor de computador para explodir na cara do seu chefe, ele avisa: “se furar errado, o revólver explode na sua mão”, “mas saiba que se houver uma faísca ou até mesmo eletricidade estática produzida pelo carpete, você está morto. Morre queimado e gritando” e “é aqui que você pode morrer se não usar uma chave de fenda com isolamento”. Geralmente isso é o bastante para intimidar um Tyler Durden ainda em desenvolvimento.

Ou seja, mesmo que você seja influenciado pelo livro ou pelo filme você não vai criar um maluco ou influenciar alguém de maneira destrutiva, pois não se cria artificialmente um Tyler Durden.

Certo, e agora? Onde chegamos? O que concluimos? Na verdade não há conclusões exatas assim como em trabalhos médicos usuais. Isso que é o interessante em se trabalhar com saúde mental.

O que nós queríamos saber mesmo era se uma obra somente pode representar toda um época? Nós esperamos que não. Nós preferimos acreditar que o que nos cerca e a época em que vivemos são muito mais complexos do que possamos supor. E, por isso mesmo, mais interessante. Mesmo com todas essas merdas que se dizem cultura e arte que existe por ai.

“Nossa geração não viveu uma grande guerra ou uma grande depressão, mas nós sim, nós vivemos uma grande guerra espiritual. A grande depressão é a nossa vida. Somos os filhos do meio da história e fomos ensinados pela televisão a acreditar que um dia seremos milionários, astros de cinema e do rock, mas é mentira.  Tudo o que você mais ama o rejeitará ou morrerá. Tudo o que você já criou será jogado fora.Tudo de que você mais se orgulha terminará em lixo.” Tyler Durden.


FICHA TÉCNICA DO FILME

CLUBE DA LUTA (Fight Club, EUA, 1999)

Gênero:Drama
Duração: 2h20min
Roteiro: Jim Uhls, baseado em livro de Chuck Palahniuk
Elenco: Brad Pitt, Helena Borham Carter, Meat Loaf, Jared Leto, Zach Grenier
Direção: David Fincher
Produção: Ross Bell, Cean Chaffin e Art Linson
Música: The Dust Brothers
Fotografia: Jeff Cronenweth
Direção de arte: Chris Gorak

 


Nota: o texto é resultado de uma atividade da disciplina de Psiquiatria do curso de Medicina do ITPAC – Porto.

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No subsolo com Dostoiévski

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O escritor russo Dostoiévski escreveu Memórias do Subsolo na segunda metade do século XIX e a obra foi publicada pela primeira vez em 1864. É um livro denso, narrado em primeira pessoa, por um sujeito não nomeado (um dos poucos personagens de Dostoiévski que apresenta tal característica), de 40 anos de idade, cuja vida parece ser um eterno deslizar de significados sem sentido. Para uma melhor condução do texto, denominarei o personagem principal de Homem do Subsolo.

    Arte: Bruna Thabata Ribeiro de Souza

O Homem do Subsolo tem dilemas e angústias atemporais, logo o fato do livro ter sido escrito no século XIX não implicará um distanciamento das vivências contemporâneas. O livro é dividido em duas partes: a primeira parte tem relação com o subsolo, que é, de certa forma, uma metáfora do inconsciente e a segunda parte é a narração que o personagem faz de alguns fatos de sua juventude (por volta dos 24 anos). Ao final, é realizada uma exposição breve sobre a existência no tempo atual do personagem (já na idade na qual ele se encontra).

A maior dificuldade em analisar uma figura saída de um romance de Dostoiévski reside no entendimento que a maior parte de seus personagens tem de suas angustias, medos, fraquezas, maldades, em suma, de sua essência. Assim, o Homem do Subsolo não é um sujeito alienado de sua própria natureza ou que pensa ser uma formiga (de forma literal) ou que acredita ser o dono da verdade (de forma absoluta). Ele é apenas alguém que resolveu compartilhar suas memórias e escrever sobre os pensamentos que ocupam sua mente na maior parte do tempo.  Assim, se não há a necessidade de ajudá-lo a ter uma compreensão de si próprio (já que ele parece fazer isso muito bem, ainda que ele próprio compreenda que muito do que ele é dificilmente possa ser trazido à tona), torna-se complexo inferir quais das suas funções psíquicas possuem algum tipo de alteração (se é que existam tais alterações).

Na juventude, o Homem do Subsolo foi assessor colegial (um posto mediano da administração civil, no regime czarista) e tinha em seu chefe de seção um amigo, ainda que tal amizade se resumisse a uma necessidade de ambos em ter um ouvinte esporádico, mesmo que pouco ou nada compartilhassem de fato. Siétotchkin (o chefe de seção) era um senhor de meia idade que morava com suas duas filhas e as tias destas. Em uma das poucas passagens do livro que tem tal relação como foco, o Homem do Subsolo assim se pronuncia:

“Mas só ia visita-lo quando atingia aquela fase, quando os meus devaneios me traziam tamanha felicidade que me era inevitável e imediatamente necessário abraçar as pessoas e toda a humanidade; e, para este fim, necessitava contar ao menos com uma pessoa que existisse realmente.” (p. 73)

O Homem do Subsolo é um solitário. Uma pessoa que ficou órfã ainda criança e que foi enviado a um colégio interno onde teve péssimas experiências. Vive em meio a um eterno paradoxo: ao mesmo tempo em que acredita ser uma pessoa esclarecida, extremamente inteligente (até superiormente inteligente), a vida cotidiana com suas minúcias e necessidades simplórias mostra-lhe o quão ele está distante da imagem de homem bem sucedido projetada pela sociedade.

Vale ressaltar que um Homem do Subsolo não existe apenas como resultado de uma determinada sequência de DNA. É necessário que se entenda o contexto no qual tal história foi erigida, mesmo que a dimensão psicológica desse romance existencial extrapole qualquer tempo ou espaço. Como o livro foi escrito no século XIX, em meio ao apogeu da Revolução Industrial e do Sistema Capitalista, do abandono de explicações metafísicas e da supervalorização do pensamento positivista, é interessante o fato de ele ser uma crítica à supervalorização da razão e da lógica. Nesse ínterim, as palavras do Homem do Subsolo mostram o quão tal preocupação exacerbada da sociedade em viver em prol de uma racionalidade delimitada e de uma lógica inflexível podem causar a fragmentação de indivíduos que vivem à margem de tal sistema.

Após essa breve contextualização do personagem, seguir-se-á a realização do exame de algumas das suas funções psíquicas. Para tanto, trechos citados por ele serão apresentados.

Contradição

“Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. […] Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. […] Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.” (p. 15)

Nesse ponto é possível compreender os pensamentos contraditórios que permeiam a existência do personagem principal. Há, também, na forma irônica do seu discurso, a necessidade de refutação de toda e qualquer verdade absoluta, mesmo que essa verdade seja defendida por ele próprio. Ao mesmo tempo em que ele afirma algo, constrói, em seguida, uma refutação. É um escárnio ou uma forma de permanecer no subsolo, já que por mais que ele traga à tona suas memórias, ainda vive no subsolo e precisa manter certas verdades (mesmo que transitórias) submersas.

“Mas sabeis, senhores, em que consistia o ponto principal da minha raiva? O caso todo, a maior ignomínia, consistia justamente em que, a todo momento, mesmo no instante do meu mais intenso rancor, eu tinha consciência, e de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo enraivecida…” (p. 16)

A grande dificuldade em analisar uma personagem de Dostoiévski é que eles, muitas vezes, já compreendem seus próprios demônios e nos apresentam a fragilidade de seus discursos elegantes em nome de mentiras bem construídas. O Homem do Subsolo sabia que vivia com máscaras presas à face, só não tinha noção de como era seu rosto sem elas.

Inteligência

“Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso – que para nada serve – de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de que somente os imbecis o conseguem.” (p. 17)

“… tenho culpa de ser mais inteligente que todos à minha volta. […] Finalmente, sou culpado porque, mesmo que houvesse em mim generosidade, eu teria com isso apenas mais sofrimento devido à consciência de toda a sua inutilidade.” (p. 21)

“… talvez o homem normal deva mesmo ser estúpido.” (p. 22)

“Todos os homens diretos e de ação são ativos justamente por serem parvos e limitados. Como explicá-lo? Do seguinte modo: em virtude de sua limitada inteligência, tomam as causas mais próximas e secundárias pelas causas primeiras e, deste modo, se convencem mais depressa e facilmente que os demais de haver encontrado o fundamento indiscutível para a sua ação e, então, se acalmam; isto é de fato o mais importante.” (p. 29)

A partir desse argumento, inicia-se um discurso recorrente sobre sua superioridade intelectual, ainda que ele desconstrua tal superioridade a todo o momento. Isso porque mesmo que sua aparente exacerbada inteligência seja motivo de orgulho, também é uma forma de tortura. Pois o homem prático, de natureza idiotizada, acalma-se mais facilmente com suas ações vazias e pela substituição das suas causas primeiras por causas secundárias, sem tanta importância.

Então, até poderia ser suscitado que há a ocorrência de alteração do Juízo da Realidade, na forma de um Delírio de Grandeza. No entanto, a maneira como ele próprio desconstrói essa sua superioridade intelectual, faz com que tal pensamento não tenha força suficiente para ser definido como delírio.

Consciência

“Uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa.” (p. 18)

“Quanto mais consciência eu tinha do bem e de tudo o que é ‘belo e sublime’, tanto mais me afundava em meu lodo, e tanto mais capaz me tornava de imergir nele por completo.” (p. 19)

“Com efeito, o resultado direto e legal da consciência é a inércia, isto é, o ato de ficar conscientemente sentado de braços cruzados”. (p. 29)

Aqui o Homem do Subsolo mostra que sua inteligência e sagacidade ao invés de lhe trazer melhores condições de vida, torna-o ainda mais submerso. A consciência, nesse caso compreendida como o entendimento das coisas, ao invés de potencializar sua ação em busca de uma melhoria de vida, exponencializa sua inércia perante a realidade na qual está inserido. Esse entorpecimento da ação pode ser um potencializador de um sentimento depressivo, já que uma das funções psíquicas afetadas é a Atenção, mais especificamente uma diminuição da atenção “passiva” (hipovigilância), pois ele quase não muda de foco, tendo em vista que as descobertas de certas verdades tiraram-lhe o desejo de buscar novos caminhos e, por outro lado, propicia o aumento da atenção “ativa” (hipertenacidade), ou seja, a inércia constitui o foco principal de sua atenção.

Ciência e Lógica

“A própria ciência há de ensinar ao homem que, na realidade, ele não tem vontade nem caprichos, e que nunca os teve, e que ele próprio não passa de tecla de piano ou de um pedal de órgão; e que, antes de mais nada, existem no mundo as leis da natureza, de modo que tudo o que ele faz não acontece por sua vontade, mas espontaneamente, de acordo com as leis da natureza. […] Todo os atos humanos serão calculados, está claro, de acordo com essas leis, matematicamente, como uma espécie de tábua de logaritmos.” (p. 37)

“… meus senhores, não será melhor dar um pontapé em toda essa sensatez unicamente a fim de que todos esses logaritmos vão para o diabo, e para que possamos mais uma vez viver de acordo com a nossa estúpida vontade?!” (p. 38)

“Não há dúvida, mas razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a manifestação de toda a vida. […] E, embora a nossa vida, nessa manifestação, resulte muitas vezes algo bem ignóbil, é sempre a vida e não apenas a extração de uma raiz quadrada.” (p. 41)

“Que sabe a razão? Somente aquilo que teve tempo de conhecer, enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo”. (p. 41)

“Ter o direito de desejar para si mesmo algo nocivo e estúpido, sem estar comprometido com a obrigação de desejar apenas o que é inteligente”. (p. 42)

“… continuaria convicto de ser um homem e não uma tecla de piano! Se me disserdes que tudo isso também se pode calcular numa tabela, o caos, a treva, a maldição – de modo que a simples possibilidade de um cálculo prévio vai tudo deter, prevalecendo a razão -, vou responder-vos que o homem se tornará louco intencionalmente, para não ter razão e insistir no que é seu!” (p. 44)

“Dois e dois são quatro mesmo sem a minha vontade.” (p. 45)

“… na realidade, dois e dois não são mais a vida, meus senhores, mas o começo da morte. Pelo menos, o homem sempre temeu de certo modo este dois e dois são quatro, e eu o temo até agora. Suponhamos que o homem não faça outra coisa senão procurar este dois e dois são quatro: ele atravessa os oceanos a nado, sacrifica a vida nesta busca, mas, quanto a encontra-lo realmente… juro por Deus, tem medo. […] Ele ama o ato de alcançar, mas, alcançar de fato, nem sempre. E isso, está claro, é ridículo ao extremo. […] Mas dois e dois são quatro é, apesar de tudo, algo totalmente insuportável.” (p. 47)

“Dois mais dois são quatro” representa uma impossibilidade de mudança perante os fatos da natureza. A lógica que há em tudo parece extinguir qualquer fagulha de livre arbítrio que há no homem. A existência desse axioma (que é, de certa forma, representado pela vitória da razão) pode incitar no personagem a alteração na função psíquica Humor e Afeto, já que tal ação pode ser capaz de provocar-lhe a alteração do humor denominada Ansiedade, pois há um enorme desconforto perante as evidências de que tudo está preso a uma lógica, assim ele não vê uma saída para o futuro, pois “dois mais dois são quatro” mesmo sem a sua vontade.

Essa ideia do imperativo da lógica como fonte de alienação do indivíduo pode, em alguns contextos, ser considerada uma alteração do conteúdo do Pensamento, já que pode ser compreendida como uma Ideia Prevalente, dada a recorrência de tal pensamento em forma de um loop profundo.

O Jovem Homem do Subsolo

“Eu tinha apenas 24 anos. Minha vida já era, mesmo então, desordenada e sombria até a selvageria. Não me dava com ninguém, evitava até conversar, e cada vez mais me encolhia em meu canto. […] Notei bem que os meus colegas não só me considerava um tipo original, como até – tinha esta impressão continuamente – pareciam olhar-me com certa aversão. […] Atualmente, percebo com toda a nitidez, que eu mesmo, em virtude da minha ilimitada vaidade e, por conseguinte, da exigência em relação a mim mesmo, olhava-me com muita frequência, com enfurecida insatisfação que chegava à repugnância e, por isso, atribuía mentalmente a cada um o meu próprio olhar.” (p. 55, 56)

Em um primeiro momento acreditei que ele poderia ter uma alteração no Juízo da Realidade, em forma de um Delírio de Referência, dado o fato que ele acreditava constantemente que os outros estavam zombando-o ou criticando-o. Mas, o entendimento dele (ainda que só aos 40 anos) de que, na verdade, o olhar dos outros sobre ele era uma projeção de seu próprio olhar, fez a ideia do delírio cair por terra.

“Torturava-me o fato de que ninguém se parecesse comigo e eu não fosse parecido com ninguém. ‘Eu sou sozinho, e eles são todos’, dizia de mim para mim, e ficava pensativo.” (p. 58)

Essa crença pode ser representada por uma alteração do conteúdo do Pensamento, o Juízo da Realidade, em forma de uma Ideia Deliróide, pois há uma convicção por parte do personagem de que estará sempre sozinho, sempre afastado de todos os outros, sem nunca encontrar uma equivalência ou, ao menos, um semelhante.

“… ora desprezava alguém, ora colocava-o acima de mim. (p. 57)

“Sempre tive consciência deste meu ponto fraco e, às vezes, temia-o ao extremo: ‘Exagero em tudo, e é isto que me faz capengar’”. (p. 126)

“Era o cúmulo do suplício, uma humilhação incessante e insuportável, suscitada pelo pensamento, que se transformava numa sensação contínua e direta de que eu era uma mosca perante todo aquele mundo, mosca vil e desnecessária, mais inteligente, mais culta e mais nobre que todos os demais, está claro, mas uma mosca cedendo sem parar diante de todos, por todos humilhada e por todos ofendida.” (p. 66)

“Mais ainda: no mais intenso paroxismo da febre do medo, sonhava sobrepujá-los, vencê-los, arrastá-los, obriga-los a amar-me; bem, ainda que fosse ‘pela elevação das ideias e pelo meu indiscutível espírito’”. (p. 84)

Em alguns trechos do livro é possível verificar a mudança de humor e afeto na relação que ele tem com as pessoas e na representação dessas pessoas para ele. Observa-se na “fala” da personagem a falta de esperança, a desmotivação, a descrença no ser humano e um constante sentimento de negatividade, além de uma vida social limitada e conturbada. Apesar de ser visto como uma mosca (asqueroso, desnecessário e vil), acreditava que da caverna reluzente e límpida na qual viviam os outros, as sombras que se formavam diante de seus olhos “lógicos” eram ainda mais enganosas. Já no subsolo, sombras e coisas confundiam-se e fundiam-se, mas quem ali vivia era capaz de distinguir tais intersecções e as formas percebidas assemelhavam-se mais àquilo que ele entendia como real.

Amor / Tirania / Desesperança

“Eu e você… nos unimos… ainda há pouco, e nem uma palavra dissemos um ao outro, e, depois, você ficou a examinar-me como uma selvagem; e eu a você, também. É assim que se ama? É assim que uma pessoa deve unir-se a outra?” (p. 108)

“É que você… fala como se estivesse lendo um livro”. (p.113)

“Eu não sabia falar de outro modo a não ser ‘exatamente como um livro’”. (p. 119)

“Acostumara-me a tal ponto a pensar e a imaginar tudo de acordo com os livros, e a representar a mim mesmo tudo no mundo como eu mesmo anteriormente compusera nos meus devaneios, que então nem compreendi imediatamente aquele estranho fato. E eis o que sucedeu: ofendida e esmagada por mim, Liza compreendera muito mais do que eu imaginara. Ela compreendera de tudo aquilo justamente o que a mulher sempre compreende em primeiro lugar, quando ama sinceramente, isto é, compreendera que eu mesmo era infeliz.” (p. 139)

“… amar significava para mim tiranizar e dominar moralmente. […] O amor consiste justamente no direito que o objeto amado voluntariamente nos concede de exercer tirania sobre ele. […] Queria que ela sumisse. Queria ‘tranquilidade’, ficar sozinho no subsolo. A ‘vida viva’, por falta de hábito, comprimira-me tanto que era até difícil respirar.” (p. 142)

“Deixai-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar. Para nós é pesado, até, ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos o fato um opróbrio e procuramos ser uns homens gerais que nunca existiram. Somos natimortos, já que não nascemos de pais vivos, e isto nos agrada cada vez mais. Em breve, inventaremos algum modo de nascer de uma ideia.” (p. 146, 147)

No trecho supracitado, pode ser observada uma alteração quantitativa da Afetividade, com a diminuição na intensidade e duração dos afetos (hipotomia), bem como na incapacidade que o personagem tem de formular respostas afetivas adequadas e pela própria rigidez afetiva apresentada em vários momentos do texto (hipomodulação).

E, por fim, podemos ser levados a acreditar em uma alteração do Juízo da Realidade, na representação da ideia delirante denominada Niilista. Isso é evidenciado na constatação final do Homem do Subsolo de que somos natimortos, de que não sabemos mais ser gente no sentido real da palavra, de que o futuro é obscuro, especialmente pela grande probabilidade do fato observável e concreto eliminar o desejo e da razão sobrepujar qualquer outra manifestação de sentimento humano.

Com os fatos apresentados acima, é ainda complexo inferir uma patologia, pois seria por demais simplório apontar a Depressão, por exemplo. Mesmo porque as alterações nas funções psíquicas apresentadas não podem ser confirmadas apenas com o que foi citado pelo personagem, há uma carência de informações e dados para uma análise mais minuciosa e com um maior grau de certeza.

A princípio, ousei acreditar que ele não apresenta alteração de função psíquica alguma, apenas tem que lidar com reflexões que sua mente trouxe à tona do subsolo quando, na verdade, seriam mais saudáveis que permanecessem submersas. O personagem tem noção de tudo que vive, até os delírios seguem uma lógica de difícil refutação por outras pessoas. A única questão apresentada no livro que considero extremamente complexa e, por vezes, doentia é o sentimento exacerbado de inveja. Essa característica fez-me crer que ele não está suportando tão bem os fatos que emergiram do subsolo. E, se há uma recorrente manifestação de sua inabilidade em lidar com seus pensamentos, então talvez uma patologia ou já esteja enraizada nele ou a caminho. Mas, não há nada que garanta que tais sentimentos ou pensamentos transformar-se-ão em uma patologia de fato. Talvez seja mais prudente a compreensão de que o ato de viver signifique encontrar formas de lidar com nossa percepção do mundo, mesmo que esta percepção advenha de sentidos construídos a partir de fatos que possam refutar muito daquilo que uma dada cultura e época entendam por normalidade.

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