ROMA: fragmentos de uma infância

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Concorre com 10 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Direção (Alfonso Cuaron), Melhor Atriz (Yalitza Aparicio), Melhor Atriz coadjuvante (Marina de Tavira), Melhor Roteiro Original, Melhor Fotografia, Melhor Filme Estrangeiro (México), Melhor Edição de Som, Melhor Mixagem de Som, Melhor Design de Produção (Eugenio Caballero, Bárbara Enriquez)

O diretor mexicano Alfonso Cuarón (ganhador do Oscar por Gravidade) apresenta de forma intimista, mas com quadros grandiosos e repletos de detalhes, um olhar sobre suas memórias de infância na Cidade do México, no início da década de 70, em um bairro chamado Roma (que dá título ao filme). Roma é apresentado sob a perspectiva de uma jovem indígena que trabalha como empregada doméstica para uma família branca de classe média. Ela também é a babá dos filhos do casal e essa personagem foi inspirada na babá da vida real de Cuarón, Liboria “Libo” Rodríguez, que desempenhou um papel importante em sua criação e a quem ele dedicou esse filme.

Desde a abertura, que mostra a água sendo jogada em um chão de azulejo e nela surge o reflexo de um céu que parece estar distante demais da sujeira que escorre pelo ralo, é revelado que a água é a metáfora condutora da história. Seja para mostrar a separação aparente das classes sociais, como analisou o cineasta Guillermo Del Toro [1], seja para dar voz finalmente a personagem principal em um dado ponto da história.

Fonte: https://goo.gl/5bddhj

Em todos os sentidos, Roma é o olhar do Cuáron sobre alguns recortes de sua infância, especialmente sobre a babá que, segundo ele, o criou e contou-lhe histórias de sua aldeia e seus costumes, fatos esses que o inspiraram em sua trajetória como cineasta [2]. Mas, não ouvimos essas histórias de Cleo, a babá interpretada por Yalitza Aparicio em seu primeiro filme, nem sabemos como é a sua família, nem temos a verbalização de suas angústias. O que vimos, na realidade, é a representação do seu silêncio ao acompanharmos sua rotina na casa da família. Ela limpa, faz compras, lava roupa, apaga as luzes, abre os portões, cuida do cachorro, coloca as crianças para dormir e, principalmente, escuta as crianças, compartilha dos seus mundos, o que aparentemente não é algo que os pais fazem.

Ao mesmo tempo que a família é grata a ela, o que é mostrado em pequenos gestos, como quando a levam ao médico para que tenha os cuidados necessários em sua inesperada gravidez, ou compartilham alguns momentos de intimidade, também pode ser observado nos detalhes da convivência a aparente irreconciliável separação entre as classes. O lugar que, de fato, Cleo ocupa naquela família transita entre dois extremos, do tipo, salvou as crianças, que ótimo, somos gratos, estamos todos emocionados, agora vai preparar uma vitamina de banana.

Em Roma, as falas estão sempre em segundo plano perante uma fotografia exuberante, apresentada em uma tela panorâmica e em preto e branco. Assim, quando a mãe da família diz a Cleo, em um momento de embriaguez, “estamos sozinhas; não importa o que eles digam, nós mulheres estamos sempre sozinhas”, novamente, temos o silêncio e o espaço como resposta.

Fonte: https://goo.gl/Nr1b8S

Dos quatro filhos do casal, é Pepe (Marco Graf, que talvez seja a representação do Alfonso Cuarón no filme) que tem mais destaque, pois é a criança mais nova e, consequentemente, a que fica mais tempo com Cleo. Com Pepe, Cuáron traz a premissa de que “tudo é cíclico”, conforme analisa o cineasta Guillermo Del Toro [1], por isso que ele sempre fala de sua vida adulta no passado, quando teve diferentes profissões e viveu inúmeras experiências. Um dos momentos mais bonitos no filme ocorre entre os dois, quando Pepe deitado em um ponto do telhado se recusa a levantar, pois está morto (já que o irmão disse que sua missão nas brincadeiras de pistola com água era morrer). Cleo deita-se também, assim quando é questionada por Pepe sobre o que está fazendo, ela diz: “estou morta”. E acrescenta: “Olha só, gostei de estar morta”. Como diz Caleb Crain [2],

Não há muitos filmes capazes de transmitir o prazer de estar no mundo sem qualquer outro objetivo além da apreciação. Assim, talvez, em parte, a gratidão do espectador por ser lembrado deste prazer é o que faz com que os personagens deste filme sejam tão caros.

Voltando a metáfora da água, citada por Del Toro [1], para contar alguns aspectos importantes na vida da personagem principal, tem-se em uma das sequências Cleo e a avó da família em uma loja de móveis, quando assistem assustadas uma manifestação estudantil se transformar em um motim policial. Cuarón não identificou o incidente, mas é conhecido no México como o Massacre de Corpus Christi de 1971. Nesse contexto, aparece em frente a Cleo, com uma arma na mão, o pai do seu filho que, ironicamente, está com uma camisa dos desenhos “Amar é”. Com o susto, a bolsa se rompe, a água jorra e, mais tarde, o bebê nasce morto. Acompanhamos o olhar dela para a criança morta sendo enrolada em uma mortalha branca, não há música, nem palavras, só a imagem e o som ambiente do movimento dos médicos, das enfermeiras e, especialmente, do seu choro sufocado. Vale ressaltar que nenhuma música foi usada no filme, o som vem apenas das ações que acontecem na tela.

Fonte: https://goo.gl/PD5etM

A outra sequência que mostra a força da água e, consequentemente a força de Cleo, é um dos momentos mais impactantes do filme. Há o barulho das ondas, o grito das crianças e o desespero da babá para conseguir resgatá-las, mesmo sem saber nadar. Quando finalmente consegue e volta a areia e toda a família a abraça, ela fala: “Eu não a queria. Eu não a queria. Eu não queria que ela nascesse.” Ali, ela conseguiu trazer à tona a dor e a angústia que a sufocavam, pois em todos os acontecimentos ela estava sempre em segundo plano, como se ela tivesse vindo ao mundo apenas para servir, para tornar a vida dos outros mais fácil.

Fonte: https://goo.gl/YpUHFv

A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que

se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem.

A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na

paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, […]

(SARAMAGO, 2006, p. 18 [3])

Quando recordo a minha infância, as imagens vêm em recortes sem uma sequência definida, não lembro de acontecimentos mundiais grandiosos vinculados a alguma passagem, mas de pequenas coisas que me marcaram, como a última vez que estive no colo da minha mãe, ou quando eu corria atrás dos barquinhos de papel jogados na lama. Mas é sempre a pessoa adulta recordando, então, como disse Saramago em suas “pequenas memórias”, talvez essas passagens tão importantes para mim sejam um tanto diferenciadas da real experiência. Assim, também, parece-me coerente deduzir que Cuáron retratou a babá que ele imaginava, ou seja, recriada por ele. Então, mesmo que ela ainda esteja viva e que eles mantenham contato, aquelas passagens descritas no filme, vivenciadas por ele quando criança, estão sujeitas a composição criada em sua memória, a partir do seu olhar. Nesse caso, um olhar em preto e branco, detalhadamente orquestrado, ainda que sem música, mas indubitavelmente pessoal. É um filme sobre Cuáron, não sobre Cleo.

FICHA TÉCNICA:

ROMA

Título original: ROMA
Direção: Alfonso Cuarón
Elenco: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Marco Graf
Países: México, EUA
Ano: 2018
Gênero: Drama

REFERÊNCIAS:

[1] https://twitter.com/RealGDT/status/1084701184110153729

[2] https://www.nybooks.com/daily/2019/01/12/roma-through-Cuaróns-intimate-lens/

[3] SARAMAGO , José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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Viva – A Vida é uma Festa: a influência da família na subjetividade

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Concorre com 2 indicações ao OSCAR:

Melhor Animação, Melhor Canção Original.

 

Lembre de mim, hoje eu tenho que partir

Lembre de mim, se esforce pra sorrir

O novo longa da Pixar, Viva – A Vida é uma Festa (Coco), é um filme de 2017 dirigido por Lee Unkrich, que surpreende pela estética encantadora e trilha sonora envolvente. A recente compra da Pixar pela Disney gera um filme com o melhor dos dois “mundos”, a leveza da Pixar e o grande apelo emocional da Disney.

O sonho do pequeno Miguel, de 12 anos, é se tornar um grande músico. Porém é reprimido por sua família, que repudia música devido a um abandono sofrido pela sua tataravó, que foi deixada com uma filha quando seu marido decidiu seguir seu sonho de uma grande carreira musical. Tudo isso em um contexto de uma pequena cidade do México, que celebra o “dia de los muertos”.

Fonte: https://goo.gl/zBf6gi

No México, o dia dos mortos é uma celebração que honra os falecidos no dia 2 de novembro. Acredita-se que nesse dia, os antepassados ganham permissão divina para visitar seus parentes. Por isso, a data é festejada com comida, bolos, festa, música, e as casas enfeitadas com flores, velas e incensos, e preparam as comidas preferidas dos que já partiram.

Após quebrar um porta-retrato, Miguel descobre uma foto de família incompleta de sua tataravó, faltando a figura do musico misterioso que a abandonou. Ao ver um violão familiar na fotografia, o jovem investiga e se convence que pertence ao seu cantor favorito: o magnífico Ernesto de La Cruz, um ícone nacional. Inspirado pela história de seu ídolo, Miguel decide se apresentar na praça da cidade em um festival de talentos em comemoração ao Dia dos Mortos, porém é retaliado por sua avó, que quebra seu violão. Para Peres (2005), as necessidades da criança seriam constituintes das emoções e motivariam o desenvolvimento, e por isso deveriam ser organizadas inicialmente na família por meio da comunicação entre os membros. Porém, isso seria dificultado devido aos vários modelos de família, influenciados por situações socioculturais.

Frustrado com o modelo imposto por sua família e desesperado, o jovem decide roubar o violão de quem acredita ser seu antepassado, De La Cruz, que fica em um memorial no cemitério. Invadindo o recinto, ele toca o violão, sendo surpreendido com uma grande reviravolta: ele passou para o mundo dos mortos. Surpreso com a nova forma, Miguel encontra seus parentes falecidos e descobre que a única forma de sair daquele mundo é com a benção de um parente. Sua tataravó decide lhe conceber a bênção, porém com a condição de que ele nunca mais se envolva com a música. Novamente, o garoto se encontra revoltado, mas dessa vez decidido a pedir a bênção a outro parente naquele mundo, o próprio Ernesto de La Cruz.

Fonte: https://goo.gl/7biQxa

A família é dinamicamente baseada em uma dicotomia, pois presa conservação e ao mesmo tempo, expansão (SAWAIA, 2005). Devido à necessidade de qualidade e sensibilidade nos seus vínculos, Sawaia (2005) aponta a afetividade como característica com um potencial perigo, uma vez que pode ser mantenedora de poder, tornando a ordem emocional algo político. Existem vários riscos, como a associação de amor com submissão; confusão de intimidade e democracia; e ainda idealizações da vida em família.

Os papéis iniciais assumidos pela criança na família, oriundos da afetividade necessária, seriam gradualmente diferenciados e singularizados e também se tornariam mais complexos. A formação da subjetividade seria dependente da afetividade, tornando as condutas dependentes do social. Portanto, a compreensão do caráter intersubjetivo dos papéis auxiliaria o desenvolvimento de um autoconceito, sendo a família um lugar de possível produção de subjetividades individuais, construindo um sujeito (PERES, 2005).

Fonte: https://goo.gl/fJiTQ8

Com a sua própria subjetividade em construção, Miguel encontra apoio na figura de De La Cruz, e a afetividade é o catalisador de sua motivação para se auto-desafiar. A instituição familiar se torna, portanto, um lugar de segurança e acalento ao indivíduo gerado nela, por meio de um atendimento mais atencioso e empoderador, favorecendo seu desenvolvimento.

Com muita música e um visual acalentador, Viva – A Vida é uma Festa pode arrancar lágrimas de qualquer um que o assista, pois salienta uma das capacidades mais nobres do ser humano: o amor.

Fonte: https://goo.gl/47js9L

FICHA TÉCNICA

                VIVA – A VIDA É UMA FESTA

Diretor:  Lee Unkrich
Elenco: Anthony Gonzalez, Gael García Bernal, Benjamin Bratt, Renée Victor;
Gênero: Fantasia
Ano: 2017

Referências:

PEREZ, Vannúzia L. A. O Estudo da Subjetividade na Família: Desafios Metodológicos. In: F. González Rey. (Org.). Subjetividade, Complexidade e Pesquisa em Psicologia. São Paulo: Thomson, 2005.

SAWAIA, B. B. Família e afetividade: a configuração de uma práxis ético-política, perigos e oportunidades. In COSTA, A; VITALE, M. (org). Família: redes, lações e políticas. 4 ed. São Paulo: IEE/PUC-SP e Cortez, 2005. p. 39 a 50.

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