O papel da narrativa na Humanização

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“Se não tem ação, não tem princípio”. Essa frase foi usada por Roseni Pinheiro1 quando, nos trabalhos do Seminário Norte de Humanização, discorria sobre o princípio da Integralidade.

No processo de sermos e-ou nos tornarmos humanos, de forma integral, lidamos diretamente com a forma como as pessoas contam suas histórias, pessoais e coletivas. A integralidade está intimamente ligada à narrativa uma vez que essa é um formato de relato histórico que posiciona sujeitos em torno de objetos, descrevendo ações e adjetivando tanto essas últimas quanto os sujeitos e os objetos. As qualificações podem ainda, por sua vez, ser intensificadas adverbialmente. A linguagem exercida pela língua tem, desse modo, papel importante na formação subjetiva uma vez que, no aprendizado da língua, não apenas repetimos fonemas e os associamos às grafias, mas também ela própria serve de substrato para que a criança construa a sua maneira de se socializar e também a sua maneira de olhar para a própria história e ao meio em que vive bem como a orientar sua narrativa de vida. Isso quer dizer que a maneira como falamos sobre nossa vida tem seu quinhão na gênese do pensamento, da memória e da criatividade. Dessa maneira é importante estudarmos o papel da narrativa de vida na constituição subjetiva.

A Educação Popular trabalha diretamente com a questão da narrativa. A partir da descrição e da narrativa (um tipo de descrição dos fatos) do cotidiano das pessoas, Paulo Freire revolucionou a prática de ensino, em especial a de alfabetização. A prática da Educação Popular é no sentido de educação de base de maneira que as pessoas de um determinado território apropriem-se da forma de falar sobre suas vidas. Tal apropriação é visualizável a partir do momento que tais narrativas passam a costurar afetos, técnicas e saberes; é visualizável quando tal educação opera protagonismo, ou seja, quando no trabalhar há emancipação do homem uma vez que o trabalho, na Educação Popular, anda juntamente com a educação, pois transforma o homem ao invés de o alienar. A narrativa torna-se, nesse contexto, um instrumento para a disseminação de uma cultura, para a disseminação do cantar, do dançar, do sentir. A narrativa da própria história e das próprias experiências é um meio para a humanização.

A Política Nacional de Humanização (PNH) é a principal política que coloca em cena a humanização. Tal tema parece necessitar de uma abordagem pedagógica, mas também uma abordagem na área da saúde, uma vez que é na criação dos laços sociais que a PNH exerce seu efeito práxico; com a capilarização ela adentra nas relações, analisando as instituições e ativa fluxos instituintes. A Educação Popular é um manancial instituinte, controlado, em grande parte, à base de fármacos. O TDAH é o que mais liga a escola à área da saúde, ou seja, o que mais liga as áreas da Educação e da Saúde são problemas e não parcerias – as relações entre esses setores são mais disciplinares do que em rede.

Nesse sentido, ficam as perguntas: Como estabelecer a intersecção entre a PNH e a Educação Popular? Ou melhor, quais práticas são possíveis para a “humanização” na educação, escolar ou não? E, mais especificamente, que práticas são possíveis usando a narrativa de vida? De que maneira a narrativa pode ser explorada de maneira a construir uma Educação Popular em Saúde?

A abertura da narrativa com a arte parece ser uma característica essencial para repensarmos o seu uso nas práticas sociais.

Nota: 

1 Coordenadora do LAPPIS e professora adjunta do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do RJ.

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Philippe_Pinel_à_la_Salpêtrière

Desacorrente-os

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Meu nome é Philippe Pinel, nasci no dia 20 de abril de 1745, em Saint André, França. Sou médico e filósofo. Consideram-me o “Pai da Psiquiatria”, devido a alguns trabalhos que resolvi fazer nos hospitais de Bicêtre e La Salpêtrière, em Paris. Hoje, vou contar para vocês a minha história e a de como surgiu à psiquiatria.

Aos meus 28 anos, eu me diplomei na Faculdade de Medicina de Toulouse e passei mais quatro anos me aperfeiçoando nos conhecimentos de Medicina nos hospitais. Para sobreviver, dava cursos e realizava trabalhos acadêmicos.

Em 1778, cheguei a Paris e o que me sustentou, à época, foram as aulas e as traduções de trabalhos científicos. Foi nesse período que comecei a me interessar pela doença mental, visitando doentes e escrevendo minhas observações em artigos.

Aos quarenta anos de idade, voltei minha atenção à psiquiatria, por causa de um amigo que vinha padecendo de uma psicose maníaca aguda. Quando comecei a me aprofundar nessa nova área percebi que havia muitas coisas erradas. Um exemplo: como pode uma pessoa passar 30 anos acorrentada em seu quarto e, o pior, por pessoas que deveriam protegê-la? Difícil encontrar lógica terapêutica nisso. Mas só comecei a tratar de doentes mentais mesmo em 1786.

No final do século XVIII, no ano de 1789, estive entusiasmado com e engajado na Revolução Francesa, momento histórico propício às transformações econômicas, sociais, políticas e marcante para a história da psiquiatria e da loucura. Até essa época, os Hospitais Gerais eram comandados pela autoridade real e pelo clero, que internavam pobres, doentes, pedintes, miseráveis, criminosos, entre vários outros excluídos.  E os loucos, coitados, no meio dessa multidão, desassistidos de cuidados. Eram excluídos por ignorância e por causa dessa também são tidos como vítimas de um castigo divino, endemoniados etc. Era difícil pensar em uma recuperação em um ambiente tão inóspito como aquele. Acredito que a loucura é uma doença, um desarranjo da mente, que ela deve ser tratada e não uma condição de ser do indivíduo.

Foi a partir desse momento, que comecei a pensar nos hospitais como locais para o tratamento dos doentes mentais, no sentido de humanizá-los e adequá-los ao novo espírito moderno. Apropriado pelo médico, e não mais pela autoridade real, o hospital se transformou em uma instituição medicalizada. E é esse processo de medicalização da loucura que faz com que surja, na medicina, sua primeira especialidade: a psiquiatria.

Enfim, no ano de 1792, casei-me com Jeanne Vincent, que me concedeu três filhos. No ano seguinte, fui nomeado médico-chefe, por influência dos meus amigos (Cabanis e Thouret), do Asilo de Bicêtre. Lá era um local destinado a doentes mentais do sexo masculino, onde os loucos eram acorrentados, em celas baixas e úmidas.

No ano de 1795, assumi mais um cargo de médico-chefe, agora do Hospício de Salpêtrière, um asilo destinado a doentes mentais do sexo feminino, onde também as loucas eram mantidas acorrentadas, às vezes por 30 a 40 anos.

Em relação ao adoecimento mental, defendi, durante minha vida, que ela não acontecia pela perda absoluta da razão e sim por uma alienação dela, motivada por algum distúrbio no âmbito das paixões. Acreditei ainda que o doente mental poderia representar um sério perigo à sociedade por perda da capacidade de discernimento entre o erro e a realidade.

Então, para tratar uma alienação mental precisei isolar o meu paciente do mundo exterior. Concluí que se eu hospitalizasse esse doente, estaria utilizando um instrumento que facilitaria a cura. Passo importante a se tomar perante o alienado, afastando-o das interferências que pudessem prejudicar a reeducação das mentes desagregadas e de suas paixões incontroláveis, as quais lhe tiraram a razão, afastando os delírios, as ilusões e fazendo com que esse doente retornasse à realidade. Tais medidas continham o princípio do que chamei de tratamento moral.

Ainda faziam parte do meu estudo as relações dos alienados com seus familiares e mesmo com os profissionais do hospício. E para isso, precisei me preocupar com o treinamento adequado do meu pessoal auxiliar e com a eficiência da administração do hospital. Aboli todos os tratamentos como sangria, purgações, em favor de uma terapia, em que eu pudesse ter mais contato e ser amigável com o doente.
Com isso, passei a conhecer o alienado, estudando e observando seus comportamentos. Comecei a descrever, a comparar, e analisar o alienado para formulação do trabalho terapêutico. O hospital começou a me servir de laboratório de estudos sobre as diversas formas de alienação mental.

Em 1801, escrevi o primeiro livro da psiquiatria, após introduzir várias inovações na prática dos hospitais de alienados. Publiquei o Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania e, nele, concentrei-me sobre a psicose maníaca, a qual considero a doença mental mais típica e a mais frequente no alienado. Oito anos depois, na segunda edição desta obra, acrescentei as experiências adquiridas em Bicêtre e em La Salpêtrière.

Eu, Philippe Pinel, propus libertar os loucos das correntes, pois – enquanto acorrentados – eles eram maltratados e algemados anos seguidos. Minha proposta foi tida como muito revolucionária para os padrões da época, mas teve um grande peso, visto que outros hospitais voltados ao tratamento do alienado foram criados a partir do modelo proposto por mim.

Dessa forma, restaurei a razão por meio de tratamentos morais, de modo a curar os alienados, tornando-os novamente senhores de suas vidas.

Nota: o texto é resultado de uma atividade da disciplina de Psiquiatria do curso de Medicina do ITPAC – Porto.

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