A Dislexia nunca me parou!

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O relato de uma pessoa que mesmo com os desafios de um distúrbio crônico, está concluindo a 2° graduação.

Fonte: pixabay; Segundo a Associação Brasileira de Dislexia, a dislexia é um distúrbio comum e afeta 5% e 17% da população mundial.

Desde criança, sempre tive dificuldades com a leitura e escrita. Lembro-me de ter que me esforçar muito, mais do que meus colegas de classe para entender o que estava escrito em um livro ou para escrever uma redação. Eu sempre fui uma boa aluna, mas muitas vezes me sentia desanimada e desmotivada por causa das minhas dificuldades com a linguagem.  No DSM IV (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), a dislexia é um distúrbio neurobiológico que afeta a capacidade de leitura e escrita do indivíduo. É um problema de processamento de linguagem que pode afetar a fluência de leitura, a compreensão de leitura e a ortografia. Estima-se que é um distúrbio comum e afeta entre 5% e 10% da população mundial. A causa exata da dislexia ainda não é totalmente compreendida, mas estudos sugerem que fatores genéticos e ambientais podem desempenhar um papel relevante.

Simplificando, a dislexia é uma maneira diferente de o cérebro funcionar. Não é um indicador de inteligência. O cérebro disléxico tem dificuldade em reconhecer como sons, palavras e letras são foneticamente colocados juntos. Essa é outra maneira de pensar. Como aluna, não foi fácil ajustar-se a um sistema educacional que não era preparado para alunos com necessidades especiais. Hoje vejo como os testes de ortografia, técnicas de memória baseadas na repetição, leitura em voz alta na sala de aula e testes de avaliação tradicionais poderia ter me auxiliado e lidar a dislexia como vemos hoje, o quanto essas ferramentas são eficazes e contribuem de maneira significativa no ambiente escolar e acadêmico. No entanto, mesmos com todas as falhas e suporte do sistema de ensino, muitos disléxicos ainda prosperam fora da sala de aula tradicional.

Embora as pessoas com dislexia processem informações de maneira diferente, isso também significa que cantamos músicas diferentes quando se trata de alfabetização, memória e concentração. Eu tive que me virar para aprender e passar de ano na escola. Eu sempre tive muita dificuldade em ler palavras em voz alta, entender o que foi lido, soletrar palavras corretamente, escrever com clareza e precisão, dificuldade em aprender rimas e canções, dificuldade em manusear mapas, dicionários e devido todos esses desafios, fui aprender escrever meu nome com uns oito anos de idade, bem mais tarde do que minhas coleguinhas de sala de aula, razões pelo qual me levou a ter sentimentos de inferioridade e baixa autoestima na infância.

Meus primeiros anos na escola foram de constantes desafios, como para qualquer disléxico. Eu era tão má a escrever que na 3ª série, minha professora de língua portuguesa perdia a paciência várias vezes comigo por não conseguir repedir corretamente as letras do caderno de caligrafia.  Outra professora ficou tão frustrada com minha falta de progresso em um problema de matemática que em uma aula jogou o livro em mim e disse: “engole esse livro pra ver se assim aprende”. A dislexia pode afetar a autoestima e a confiança de um indivíduo, bem como o desempenho acadêmico e a capacidade de se comunicar efetivamente, pois essas situações por um tempo me deixaram muito cabisbaixa.

Quando fui diagnosticada com dislexia aos 10 anos de idade pela minha professora no ensino fundamental, finalmente comecei a entender que minhas dificuldades não eram culpa minha. Eu não tive a oportunidade de ser acompanhada por terapeutas, fonoaudiólogos e professores especializados que me ajudaram a desenvolver habilidades de leitura e escrita. Na época meus pais não deram muita importância a esse diagnóstico e acredito que no fundo eles até compreenderam os motivos das minhas dificuldades, mas devido não terem condições financeiras para pagar o tratamento e acompanhamento necessário, eu cresci tendo que me virar e como não tinha noção na época do que de fato era dislexia, toquei minha infância, adolescência, juventude sem levar a sério e aceitar meu transtorno crônico.

O fato dos meus pais não terem se sensibilizado com minhas dificuldades e a escola (minha professora) por mais que tenha mencionado que eu preenchia características de uma criança com dislexia, ambos não tinham informações suficientes, estrutura e estratégias necessários para poder me ajudar a tratar esse um distúrbio comum. Acredito que, meus pais pensaram apenas que “eu não era muito inteligente” e por isso não tentaram encontrar um ambiente de aprendizagem no qual eu me encaixasse. Com isso, as minhas dificuldades foram identificadas, porém negligenciadas e eu acabei concluindo o ensino médio junto com meus amigos do ensino fundamental.

Fonte: pixabay; A dislexia é um distúrbio neurobiológico que afeta a capacidade de leitura e escrita do indivíduo.

Hoje, adulta com dislexia, ainda tenho dificuldades, mas aprendi a lidar com elas. Uso tecnologia assistiva, como um software de leitura de texto, para ajudar com a leitura e tento me comunicar de outras formas quando a escrita é difícil. Considero-me uma boa aluna, trabalhadora e estou orgulhosa das minhas realizações apesar da dislexia. Mas ser disléxico é uma luta constante, e um dos maiores desafios é a dificuldade em ler e escrever. Para mim, ler um livro técnico de psicologia é como decodificar uma mensagem criptografada, e leva muito tempo e esforço para chegar ao fim. A escrita também é um desafio, com problemas de ortografia e de colocação de palavras em ordem e por isso uso muito o dicionário e pesquisa de sinônimos das palavras para me auxiliar nas escritas.

Além disso, vale ressaltar que a dislexia afetou outras áreas da minha vida, não somente a escolar e acadêmica. Às vezes, tenho dificuldade em entender instruções verbais ou em lembrar nomes e datas importantes. Pode ser frustrante sentir como se estivesse sempre um passo atrás das outras pessoas. Outro desafio é o estigma e a falta de compreensão em torno da dislexia. Muitas pessoas assumem que ser disléxico é uma questão de preguiça ou falta de habilidade, o que pode levar a sentimentos de vergonha e inadequação. É importante lembrar que a dislexia é um distúrbio de processamento de linguagem real e que muitas pessoas com dislexia têm habilidades excepcionais em outras áreas.

Apesar desses desafios, a dislexia também pode ter aspectos positivos. Muitas pessoas com dislexia têm uma forma única de pensar e uma habilidade para pensar fora da caixa e encontrar soluções criativas para problemas. É importante lembrar que a dislexia não define quem somos e que podemos superar esses desafios e alcançar nossos objetivos. Todos nós podemos escolher uma carreira diferente, e inclusive se você pesquisar na internet, há muitos exemplos de pessoas com dislexia que teve e tem sucesso profissional. Além disso, o conhecimento sobre o distúrbio ajuda a entender as vantagens de pensar de maneira diferente e passar a se aceitar.

Apesar dos inúmeros desafios de ter dislexia, vale enfatizar que geralmente temos uma imaginação fértil, altos níveis de criatividade, excelentes habilidades de resolução de problemas e habilidades de comunicação inatas, qualidades inclusivas importantes para os empregadores em todos os campos. No entanto, acho que ainda há um estigma em torno da dislexia e outras diferenças de aprendizado. Muitas vezes, as pessoas assumem que é preguiça ou falta de habilidade quando, na verdade, é um problema real de processamento de linguagem. Espero que um dia haja mais compreensão e apoio para as pessoas com dislexia e outras diferenças de aprendizado, para que elas possam alcançar todo o seu potencial.

Morais J.A (1997), menciona que embora a dislexia não tenha cura, é possível levar uma vida normal se você receber apoio especializado desde cedo. O tratamento com fonoaudiólogo e psicólogo pode ajudá-lo a desenvolver estratégias para superar as dificuldades de fala e outros possíveis obstáculos em sua vida diária. A terapia também é importante para tratar possíveis problemas de autoestima, inclusive foi o que me ajudou nessa jornada.

Felizmente no ano de 2020, me tornei estudante de psicologia e em uma das matérias da faculdade, estudamos sobre os transtornos do neurodesenvolvimento, e um deles foi sobre a dislexia, foi aí que a minha ficha caiu. Eu realmente preenchia os critérios de uma pessoa com dislexia, passei a estudar sobre, aprendi estratégias que me auxilia e atualmente apesar dos desafios diários, eu não desisto de lutar.

E finalizo deixando um conselho para os pais: “Se o seu filho está constantemente sendo orientado a esforçar-se mais, a escrever melhor ou a deixar de ser preguiçoso, então talvez seja necessário levá-lo a fazer os testes para o distúrbio de aprendizagem mais comum do mundo.”

Referências

American Psychiatric Association. DSMIV: Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais.  Lisboa: Climepsi Editores; 1996

PAULA, Teles. Os efeitos psicológicos da covid-19. Palmas-TO. Disponível em <: https://www.rpmgf.pt/ojs/index.php/rpmgf/article/view/10097/9834 >. Acessado em 22 fev. 2023.

MORAIS J. A arte de ler, psicologia cognitiva da leitura. O ensino da leitura. Lisboa: Edições Cosmos; 1997. p. 241-72.

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Uma Advogada Extraordinária e a socialização de pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo

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A série sul-coreana “Uma Advogada Extraordinária”, lançada em julho pela Netflix, se tornou uma das mais vistas da plataforma no Brasil e no âmbito global e já está com sua segunda temporada confirmada pelo streaming, com lançamento previsto para 2024. Com uma memória fotográfica que impressiona o público, alto QI de 164 e um amor infinito por baleias que caracterizam uma função essencial no seu processo de pensamento, a trama apresenta ao telespectador o mundo das baleias de Woo Young Woo, uma advogada de 27 anos que foi diagnosticada com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) na infância.

Caracterizado como um transtorno neurológico associado ao desenvolvimento, o TEA causa prejuízos na comunicação, interação social e comportamental. Segundo SCHWARTZMAN, “o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento, caracterizado por alterações qualitativas e quantitativas na comunicação, interação social e no comportamento, em diferentes graus de severidade (SCHWARTZMAN, 2003, 2011; SECRETARIA DA SAÚDE DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2013; APA, 2013).

O K-drama conta a história de Woo Young Woo, que se formou em Direito com o destaque de melhor aluna na renomada Universidade Nacional de Seul e, após vivenciar obstáculos e preconceitos para conseguir um emprego, começa a trabalhar em um renomado escritório de advocacia da Coreia do Sul e passa a enfrentar as dificuldades características do TEA no processo de socialização. No escritório, começa a ser vista como estranha, solitária, fraca e incapaz, sendo alvo de discriminação e perseguição.

Fonte: Divulgação Netflix

Ainda que siga uma característica romantizada das produções coreanas, a série busca explanar de forma respeitosa, sensível e educativa as características do TEA, como a repetição, seletividade alimentar, aversão ao toque, comportamentos repetitivos e restritivos, dificuldade em interações sociais e aversão à exposição ao barulho. Woo Young Woo possui inteligência elevada na área do Direito, sabe todas as leis e seus artigos na ponta da língua e tem obsessão por baleias, sendo, por muitas vezes, o único assunto que lhe interessa conversar, características da Síndrome de Asperger, um estado do espectro autista.

No desenrolar da série, a brilhante Woo Young Woo, à sua maneira com seu mundo de baleias e conhecimento esplêndido em assuntos que são suas especialidades, torna-se uma profissional essencial no escritório pela sua inteligência e seu olhar único para a resolução dos casos, geralmente percebendo detalhes que os outros advogados não constatam, o que a torna peça fundamental para a resolução dos casos, fazendo com que a empresa os ganhe nos tribunais.

A adaptação funcional da protagonista também está ligada à sua relação com o pai que a série retrata. Conforme ASSUMPCAO E SPROVIERI (2001), a forma como a família lida será influenciada pela aceitação, interpretação e pela maneira com a qual os indivíduos lidam com os desafios aos quais são submetidos. Um bom funcionamento psicossocial representa um bom quadro de equilíbrio na coesão e adaptabilidade. Ou seja, uma boa capacidade de adequação da família frente às situações potencialmente estressantes.

Temple Grandin / Fonte: encurtador.com.br/xFJN2

Baseada em fatos reais, a trama jurídica foi inspirada na cientista americana, zootecnista e psicóloga, Temple Grandin, que também foi diagnosticada com TEA na infância e ficou reconhecida mundialmente por revolucionar as práticas para o tratamento de animais em fazendas e abatedouros que sofrem com a agropecuária, lutando e contribuindo para maior bem-estar deles. Em uma entrevista, Temple Grandin disse: “eu penso em imagens, eu não penso em linguagem falada. A mente autista se prende aos detalhes” e defendeu que o mundo precisa de todos os tipos de mentes.

A adaptação pessoal e profissional da protagonista que a série explana conquista e envolve o público, causando um misto de emoções acerca das revelações e descobertas sobre a mãe, o amor e as relações. A mensagem que passa é que o maior objetivo é desconstruir preconceitos de forma empática, pedagógica e promover reflexão em relação a imprescindibilidade da inclusão.

Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.” – Paulo Freire

Referências

SPROVIERI, M. ASSUMPÇAO JR, F.B. Dinâmica familiar de crianças autistas, Arquivos da Neuropsiquiatria, São Paulo, vol. 59(2-A): p. 230-237, 2001.

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