Publicitária investe em projeto social no Jardim Taquari

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Iniciativa idealizada por  Neyla Rodrigues ganhou nome de “Meninas de Deus” – Foto: Divulgação

Neyla Rodrigues não acredita em preconceito racial, e sim, em preconceito com pessoas menos favorecidas economicamente. Diante de injustiças e até do abandono deste grupo social, por parte dos governos e da própria sociedade, a publicitária decidiu dedicar grande parte do tempo para atender necessidades de crianças carentes que passam por abuso sexual e, em alguns casos, a indiferença da própria família.

 O En(Cena) entrevistou a publicitária Neyla Rodrigues, 35, empresária e idealizadora do Projeto Social “Meninas de Deus”, no setor Taquari, bairro da cidade de Palmas-TO. A iniciativa nasceu de um apelo social, mas também de uma visão prática de que é possível fazer mais, cobrando ação:  “Se puder ajudar uma criança hoje, não terá que restaurar um adulto amanhã”, alerta o slogan do projeto.

Há mais de 10 anos o trabalho voluntário entrou na agenda de Neyla Rodrigues. Mas um episódio, em 2013, fez uma reviravolta na vida dela. O caso de estupro ocorrido no setor Taquari, envolvendo uma adolescente, lhe deixou comovida e a fez tomar decisão de se dedicar ainda mais, para ajudar famílias e, principalmente, crianças e adolescentes em situação de risco social. Neyla estava na sala de espera de um consultório médico quando ficou sabendo da história de uma menina de 12 anos que foi estuprada, esfaqueada e deixada como morta no local do crime. “Quando fiquei sabendo dessa história, imediatamente procurei informações e descobri que, até mesmo a equipe médica do Hospital Geral de Palmas, chorou quando recebeu a adolescente para atendimento de urgência”. A publicitária relembra que, a menina chegou a ficar 90 dias em coma.  “Atualmente, mesmo com as marcas de agressões no rosto, ela já está estudando e fico orgulhosa, pois, ela busca referências minhas para o futuro”, diz.

Com visitas de rotina ao setor Taquari, a publicitária conheceu de perto a realidade de cerca de 400 famílias no bairro.  “Eu uso método individual para cada caso, não tenho uma formula mágica, minha fórmula não é dar cesta básica”.  Neyla acredita que cesta básica é apenas uma tentativa para distrair a pessoa da situação em que ela vive. “Confronto as meninas para tentarem mudar a situação de suas vidas, ensino a não dependerem de ninguém e a terem o controle de suas ações”, explica.

Neyla Rodrigues – Foto: Arquivo Pessoal

Para tornar de conhecimento público, sensibilizar e conscientizar sociedade, a publicitária criou uma página na rede social Facebook, para as postagens diárias. O conteúdo publicado conta com vídeos, imagens e textos contando um pouco da realidade e histórias que acontecem no Taquari. Neyla dá detalhes do projeto na entrevista para o En(Cena).

En(Cena) – O que a motivou começar o projeto “Meninas de Deus”, no Taquari?

Neyla Rodrigues – O caso de uma menina de 12 anos que foi estuprada e deixada como morta. Por já desenvolver um projeto social há dez anos, os piores casos sempre chegam até mim. Os moradores de Taquari já estavam há algum tempo pedindo que eu começasse o meu trabalho lá com as crianças e adolescentes, principalmente porque é grande o uso de crack em Taquari.

En(Cena) – Quais os principais problemas que você atende no Taquari?

Neyla Rodrigues – O meu foco são as crianças e adolescentes, não trabalho muito com adultos (risos…), eu gosto da espontaneidade e verdade das crianças. São casos de miséria, drogas, violência e prostituição, tento resolver qualquer coisa, não posso me prender a uma fórmula.As pessoas confundem muito, pedem pra visitar achando que é um abrigo, mas se fosse, eu estaria presa a resolver apenas um tipo de problema. Em certos casos, para ajudar uma criança eu procuro a fundo pesquisar todo o problema familiar, até que, tudo esteja resolvido e essa família tenha condições de ter uma vida digna sem precisar de ajuda. Eles confiam em mim e não gostam de receber visitas como se eles fossem atração de um circo, e eu respeito isso. Enfim, busco evitar que as crianças se envolvam com as drogas ou a criminalidade, temos encontros semanais em praças, quadras, casas emprestadas. Além disso, buscamos internações para usuários e empregos para os pais, todo mundo tem um talento para fazer algo bem feito, buscamos isso nas pessoas, capacitamos, fazemos “vaquinhas”, enfrentamos a burocracia. Não é tudo lindo como nas redes sociais, (página do facebook criada para buscar apoio voluntário), tem todo um desgaste burocrático e que toma muito tempo. Por exemplo, temos casos de meninas com tendências a prostituição, devido a mãe ser prostituta e influenciar a elas que também fossem. Diante disso tudo,não sou a favor de enviar alguém para abrigo, pois, penso eu, gera uma situação de abandono.


Crianças atendidas pelo Projeto Meninas de Deus. Foto: Divulgação

En(Cena) – Você teve que abandonar projetos da sua vida para se dedicar a outras pessoas?

Neyla Rodrigues – Sim. Os piores problemas chegam até mim 24h, tenho que acordar de madrugada todos os dias, ou trabalhar até tarde pra conseguir conciliar tudo. Mas, estou acostumada, sempre trabalhei sem horário de almoço, sem final de semana ou férias. Fico infeliz se não estou ajudando, é mais forte do que eu.

En(Cena)  –  Amigos e familiares, qual a opinião sobre sua dedicação com o Projeto?

Neyla Rodrigues – A minha filha entende bem, ela sabe que na verdade é a vontade de Deus e então ela me apoia. O resto da família tem medo porque envolve estupro, pedofilia, drogas, criminosos.

En(Cena)  – O contato com usuários de drogas, você teme pela sua segurança?

Neyla Rodrigues – Não temo pelo contato com os usuários em si, eles me veem como a última esperança deles, eles temem por mim mais do que eu mesma, eles se preocupam comigo. Mas, já recebi muitas ameaças. Trabalhar com projetos voluntários requer cuidados e critérios de segurança pessoal. Já estive em situações que me ofereceram riscos de morte. Eu enfrento problemas com pedofilia, pessoas usuárias de crack, tento tirar essas pessoas dessa vida e já aconteceu de eu ser ameaçada.

Crianças atendidas pelo Projeto Meninas de Deus. Foto: Divulgação

En(Cena) – No seu pensamento, qual seria a formula para melhorar a qualidade de vida dos menos favorecidos?

Neyla Rodrigues – Eu costumo dizer que se você puder ajudar uma criança hoje você não terá que restaurar um adulto amanhã. Tudo começa na infância, ensinar a criança a seguir princípios, ser correta, ensinar a sonhar, porque se você pode sonhar você pode realizar. A maioria cresce sem a companhia das mães, os pais têm que trabalhar e não têm tempo pra educar, esses pais, estão sempre preocupados com a fome, então, não sabem nem o que ensinar. Eles precisam conhecer Deus, saber que são amados e que podem ser quem eles quiserem ser. Trabalho! Trabalho bem remunerado melhora a vida das pessoas. Sempre que damos presentes pra crianças pobres acreditamos que pode ser qualquer coisa. Mas, quando o presente é para pessoas de classe rica, sempre procuramos o melhor, sendo que, os ricos já tem contato com o que é de melhor, devemos mudar essa forma de pensar na sociedade.

En(Cena) – Conta com parcerias e ajuda de classes sociais e do governo?

Neyla Rodrigues – Não tenho ajuda do governo, algumas pessoas tem nos ajudado com doações de roupas, alimentos e brinquedos. Pouquíssimas pessoas ajudam financeiramente. Temos muitas crianças com problemas graves de saúde, que precisam viajar para tratamento, uma delas morreu semana passada de leucemia, pois, necessitava de atendimento em Goiânia. As pessoas, em certos casos, querem doar amor, mas, entendemos que, amor sem obras, não chega a solucionar o problema. Enfim, casos como esses dependem de investimentos, até mesmo para as internações dos usuários de drogas. Enfim, recebo mais ajuda das pessoas que quase nada tem e que moram em Taquari, do que pessoas que possuem recursos para investimentos voluntários.

Neyla Rodrigues em atividade do Projeto Meninas de Deus. Foto: Divulgação

En(Cena) – O que pretende fazer para o Natal dessas famílias nesse final de ano?

Neyla Rodrigues – Vou fazer só para uma parte deles, cerca de 1.000 crianças. São mais de 4.000. Haverá entrega de brinquedos e lanches, pretendo conseguir chocotone, pois eles comentam muito e sonham com isso, mas acho que esse ano não vai dar.

En(Cena) – Como você resumiria sua historia de vida?

Neyla Rodrigues – É parecida com a deles! Claro, em contextos diferentes. Eu já me vi assim desamparada, sem ter com quem contar, e eu sou uma pessoa dedicada e perfeccionista, não tenho preguiça de trabalhar, mas qualquer pessoa pode passar por momentos assim onde tudo pode dar errado. Deus sempre realizou muitos milagres na minha vida, e por incrível que pareça Ele (Deus), sempre usou desconhecidos para me oferecer oportunidades, e eu aproveitei todas elas. Eu tento repetir isso com as pessoas que estão em contato comigo, e funciona, já são vários os casos “perdidos” que agora são casos de sucesso.

Crianças atendidas pelo Projeto Meninas de Deus. Foto: Divulgação

Tenho testemunho de muitas meninas fazendo faculdade, ou trabalhando e ajudando os pais. Eu não suporto ver ninguém sofrendo, porque eu já sofri demais, ver a alegria das pessoas me faz feliz. Saber que as crianças estão seguras, alimentadas, brincando, que não será um futuro marginal.. Ver usuários de drogas restabelecidos, trabalhando, me ajudando a ensinar contra o uso de drogas… isso me realiza!

Quem tiver interesse em ajudar, podem entrar em contato pela página do facebook –https://www.facebook.com/meninasdedeus12?ref=ts&fref=ts

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A Educação em uma comunidade autorreconhecida kilombola: A vivência da Comunidade Morada da Paz – CoMPaz

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A Comunidade Morada da Paz (CoMPaz5) é uma comunidade autorreconhecida kilombola sustentável ecológica espiritual fundada em 2002 no município de Triunfo/RS, em Vendinha à 52 quilômetros de porto Alegre (capital do Rio Grande do Sul) com o objetivo de promover a sustentabilidade ambiental como caminho para uma melhor qualidade de vida. Desde então, realiza ações e projetos intergeracionais nas áreas de educação, saúde, meio ambiente, cultura de paz e cultura afro-brasileira, sendo recentemente reconhecida pela Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul como Ponto de Cultura Omorodê, que significa infância no dialeto africano yorubá.

Somos autorreconhecidos kilombolas sustentáveis ecológicos e espirituais porque somos predominantemente negros e negras e compartilhamos um jeito de ser e de viver que tem uma origem ancestral e se fundamenta na identidade que construímos na relação comunitária, baseada em uma hierarquia de saberes, na espiritualidade e na conexão que estabelecemos com o solo sagrado que nos acolhe, onde a  natureza e todas as divindades que a constituem são respeitadas e reverenciadas.

A CoMPaz nasceu em 2003, a partir do sonho de homens e mulheres que de 1998 a 2002 estavam buscando estudar e aplicar no cotidiano princípios e valores presentes em várias tradições filosóficas e religiosas, como a

solidariedade, a ética, a unidade, a determinação, assim como construir um jeito de ser e viver mais integrado à espiritualidade, à natureza e que trouxesse benefícios a todos os seres sencientes. O grupo constituído nessa época chamava-se Cosmos – Grupo Universalista de estudos e Aplicabilidade da Mediunidade e Paranormalidade e fazia estudos e ações baseadas na literatura que trata do movimento litúrgico afro-brasileiro, budista, espírita, xamânico.

Este ensaio é um relato de experiência, onde iremos analisar como ocorre a educação no território da CoMPaz, observando principalmente a dinâmica com os o-madês, que em uma livre interpretação do dialeto africano yorubá significa crianças. Na cosmovisão matricial africana, a qual estamos conectados, a criança é a dona do mundo, o homem é o zelador da comunidade, a mulher a guardiã da continuidade da vida e os anciões os guardiões da memória ancestral.

Destacamos que a CoMPaz está inserida na área rural do município de Triunfo/RS (Região Metropolitana de Porto Alegre), tendo 4,2 hectares de tamanho, possuindo no seu interior mata nativa, açude, pomar, animais domésticos, silvestres e a presença de 6 clãs. Atualmente residem na CoMPaz 16 pessoas, mas estamos sempre recebendo interessados(as) em intercâmbios, vivências ou peregrinações.

Na Comunidade Morada da Paz o processo educacional dos o-madês é constituído através da integração de todos os adultos que partilham a guardiania e o seu zelo. Há um momento semanal onde ocorre o ipadê (circulo) dos cuidadores, espaço onde são compartilhadas impressões, percepções, sensações e orientações voltadas à educação dos o-madês. As orientações podem ser direcionadas individual ou coletivamente aos o-madês ou aos seus progenitores dependendo das necessidades específicas.

Autor: Mestre Paraquedas, 2014.

A educação na CoMPaz é orientada a partir dos princípios da Comunidade e das cosmovisões matricial africana, indígena (mbya-guarani) e budista tibetana, onde o respeito aos anciões e ancestrais é um traço marcante do seu jeito de ser e de viver.

Os o-madês realizam diariamente suas preces práticas que tem como proposta trabalhar o sentido e o significado do fazer a atividade, seja ela cuidar dos animais, laborar na horta ou preparar a alimentação. Em todas as preces práticas os o-madês são acompanhados por um gba oya nkan (responsável no dialeto yorubá).

Existe na CoMPaz o projeto Escola da Terra Pura para implantação de um centro de educação holística no território sagrado, onde os o-madês possam aprender através de vivências teórico-práticas, orientadas pela agroecologia, filosofia, espiritualidade com turmas multi-idades. Hoje, a CoMPaz está se preparando para esse momento, como mostra a foto abaixo.

A espiritualidade é um componente primordial do movimento educativo da CoMPaz. A participação nos ritos e ipadês por parte dos o-madês são estimuladas como etapas dos seus processos de formação. Nos ipadês há a permanente troca de saberes e fazeres, a partilha de vivências, que esclarece e fortalece cada um e todos na comum unidade.

 Vivência intergeracional na Horta CoMPaz 2014. Acervo institucional.

Os itans, histórias e contos sobre a cosmovisão (visão de mundo) matricial africana, sobretudo da nação yorubá contribuem para o processo de educação em comunidade e são contados diariamente no território sagrado da CoMPaz constituindo-se em um recurso pedagógico tanto para os adultos quanto para os o-madês se (re)conectarem com suas raízes ancestrais. Geralmente quem faz a contação de histórias na CoMPaz é um ancião do território, uma yabá ou um baba, que são os guardiões da tradição oral.

A Colônia de Férias Curumim-O-Madê que acontece desde 2008 na segunda quinzena de fevereiro durante 4 dias é um importante momento de partilha na CoMPaz, onde são acolhidas crianças do entorno e da região metropolitana para uma série de vivências do cotidiano comunitário, jogos, brincadeiras e oficinas.

Contação de Histórias na CoMPaz, 2011. Acervo institucional.

As diferenças que as crianças da CoMPaz observam entre o jeito      de ser e de viver que orienta a sua educação e o que é estimulado pelo sistema capitalista através do apelo ao consumismo e ao individualismo principalmente, são abordadas com muito diálogo, sempre visando o esclarecimento, não a imposição de ideias, pois acreditamos que assim eles serão adultos mais conscientes das escolhas que venham a fazer nas suas vidas.

Os movimentos educativos da CoMPaz também se realizam na escola onde as crianças da comunidade estudam, na localidade de Rua Nova, em Montenegro/RS, local em que os seus anciões ministram palestras, mini-cursos e oficinas voltadas aos professores e aos estudantes.

Estamos sempre buscando firmar novas parcerias e alianças com pessoas e instituições afinizadas com os nossos princípios e valores, independente de sua origem étnica, religiosa ou procedência. Hoje a CoMPaz participa de várias redes locais, regionais e nacionais, além de contar com uma rede de colaboradores desde a sua fundação, a Rede de Envolvimento Solidário (ReSol), tecida através de encontros promovidos em seu território, como seminários e vivências integradoras. Desde 2012 existe a Rede de Educadores CoMPaz que congrega parceiros e aliados da Comunidade que cooperam nas suas atividades ministrando oficinas nas áreas de artesanato, agroecologia, dança, matemática, literatura, português, teatro e contação de histórias.

Podemos considerar que a educação para a vida na CoMPaz é uma práxis contínua e ininterrupta, que como diria o saudoso Gonzaguinha “revela a beleza de sermos eternos aprendizes”.

Finalmente, analisando a nossa vivência sob a perspectiva da educação, percebemos a veracidade do itan africano que revela que para se educar um o-madê é necessário o somatório de esforços e a integração de toda uma comunidade.

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