Contratransferência: uma breve reflexão

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Na década de 80, enquanto Sigmund Freud (1856-1939) cursava a faculdade de medicina e tendo a oportunidade de entrar em contato com Joseph Breuer (1842-1925) à respeito do caso de Anna O., considerado um dos eventos decisivos da história da psicanálise, acreditou ter detectado um apego de Anna em relação ao terapeuta Breuer que anteriormente era relacionada ao seu próprio pai. Mais tarde, Freud usou o termo de transferência para referir-se a esse apego ao terapeuta, o que, no processo analítico, é de fundamental importância.

A contratransferência foi um conceito que surgiu após as observações de transferência com resistência, aquelas em que o indivíduo evitava falar sobre determinados assuntos que evocavam o cerce de seus problemas levados à análise. Freud poucas vezes chegou a falar claramente neste conceito, mas os momentos que abordou deixaram claro a ambiguidade de sua opinião em relação à contratransferência.

Fonte: https://bit.ly/2wgDRDH

A contratransferência é, ao contrário da transferência, os sentimentos do terapeuta em relação ao paciente. Assim, ela pode ser manifestada por resistência inconsciente do analista advinda de seus próprios complexos infantis ou por conta de uma resposta à transferência do paciente. Neste último caso, faz-se necessária o manejo da resistência, que encontra duas dificuldades: o uso da transferência pelo paciente como resistência (que poderia ser solucionada com uma conduta diferente por parte do analista) e o inconsciente do analista provocando reações de transferência no paciente.

Existem as abordagens clássica e contemporânea para avaliar a contratransferência. A abordagem clássica, é compreendida como obstáculo e resistência inconsciente do analista para as associações livres e o andamento da análise. Surgiu com base na primeira publicação do termo em textos científicos, “As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica” (ZAMBELLI et al, 2013).  

Essa abordagem compromete o processo de associação livre do paciente e desviar todo investimento do tratamento para uma relação fantasiosa e sintomática com o analista. Pode surgir resistência no paciente ao recordar alguma situação aflitiva e fortemente recalcada, parte incógnita do psiquismo (ZAMBELLI et al, 2013). O contexto analítico pode provocar certos tipos de transferências  de conteúdos transferencial do analista no paciente de modo inconsciente, provocando reações também inconscientes no paciente.

É essencial o analista analisar, primeiro a si próprio, tomar consciência dos próprios movimentos inconscientes e processos transferenciais, pois podem influenciar o psiquismo do paciente. A abordagem contemporânea é observada como aliada ao processo terapêutico, ou seja, a contratransferência é percebida na sua totalidade de emoções e sentimentos que surgem no analista, permitindo assim, uma compreensão maior do paciente.O inconsciente do analista torna-se, então, parte da relação analítica por afetar e ser afetado pela situação transferencial (ZAMBELLI et al, 2013).

Fonte: https://bit.ly/2N7dcAv

Neutralidade do terapeuta

Freud (1915), aponta o fenômeno da transferência como uma advertência contra qualquer inclinação contratransferencial. O analista deve, portanto, perceber que os sentimentos do paciente são produtos da situação analitica e não dos atributos do terapeuta em questão, desse modo, não são motivos de orgulho. Para tanto, a experiência de se deixar levar pelos sentimentos relacionados ao paciente seria perigosa, uma vez que o controle sobre si nem sempre é tão completo. Logo, a neutralidade para com o paciente, adquirida ao manter controlada a contratransferência, não deve ser abandonada.

Assim, Freud (apud ZAMBELLI et al, 2013) aponta a análise pessoal como essencial para o controle da contratransferência, pois é trabalho do analista promover seu autoconhecimento para ter ciência desses sentimentos  contratransferenciais para lidar com eles de maneira adequada, mantendo a neutralidade.

Para Freud, “a técnica analítica exige do médico que ele negue à paciente que anseia por amor a satisfação que ela exige. O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência.” (1915, p. 103). Em vista disso, a postura neutra e a abstinência na relação analítica são indispensáveis para o processo de investigação do inconsciente, favorecendo o processo de atenção (FREUD,1912 apud ZAMBELLI et al, 2013). A neutralidade seria, portanto, uma “máscara” de defesa contra a carga emocional advinda da transferência do paciente, permitindo que o analista utilize seu próprio inconsciente para reconstruir o inconsciente do paciente, com liberdade e atenção na escuta (ZAMBELLI et al, 2013).

Para concluir, cabe pontuar alguns aspectos que envolvem a contratransferência na prática clínica, sendo o primeiro o fato da terapia psicanalítica ter ampliado seu alcance de análise resultou em novas perspectivas quanto à origem, reconhecimento e manejo da contratransferência, podendo está ser manifesta por meio de percepções físicas, somatossensoriais e emocionais (ZIMERMAN, 2008).

Fonte: https://bit.ly/2N7ywpJ

Durante uma análise, nem tudo que o terapeuta venha a sentir é resultado de uma contratransferência do paciente, podendo ser até mesmo um processo de transferência do analista. Existem algumas situações que podem ocasionar a contratransferência, sendo elas: em relação à pessoa do paciente, ao conteúdo verbalizado ou sentido pelo paciente ou mesmo a reação negativa do paciente em relação ao analista. Cabe pontuar que a medida que o analista ganha experiência, esse consegue converter o processo de contratransferência em empatia (ZIMERMAN, 2008)..

A contratransferência pode ser de natureza concordante – que pode ser considerada como sendo benéfica, pois possibilita um contato psicológico com o self do paciente – ou de natureza “complementar” – em cujo caso ela costuma ser prejudicial, pelo fato de que pode acarretar que o analista se contra-identifique com os objetos superegóicos que habitam o psiquismo do paciente e, por conseguinte, reforçar aos mesmos, assim impedindo que ele se liberte de suas identificações patogênicas (ZIMERMAN, 2008 p.152).

Por fim, a contratransferência pode gerar efeitos distintos no analista, podendo ela ser patológica ou mesmo o terapeuta se colocar na posição de culpabilizar o paciente pelos  sentimentos gerados pelo processo de análise ( em um processo de transferência do analista) ocasionando prejuízos ao processo de análise construído até o momento. Ou então, o analista, ao reconhecer o processo de contratransferência, pode adotar uma postura continente e torná-la em um processo empático (ZIMERMAN, 2008).

Novas perspectivas da Contratransferência

Reconsiderando o conceito de contratransferência, podemos citar dois autores, Ferenczi e Heimann. Ferenczi (1992c) pontua que há uma mudança na postura do analista ao considerar a importância dos cuidados com o paciente, pois a benevolência é um dos aspectos da compreensão que o analista oferece ao paciente e, portanto, a forma mais adequada para usar a contratransferência (ZAMBELLI et al, 2013). Ao adotar essa postura, o analista pode compreender de maneira mais ampla os traumas de seu paciente, e isso pode resultar em evitar traumas da infância do mesmo.

Ferenczi ressalta que, a contratransferência não precisa ser enxergada apenas como algo negativo, que precisa-se mascarar ou dominada. Dessa forma, a abertura mental do analista aos seus próprios sentimentos torna-se elemento essencial para a escuta e compreensão empática do paciente (Jacobs, 2002).

Para Heimann (1995), a contratransferência deixa de ser um problema, uma dificuldade técnica do analista. A autora trouxe novos questionamentos e reflexões com o intuito de quebrar determinados tabus de imparcialidade do analista em relação ao paciente durante as sessões. Antes, entendia-se que, o analista não deveria possuir nenhum tipo de sentimentos em relação ao paciente.

Entende-se então a partir dessa autora que, a relação analílica deixa de ser predominantemente unilateral e torna-se bilateral. Portanto, a individualidade do analista, seus sentimentos e sua contratransferência são aspectos participantes dessa relação (ZAMBELLI et al, 2013).

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bispo

Paciente 01662: a arte que transformou o manicômio e a visão sobre o louco

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“A doença passa a ser uma experiência de inovação positiva do ser vivo e não apenas um fato diminutivo ou multiplicativo. O conteúdo do estado patológico não pode ser deduzido – exceto pela diferença de formato – do conteúdo da saúde: a doença não é uma variação da dimensão da saúde; ela é uma nova dimensão da vida.”(Canguilhem, [1966] 1982: 149) – O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Bordados – Arthur Bispo do Rosário

A definição de normalidade é a do comportamento que se encaixa no padrão, no comum, no usual. O diferente e o exôtico costumam ser relagados ao campo da loucura. Apresentados sempre como oposições a normalidade e a locura são categorias que inventamos para dividir o comportamento humano. A tendência em dividir as pessoas em lugares normais e lugares loucos criou ao longo do tempo o estigma de que a loucura é a condição do exilado, do pária, do doente.

Entretanto, conceituar o louco como o diferente, o não-usual, o aproxima de outra figura: o artista. Dentro da percepção do artista, os temas da normalidade são revistos, refeitos e a linha divisória entre loucura e normalidade é apagada.  Fora de uma divisão excludente, a loucura e a arte tornam-se coisa única. Como na história de Arthur Bispo do Rosário, o paciente 01662.

Arthur Bispo do Rosário perambulou entre a realidade e o delírio, aos 29 anos acompanhado de um exercíto de anjos vagou pelas ruas do Rio de Janeiro de 1938. Era dezembro, dia 24, enquanto comemorava-se o nascimento de Cristo, ele vestia seu manto e fazia ao mundo sua “anunciação”, ele veio para representar o mundo.

Arthur Bispo do Rosário e sua obra

 

Levado ao Hospital dos Alienados, na Praia Vermelha, recebeu um diagnóstico e uma ficha: negro, sem documentos, indigente. De lá seguiu para a Colônia Juliano Moreira, onde viveria por 50 anos. Lá se tornaria o paciente 01662, O diagnóstico: esquizofrenia paranóide.

Nasceu em Sergipe, na cidade de Jarapatuba, Aos 16 anos, foi inscrito pelo pai na Escola de Aprendizes de Marinheiros de Sergipe e embarcou num navio como ajudante-geral. Ficou na instituição até 1933, viajando pelo País e colecionando advertências por comportamentos inadequados. Mas também se tornou um bom boxeador. Foi campeão sul-americano na categoria peso-leve.

Após ser expulso da coorporação, fez diversos bicos na cidade carioca, até se tornar lavador de bondes. Sofreu um acidente durante o trabalho e ao levar o caso à justiça conheceu o advogado Humberto Leone, ele se sensibilizou com o caso de Bispo e o empregou em sua própria casa como ajudante de serviços gerais. Bispo do Rosário morava em um quartinho na casa do advogado até o dia em que as vozes vieram.

Movido por essas vozes Bispo disse que era um enviado do Todo-Poderoso, responsável por julgar os vivos e os mortos. Ele tinha uma missão, “Vozes me dizem para me trancar em um quarto e começar a reconstruir o mundo”, dizia ele.

Foi o que fez durante o tempo em que passou internado. Na época o tratamento destinado aos pacientes psiquiátricos incluia choques elétricos, medicação sedativa muito forte e até mesmo lobotomia.  Trancado por um período de anos, ele produziu o que mais tarde viria a ser chamado de “Primeira experiência legitimamente brasileira da Pop Art”.

 

A Roda – Arthur Bispo do Rosário

Ele nunca havia ouvido falar de Andy Warhol ou ainda Marcel Duchamp, a quem comparariam sua obra, e negava o rótulo de artista, creditava tudo à sua missão. Arthur Bispo do Rosário produziu mais de 800 obras, incluindo a mais famosa o “Manto da Apresentação”. Eram colagens, estandartes, tapeçarias, pinturas e bordados, tudo produzido a partir de materiais descartados, trazidos pelos companheiros de manicômio ou recolhidos por ele mesmo.

Manto de Apresentação – Arthur Bispo do Rosário

 

Arthur Bispo do Rosário fazia arte do que a sociedade descartava, não só falando dos materiais que usava, mas sim da própria condição em que vivia e executava seu trabalho. “Os doentes mentais nunca pousam, ficam sempre a dois metros do chão” era o que falava sobre a própria condição e a de seus companheiros.

Para entrar em seu Ateliê,  o interessado deveria responder à pergunta “Que cor tem o meu semblante?”, quem não via cores em Bispo não poderia entrar. Ele reconstruiu o mundo em suas obras. Sua memória, sua estética e sua loucura ficaram estampadas nas peças que enfeitaram a Colônia Juliano Moreira.

Como o próprio Bispo dizia ele não era um artista, ele era alguém com uma missão. “Eu vou reconstruir o mundo e depois vou subir”.  Ele morreu em   5 de junho de 1989, se sentiu mal e foi atendido no setor médico. Estava muito magro pelos jejuns que fazia durante os longos períodos em que produzia. Morreria horas depois, vítima de enfarto, aos 80 anos.

Este ano a obra de Arthur Bispo do Rosário estará exposta na 30ª edição da Bienal Internacional de Artes em São Paulo.

21 Veleiros – Arthur Bispo do Rosário


 

Para saber mais sobre a vida de Arthur Bispo do Rosário:

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