Desnudando alguns mitos a respeito do uso da maconha

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Bem, desde criança, ouço falar da possível legalização da maconha no Brasil, e sempre que esse assunto aparece na mídia, há vários debates sobre os seus possíveis malefícios e benefícios. Muitos desses debates sustentam-se em questões de saúde pública, onde, acredita-se que a maconha traria vários males à saúde. Por outro lado, os que defendem a liberação da mesma também tentam se basear em questões de saúde pública, afirmando que drogas liberadas, tais como o álcool ou o cigarro, causam mais malefícios à saúde que a maconha. Esses argumentos, em sua maioria, sustentam-se em mitos acerca da maconha sem nenhuma base científica.

Eu tenho minha própria opinião sobre a legalização da maconha, mas antes de falar, tentarei explicar os principais mitos acerca dessa planta tão polêmica.

Primeiramente, o que é a maconha?

Maconha é nome popular da planta Cannabis Sativa. Não se sabe ao certo quando a humanidade começou a utilizar essa planta, mas há relatos de sua utilização como medicamento desde o século XV a.C.

No Brasil, acredita-se que a planta foi trazida pelos escravos africanos por volta do século XV d.C.. Por muito tempo a maconha foi utilizada como medicamento, sendo inclusive seu plantio incentivado pela coroa portuguesa no Brasil. A maconha só foi legalmente proibida no Brasil no ano de 1930, quando foi proibido o uso recreativo e medicamentoso da mesma. A partir desse ano, começaram a surgir os grandes mitos acerca dos possíveis males e benefícios que a planta poderia proporcionar, e até hoje esses mitos são difundidos pela mídia, e a população, leiga, aceita como verdade científica. Então vamos aos principais mitos e verdades científicas por traz da maconha.

 

A maconha é menos prejudicial que o cigarro aos pulmões?

Muitos acreditam que a maconha, por conter menos “química” que o cigarro, cause menos mal ao pulmão quando fumada. Eis um grande mito difundido pelos que defendem sua legalização.

Por não ter filtro a fumaça na maconha e totalmente absorvida pelos pulmões; isso leva a um dano respiratório muito maior. Já se sabe que 1 cigarro de maconha equivale de 2,5 a 5 cigarros em termo de obstrução respiratória. Porém, diferente do que se acredita, não há relatos de enfisema (uma doença pulmonar que dilata e rompe a passagem do ar nos pulmões, levando a problemas respiratórios) causado pela maconha.

 

A maconha pode levar a câncer de pulmão?

Argumento que os contrários à legalização da maconha adoram usar. Bem, se o medo de câncer de pulmão é real, porque permitir o cigarro, onde o risco é maior?  Não há evidencias suficientes para crer que a maconha pode levar ao câncer, porém podemos de fato especular que isso é possível, já que a fumaça do cigarro de maconha contém substâncias irritantes e cancerígenas assim como o cigarro.

O uso de maconha pode levar a um infarto?

Este é um mito com fundo de verdade. De fato, um dos efeitos do uso agudo da maconha é elevar o trabalho do coração, além de que a sua fumaça é rica em monóxido de carbono, o que piora os danos ao coração.

Porém, o risco de enfarta com uso de maconha não é tão alto. Se você não tiver nenhum tipo de doença cardiovascular, o risco é realmente baixo. Agora, se você tiver alguma doença como Angina Pectoris ou Doença Coronária, é melhor evitar o uso, pois a chance de você enfartar após o uso aumenta em até 4 vezes.

O uso de maconha pode causar dano hepático igual ao consumo de álcool?

Não sei afirmar quem teve essa ideia, já até usaram esse argumento contra mim. Fiquei sem entender como a maconha pode causar dano no fígado. Após muita pesquisa cheguei a uma conclusão: a maconha só pode causar dano ao fígado se você a ingerir junto com álcool, e tem que ser um volume elevado de álcool. Há varias pesquisas que mostram que a maconha não causa dano hepático nenhum.

A maconha destrói os neurônios e te deixa “burro”?

Outro grande mito usado por quem é contra a legalização. Várias pesquisas provam que o uso de maconha não causa qualquer tipo de dano de cerebral e nem afeta seu QI. Contudo, essas pesquisas foram realizadas em adultos. O uso da maconha durante a adolescência pode sim levar a um leve dano cerebral, mas nada muito significativo. Já sobre as funções cognitivas, pesquisas indicam que o uso crônico da maconha pode levar a um declínio dessas funções.

A maconha pode causar doenças psiquiátricas, tais como esquizofrenia, depressão, transtorno bipolar e ansiedade?

Eis uma questão polêmica, e de constantes discussões entre a comunidade científica. Vale lembrar que todas essas doenças são multifatoriais e que o simples uso da maconha não pode desencadeá-las.

Várias pesquisas indicam que o uso da maconha na adolescência é um fator de risco para o surgimento da esquizofrenia na fase adulta, além de acelerar o inicio da doença. Vale lembrar que um dos efeitos da intoxicação pela maconha e a alucinação, conhecido entre os usuários como “má viagem”.

Um dos efeitos agudos é do uso de maconha, é uma crise de ansiedade, que acomete principalmente os usuários recentes da droga. Mas há pesquisas que mostram que o uso crônico da maconha pode levar a um quadro de ansiedade e/ou síndrome do pânico.

Sobre a depressão e o transtorno bipolar, não há provas que indicam que a maconha induza a esses quadros. Talvez o mito tenha surgido justamente pelo fato de que pessoas diagnosticadas com essas doenças tendem a usar mais drogas, principalmente a maconha.

A maconha pode levar a overdose e a dependência?

A maconha pode matar sim, mas só se um caminhão carregado com ela cair em cima de você. Brincadeiras a partes, não há relato que o uso de maconha pode levar a um quadro de overdose. Porém, a dependência, apesar de ser rara se comparada a outras drogas, é um risco real.

Bem, esses são os principais mitos acerca da maconha, essa planta tão polêmica que causa tantas discussões.

Minha opinião sobre a legalização da maconha?

Sou contra o uso recreativo dela, pois já bastam o álcool e o tabaco para complicar a vida do sistema público de saúde e o trânsito (a maconha reduz o reflexo igual o álcool, o que pode levar a um aumento de acidentes). Contudo, renegar totalmente a planta é um erro, pois ela tem um potencial para o uso medicinal. Nesse caso, sou a favor da liberação do seu uso medicinal.

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Quando as bibliotecas desintoxicam a mente

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Confesse. Certamente, em alguma época, você já experimentou (ou viu amigos experimentarem) o quão tenebroso é ser levado às “masmorras” do castigo estudantil. Esse castigo tinha nome e sobrenome. Atendia por “biblioteca escolar”.

Antes de tudo, é importante discorrer rapidamente sobre o que é uma “biblioteca” e o que é uma Biblioteca. A primeira geralmente está vinculada a um armazém de livros velhos, empoeirados, esperando por um leitor aventureiro que tope o desafio de passar parte do seu dia neste local, seja pela necessidade de uma pesquisa-suicida ou por um “castigo”. É a “masmorra”. Não há vida, não há movimento, não há promoção da leitura. Eu mesmo já passei por uma dessas.

A Biblioteca é diferente. É alicerçada em princípios que visam ao bem-estar do leitor/usuário, oferecendo-lhe diferentes suportes informacionais, organizados, geridos e disseminados através de práticas biblioteconômicas por profissionais que atuam como gestores de informação. Todo o espaço físico e demais recursos são pensados e planejados, seja no âmbito infantil ou não. Pesquisadores locais e remotos podem acessar a informação desejada através de catálogos on-line ou Serviços de Referência e atendimento.

A Biblioteca pode ser vista sob essa ótica nos mais variados segmentos: nacional, pública, digital, escolar, volante, empresarial, especial, especializada, universitária etc.

Projeto de Biblioteca volante (Foto: divulgação)

Feitos os esclarecimentos, não há dúvidas: é possível apontar a Biblioteca como um dos diversos espaços que podem “desintoxicar” a mente. É a leitura como respiração do intelecto. Ficaremos com a segunda opção para embasar o presente raciocínio.

Outro fator a ser destacado é a ideia de que o próprio hábito de utilização das Bibliotecas à época, por exemplo, da vida acadêmica, pode ser motivado por uma experiência positiva durante a infância. A presença de livros em casa, a leitura compartilhada entre pais e filhos ou a visita a espaços de leitura infantis podem se revelar como aspectos positivos no desenvolvimento do leitor. Além disso, é na Biblioteca infantil ou escolar que o indivíduo terá seus primeiros contatos com as fontes de pesquisa, como dicionários, enciclopédias, atlas, globos, revistas, CD-ROMS, internet, jogos etc.

Leitura infantil: necessidade e incentivo (Foto: divulgação)

 

Muitas Bibliotecas apresentam programas de incentivo à leitura como círculos de contos, exibição de filmes, palestras, pequenos espetáculos, prêmios, etc. E os exemplos, em diversos Estados, são positivos.

Biblioteca infantil (Foto: divulgação)

É essencial que os esforços realizados em prol das atividades que promovam o desenvolvimento do indivíduo enquanto leitor sejam separados das catastróficas “masmorras” que intoxicam as ideias sobre o papel e a necessidade das bibliotecas. Os maus exemplos serão sempre péssimos rótulos. Vale a pena experimentar a atmosfera que envolve uma verdadeira Biblioteca. A experiência poderá gerar frutos a serem colhidos não apenas no presente, mas no futuro de leitores e usuários, nas mais diversificadas áreas do conhecimento.

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linguagem das emoções

A Linguagem das Emoções

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O que são emoções? Elas são universais ou variam entre culturas? Quais são os papéis das emoções? Podemos controlar o que sentimos? Podemos identificar as emoções dos outros, mesmo quando estão tentando camuflá-las? Essas e outras perguntas são respondidas pelo psicólogo Paul Ekman (2011) em seu livro A Linguagem das Emoções. Com a proposta de atingir um público amplo, seu trabalho alterna entre dados científicos e situações da vida diária. Ao longo do livro, o pesquisador traz ideias, novas e recicladas, que podem modificar a forma como leigos, clínicos e cientistas encaram o comportamento emocional.

Inicialmente, Ekman define as emoções como processos, produzidos pelas histórias da espécie e individual, que preparam o organismo para lidar com eventos importantes. Quando deflagradas, as emoções alteram a atividade do cérebro, do sistema nervoso autônomo e dos músculos. As expressões emocionais figuram como recursos úteis para a comunicação. Quando presenciamos — pela face, postura e voz — uma expressão emocional, temos um indício do que a pessoa emocionada pode fazer ou do que a fez sentir uma emoção. Mas podemos, como frequentemente acontece, estarmos redondamente enganados. Se o choro e o medo podem resultar da culpa pelo que fizemos, podem também ser fruto de uma acusação indefensável e injusta. Nem sempre sabemos o que motiva uma emoção, e Ekman alerta-nos sobre o perigo de cometermos o “erro de Otelo”.

Desdêmona, injustamente acusada de uma traição, temia pela morte. Otelo, cego pelo ciúme, interpretou seu temor como prova de sua culpa.

As respostas emocionais — de medo, raiva, aversão e entusiasmo, por exemplo — são rápidas e começam sem nossa consciência, e Ekman acredita que elas sejam implementadas pormecanismos automáticos de avaliação, ou autoavaliadores. Esses mecanismos rastreariam continuamente o mundo ao nosso redor, e nos permitiriam responder rapidamente em circunstâncias relevantes. Se um leão pular na nossa frente, não decidimos nos espantar; não pedimos ao cérebro que envie hormônios para a corrente sanguínea, que o coração acelere e que o sangue se concentre na musculatura dos membros inferiores. Se perdemos um ente querido, não podemos optar entre nos entristecer ou seguir a vida como se nada tivesse acontecido. A seleção natural forjou mecanismos que trabalham rápida e automaticamente, isto é, independentemente do que queremos ou decidimos. Se não fosse assim, nossos ancestrais caçadores-coletores não teriam sobrevivido.

Para abordar a questão dos aspectos filogenéticos das respostas emocionais, Ekman pesquisou o povo fore, que vive em aldeias esparsas em Papua-Nova Guiné. Os fore não têm (ou não tinham, em 1967) acesso a meios de comunicação como tevê e rádio, e foram raras as vezes em que uns poucos deles entraram em contato com pessoas de regiões urbanizadas. Utilizando histórias, vídeos e fotografias, ele verificou que seus voluntários identificam e expressamfacialmente a raiva, a satisfação, a aversão e a tristeza como o fazem estudantes universitários dos Estados Unidos. Embora surpresa e medo não tenham sido claramente distinguidos pelos fore, Ekman concluiu que algumas emoções são universais, mesmo que a cultura influencie o modo como as controlamos. Ao longo dos capítulos sobre tristeza e angústia, raiva, surpresa e medo, aversão e desprezo e emoções agradáveis, Ekman traz exercícios e fotografias faciais para nos ensinar a detectar os sinais emocionais típicos.

Tim Roth, do seriado Lie to Me, exibindo microexpressões típicas de algumas emoções tristeza (sadness), desprezo (contempt), surpresa (surprise), raiva (anger), aversão (disgust) e medo (fear).

Além dos aspectos topográficos das respostas emocionais, Ekman dedicou um bom espaço para discorrer sobre quando nos emocionamos. O termo gatilho é utilizado para dizer da situação que controla ou induz uma resposta emocional. Quando um rato se depara com um gato, a aparição do último é um gatilho para o medo. Se o gatilho para uma emoção não precisa passar por aprendizagem, trata-se de um tema emocional. A perda de um ente querido seria um tema para a tristeza, e a aparição de um gato seria, para um rato, um tema para o medo. A partir dos temas com que nascemos, ou do banco de dados emocional que herdamos dos nossos ancestrais, vamos gradualmente aprendendo a nos emocionar diante de novas situações. Quanto mais próxima uma situação estiver de um tema herdado, mais fácil seria a aprendizagem. Se, por exemplo, aprendemos a ficar atentos e a nos desviar facilmente de um carro que invade a pista em que trafegamos, isso deve ocorrer por termos nascido com a predisposição para nos assustar e nos esquivar de objetos que se aproximam rapidamente de nós. É mais fácil aprender a ter medo de animais do que de cogumelos e flores, e isso poderia ser explicado pela história da nossa espécie.

Contra os efeitos adversos dos comportamentos emocionais, Ekman propõe alguns exercícios e passos a ser seguidos. As emoções influenciam o que pensamos e fazemos, e isso pode, em inúmeros contextos, gerar graves problemas. Se ficamos com raiva fácil e frequentemente, e se essa raiva nos leva a dizer e a fazer coisas de que nos arrependemos depois, temos bons motivos para querer controlá-la. Para tanto, devemos saber em que situações nos sentimos raivosos, aprender a identificar os estágios iniciais dessa emoção e lembrar que, quando emocionados, podemos avaliar ou interpretar os eventos de forma equivocada. Com esse conhecimento em mãos, passamos prever o que sentiremos em certas ocasiões, a ser mais atenciosos acerca do que sentimos e a flexibilizar o que pensamos e fazemos. Se um gatilho emocional for difícil de ser modificado, Ekman sugere que procuremos a terapia comportamental e, como exercício complementar, a meditação.

Num dos últimos capítulos do livro, o pesquisador trata de um problema intrigante: como podemos saber se alguém está mentindo ou escondendo informações que nos interessam. A hesitação ao ser indagado sobre um assunto, a oscilação topográfica da voz, a duração e a assimetria das expressões faciais, a congruência do que se diz com o que se expressa facialmente e as microexpressões do rosto, dificilmente captadas por quem não é treinado no assunto, podem colocar em questão a veracidade do que está sendo dito. Mesmo com tantos sinais a serem observados, Ekman ressalta que a detecção de mentiras é um trabalho árduo e que não há uma fórmula mágica e fiel para identificarmos um mentiroso. Como dito anteriormente, um mesmo sinal pode ser gerado por diferentes situações e pode ter diferentes significados.

Paul Ekman lança mão de termos úteis para tratar do problema das emoções, como “gatilho”, “tema” e “autoavaliadores”, mas há momentos em que suas definições parecem se confundir ou são pouco claras. Sobre os autoavaliadores, o autor supõe que esses mecanismos automáticos atuam de forma ativa, buscando ou procurando por eventos que podem ter algum valor conforme um banco de dados emocionais. O mais provável de ocorrer, entretanto, é que esses mecanismos respondam a certas situações a que um indivíduo é exposto, e que o ato de avaliar compreenda ou envolva as emoções. Afinal, como um mecanismo pode “julgar” que uma situação é boa ou favorável à sobrevivência sem levar em conta um aspecto emocional? A literatura atual mostra que valoramos as situações a partir das emoções (por exemplo, Damásio, 2011); portanto, não haveria uma avaliação prévia e independente que, posteriormente, desencadearia emoções: estas parecem fazer parte de uma avaliação. No mais, Ekman poderia ter dedicado mais caracteres para falar dos processos envolvidos na aquisição dos gatilhos emocionais. O autor descreve de forma razoável a maneira como nos emocionamos, mas diz pouco sobre como aprendemos, ao longo da vida, a nos emocionar.

A Linguagem das Emoções é um livro que pode, de inúmeras maneiras, ser útil para o grande público — de clínicos e leigos a agentes secretos. Paul Ekman consegue, com clareza e estilo, lançar luz sobre um dos temas mais elementares do campo das ciências humanas. O referido livro é indispensável para os teóricos das emoções e, ao mesmo tempo, para quem quer aprimorar suas habilidades de identificação e controle emocionais.

Nota: originalmente publicado em: http://danielgontijo.blogspot.com.br/2012/01/linguagem-das-emocoes-uma-resenha.html#more

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Maloca de pedra, maloca de palha: o “ponto de vista nativo” e a noção de cultura no mundo em transformação

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Cada vez mais vem sendo propostas pesquisas no campo da saúde com o propósito de investigar interfaces entre o processo saúde-doença-cuidado e a cultura. Ao buscar o estabelecimento de um diálogo com as ciências sociais, pesquisadores do campo da saúde, vêm propondo pesquisas que buscam investigar os “pontos de vista nativos” (em geral dos pacientes, mas também de profissionais) a respeito de diferentes questões. Inegavelmente as intenções são boas, sobretudo se pensarmos no extremo reducionismo que é abordar a complexidade dos temas deste campo, apenas a partir da ótica biomédica. Por outro lado, para enfrentar o reducionismo não basta apenas a eleição de novos objetos de interesse. Faz-se necessário também um refinamento teórico para abordá-los. Na ausência deste refinamento, o reducionismo permanece, embora envolto por um verniz culturalista.

A proposta deste texto é tecer breves comentários sobre este tal “ponto de vista nativo” e sobre a noção de cultura, visando estimular o leitor a se aprofundar no assunto. As reflexões aqui apresentadas foram gestadas durante o processo teórico-prático de construção de minha tese de doutorado, que teve como foco a questão da violência juvenil em um determinado contexto indígena amazônico, marcado por profundas transformações.

Um importante ponto de partida é termos a clareza que o que de fato podemos tentar fazer é chegar “o mais perto possível do ponto de vista nativo” (Lasmar, 2005, p. 40). Ou seja, acessar o “ponto de vista nativo” deve ser considerado, antes de mais nada, um princípio a ser perseguido, do que algo que possa ser concretamente alcançado. Sobre esta questão Viveiros de Castro (2002a) alerta: “o meu ponto de vista não pode ser o ponto de vista do nativo, mas o de minha relação com o ponto de vista nativo. O que envolve certa dose de ficção, pois se trata de pôr em ressonância interna dois pontos de vista completamente heterogêneos” (p. 123). Ou seja, aquilo que se entende como “ponto de vista nativo” não é algo dado, que exista por si mesmo na realidade empírica. Trata-se essencialmente de algo a ser construído. E esta construção vai se dando no próprio processo de tornar compreensíveis os achados da pesquisa. Isso vai sendo realizado mediante a tradução, ou melhor, através da elaboração de uma versão daquilo que ao estabelecer relações, teoricamente orientadas, com o sujeito/objeto de investigação, consigo compreender. Ainda, buscar o “ponto de vista nativo”, não deve ser confundido com o elencar, de forma acrítica, de diversas opiniões das pessoas a respeito de algo. Aliás, textos que listam opiniões e citam longamente a fala das pessoas in natura, ou seja, sem a devida análise, abundam no contexto das chamadas “pesquisas qualitativas” em saúde. De modo alternativo o que deveríamos buscar seria construir uma compreensão possível (e plausível) a respeito de como discursos e práticas se ancoram no universo simbólico nativo que dá sentido ao mundo destes sujeitos. Mundo este que está em constante transformação.

Diversos autores que realizaram pesquisa entre indígenas abordando temas controversos como casamento de mulheres indígenas com homens brancos (Lasmar, 2005), suicídio (Erthal, 2001), ou o processo de “virar branco” (Kelly, 2005, p. 202), concordam que haveria uma tendência “hipersimplificadora” não só do discurso do senso comum dos profissionais de saúde, mas também por parte de certos autores oriundos deste campo a buscar compreender estas questões relacionando-as a idéia de “perda cultural”. Para os propósitos deste texto, destaco que nesta concepção há implícita a idéia que cultura seria algo que se pode perder. Ou seja, há uma ancoramento em uma noção de cultura que a entende como um conjunto de traços, comportamentos ou instituições próprios, fixos e imutáveis que caracterizam determinado grupo. Uma razão para rejeitarmos esta concepção de cultura é o seu anacronismo e sua associação a idéia de “aculturação”, que foi ativamente recrutada para negar não só os direitos, mas até mesmo a existência de certos grupos indígenas. Outro aspecto é que esta noção, definitivamente não tem utilidade teórica para ajudar a compreender o universo simbólico humano (e aqui falo, sobretudo, deste humano-social) que está em constante transformação.

Exemplifico este ponto de vista a partir de uma situação de interação social que vivi em campo. Durante minha primeira ida a campo no doutorado, estava ocorrendo uma grande reunião relacionada às comemorações dos vinte anos de fundação de uma importante organização indígena regional. As discussões ocorriam numa grande maloca, que na atualidade não é mais utilizada como casa comunal, mas onde funcionava o chamado “CERCII”, Centro de Estudos e Revitalização da Cultura Indígena de Iauaretê. As malocas que foram derrubadas sob influência dos missionários católicos vêm sendo reerguidas como símbolo de luta do movimento indígena em diferentes locais. Neste contexto, a maloca do CERCII foi construída através de financiamento de organizações não governamentais estrangeiras. Um idoso responsável pelo CERCII, e considerado grande conhecedor dos mitos e dos procedimentos xamânicos de cura, comentou em tom que mesclava ironia e indignação que não compreendia porque os financiadores se recusavam a permitir que usassem pregos, fechaduras e outros artifícios modernos/ocidentais na construção da maloca. Relatou que os “gringos” diziam que não seriam estes os materiais que os “antigos” usavam. Com um leve sorriso nos lábios relembrou que nos mitos de origem, antes mesmo do aparecimento do mundo, a maloca dos heróis primordiais precursores da humanidade era de pedra quartzo, e que maloca de palha e madeira era uma coisa já “dos tempos modernos”.

Em síntese, o interlocutor ao lançar mão dos mitos de origem defende sua maloca transformada, recorrendo ao que aqui entendemos, a partir de Sahlins (1999a, p. 41), como CULTURA, que seria “essa ordenação (e desordenação) do mundo em termos simbólicos”. Abordando a realidade a partir deste prisma, a maloca proposta pelo idoso do CERCII não é uma maloca “aculturada”, mas uma maloca transformada. Não se trata de uma evidência de perda de cultura, mas sim da vivacidade da mesma. Afinal, Sahlins (1999 a, b) entendendo a transformação como parte inerente do mundo vivido, não a representa como epitáfio da cultura, inversamente, concebe-a como condição de possibilidade para sua própria permanência: “a continuidade das culturas indígenas consiste nos modos específicos pelos quais elas se transformam” (Sahlins, 1999b, p. 126). Essa transformação, por sua vez, “é necessariamente adaptada ao esquema cultural existente” (Sahlins, 1999a, p. 62), ou seja, dá-se a partir de instituições, estruturas ou lógicas próprias de cada grupo.

Assim, pesquisadores do campo da saúde que buscam abordar o “ponto de vista nativo” (ou seja, o ponto de vista deste outro, que sempre terá algo de “eu”) ou a cultura de um grupo, deveriam estar a princípio dispostos a se relacionar de modo teoricamente consistente com este outro-eu, condição importante para que possam atentar para a lógica interna e para a compressibilidade destes sistemas simbólicos. Sistemas simbólicos estes que estão em constante transformação. Não só os deles, mas também os nossos. Seja lá quem sejamos nós, seja lá quem sejam eles.

Referências

Erthal RMC. O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos. Cad Saúde pública 2001, 17(2): 299-311.

Kelly JA. Notas para uma teoria sobre o ‘virar branco’. Mana 2005;11(1):201-234.

Lasmar C. De volta ao Lago de Leite: Gênero e Transformação no Alto Rio Negro. São Paulo: Editora UNESP/ISA; Rio de Janeiro: NUTI; 2006.

Sahlins M. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um objeto em via de extinção (Parte I). Mana 1997a; 3(1):41-73.

Sahlins M. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um objeto em via de extinção (Parte II). Mana 1997b; 3(2):103 a 150.

Viveiros de Castro E. O problema da afinidade na Amazônia. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify; 2002a. p. 87-180.

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Pesquisa científica ou critério de competitividade?

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Ciência, Tecnologia e Inovação. Essas são as palavras da moda, utilizadas em qualquer tempo e espaço. Sinônimos de desenvolvimento e industrialização no meio empresarial, no meio acadêmico esse conceitos muitas vezes se restringem a critérios de competitividade. A força científica do nosso país é bastante expressiva e têm gerado excelentes resultados, frutos do esforço de renomados pesquisadores. No entanto, existe o efeito negativo herdado do capitalismo, que é a produção em alta escala de artigos elaborados simplesmente para garantir um espaço no mercado.

A utilização da tecnologia para garantir eficiência na produção e destaque frente a concorrência, não é um privilégio apenas da indústria, mas também das universidades e institutos de pesquisas, e tem ganhado força significativa nos últimos anos. Muitos encontraram nas plataformas digitais uma alternativa para dominar os desafios impostos pelas instituições e atingir a tão almejada meta quantitativa. O desespero e a preocupação com os números deixaram de ser exclusividade da matemática para serem os motivos da inquietação e angústia de alguns cientistas.

O reflexo desse novo cenário nem sempre é favorável ao desenvolvimento científico e tecnológico de um território. Se por um lado a pesquisa científica, responsável pela socialização do conhecimento e aprendizado, torna-se cada vez mais limitada dentro das universidades, por outro, se transforma em estratégia para as novas instituições de ensino que atuam num mercado extremamente competitivo.

A ciência sempre foi a base no processo de inovação das instituições, mas hoje, além de ser a reponsável por criar valores, é também o ponto chave na avaliação entre instituições de ensino. Deixou de ser reconhecida como recurso essencial para o aumento da eficiência e geração de conhecimento tanto em empresas como universidades, para ser vista como um dado quantitativo para o mercado e os chamados órgaõs reguladores da educação no país.

Nesse contexto o meio acadêmico é transformado por uma revolução, não a do conhecimento, poque esta já aconteceu. O nome mais adequado seria “Revolução dos Papers” que induz um aumento significativo nas produções científicas, gerando um efeito negativo em relação à qualidade do que está sendo produzido, ou melhor, reproduzido. Transita nesse cenário professores e acadêmicos angustiados, frustrados, cansados, doentes.

Seria este o caminho? Publicar por publicar, apenas para manter o emprego, disputar o melhor currículo lattes, ter a insituição uma boa avaliação para continuar suas atividades? A concorrência é acirrada e as exigências aumentam ainda mais! Mas em meio a essa turbulência acadêmica e capitalista, onde está a essência do conhecimento?

Se os professores continuarem a estimular os alunos a publicar em qualquer revista simplesmente para contar pontos, chegar à um momento em que a  tal “ciência” estará estampada nos outdoors. E em consequência, perderá sua razão principal de ser, que é promover o avanço da humanidade e os resultados gerados a partir das vocações dos pesquisadores em benefício da sociedade.

A pesquisa deve ser estimulada, a fim de desenvolver competências essenciais capazes de criar e sustentar uma posição de destaque frente aos concorrentes, já que estamos falando de um mercado acirrado. E se os resultados da ciência transbordam os limites da universidade, gerando benefícios para a sociedade, é natural que a pesquisa seja publicada em revistas renomadas e conceituadas a fim de ser disseminada em outras localidades. Eis a diferença entre qualidade e quantidade.

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