‘No portal da eternidade’ foge do caricato e acerta na humanidade de Van Gogh

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Concorre com 1 indicação ao OSCAR:

Melhor ator

Sempre focado no seu objetivo de pintar para assim conseguir mostrar
aos outros o seu modo de ver o mundo, Vincent vivia de modo obsessivo

Quando vemos alguma obra que retrate a vida do genial pintor holandês, quase sempre nos deparamos com uma visão de que ele era um homem tão problemático, que chegava ao ponto de quase não ser humano. Em ‘No portal da eternidade’ o diretor e co-roterista Julian Schnabel, sabiamente, foge dessa narrativa caricata que segue Vincent Van Gogh (Willem Dafoe) e representa o pintor de uma forma extremamente humana.

No filme, que tem seu início já nos últimos anos de vida do biografado, Vincent vive só de suas pinturas, porém não por ser um artista de sucesso, mas sim porque seu irmão Theo Van Gogh (Rupert Friend), um negociante de arte, sustenta o artista para que ele possa seguir seu sonho. Nesse caso a melhor afirmação a se fazer é a de que Vincent não vivia de suas pinturas e sim vivia para elas.

fonte: https://bit.ly/2BLhIBg

Sem conseguir alinhar suas ideias com a dos artistas e também do público de Paris, após conversa com o também pintor e amigo Paul Gauguin (Oscar Isaac), Van Gogh ruma ao sul da França, onde procuraria tranquilidade e inspiração para elevar a qualidade de suas pinturas. O que de fato encontrou, porém o seu modo excêntrico de viver fez com que o mesmo fosse odiado por grande parte da população das cidades em que viveu.

Sempre focado no seu objetivo de pintar para assim conseguir mostrar aos outros o seu modo de ver o mundo, Vincent vivia de modo obsessivo, concluindo diversas obras em poucos dias. No entanto essa obsessão fazia com que o mesmo se desligasse de outros aspectos de sua vida, como retratado; em certa época o mesmo passava semanas sem ao menos tomar um banho, era muitas vezes agressivo e sofria com lapsos de memória.

Para tentar fazer com que Vincent se comportasse melhor, seu irmão Theo resolve então fazer um acordo para que Paul Gauguin vivesse um tempo no sul da França junto com Vincent. O que foi muito bom enquanto durou, porém em pouco tempo Gauguin passa a fazer sucesso e tem que se mudar para Paris.

fonte: https://bit.ly/2Siv4dA

O que leva ao momento mais caricato e possivelmente mais memorável da vida de Van Gogh ao qual nem mesmo o diretor Julian Schnabel consegue deixar de retratar, após brigar com Gauguin, o pintor holandês corta uma de suas orelhas e entrega a uma moça a pedido de que esta encontrasse seu amigo e entregasse a mesma para ele, como um pedido de desculpas.

Após o ocorrido, Van Gogh é internado em um asilo, onde ao conversar com um padre (Mads Mikkelsen) antes de sua liberação, chega a conclusão de que suas pinturas não são para as pessoas de seu tempo. Se muda para a cidade de Auvers-sur-Oise onde ao pintar o retrato de um amigo chega a outra conclusão: sua pintura não tinha mais o objetivo de mostrar aos outros como ele enxergava o mundo e sim o de marcá-lo para a eternidade.

Em Auvers-sur-Oise Van Gogh viveu por 80 dias antes de ser baleado e por conta do ferimento vir a falecer 30 horas depois. Durante os 80 dias nessa nova cidade, o artista pintou 75 quadros, que junto as suas outras aproximadamente duas mil obras, definitivamente o marcou para a eternidade.

fonte: https://cbsn.ws/2D1Ec1T

Fora uma nova visão da história de Van Gogh, o filme ainda conta com uma fotografia que muitas vezes utiliza uma paleta de cores semelhante a utilizada por Van Gogh, o que gera muitas imagens bonitas. Outra curiosidade da fotografia, é como muitas vezes a câmera nos coloca na perspectiva da personagem principal, o que humaniza a visão dos acontecimentos e gera maior aproximação de quem assiste a obra.

FICHA TÉCNICA:

fonte: https://imdb.to/2G8Dode

NO PORTAL DA ETERNIDADE

Título original: At Eternity’s Gate
Direção: Julian Schnabel
Elenco: Willem Dafoe, Rupert Friend, Oscar Isaac, Mads Mikkelsen;
Ano: 2018
Países: Estados Unidos da America, França
Gênero: Drama, Biografia

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A mulher e a arte em Nise – O Coração da Loucura

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Nise da Silveira é um nome forte quando o assunto é revolução. Mais especificamente revolução no modelo tradicional de psiquiatria e tratamento da loucura. De forma merecida, essa mulher espetacular recebeu uma homenagem em forma de filme. Nise: O Coração da Loucura é uma produção brasileira, lançada em 2016, que conta a trajetória da transformação provocada por essa psiquiatra alagoana (1905-1999), cuja é representada pela atriz Gloria Pires.

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O filme inicia com a volta de Nise para o hospital psiquiátrico Engenho de Dentro. Nesse momento, ela presencia uma cena marcante e, infelizmente, comum nos centros psiquiátricos entre os anos de 1936 e 1956. Se trata da lobotomia e da eletroconvulsoterapia. De acordo com Masiero (2003):

A lobotomia e leucotomia foram utilizadas em pacientes de instituições asilares brasileiras, entre 1936 e 1956. Também chamadas de psicocirurgias, eram intervenções que consistiam em desligar os lobos frontais direito e esquerdo de todo o encéfalo, visando modificar comportamentos ou curar doenças mentais. A técnica, idealizada pelo neurologista português Egas Moniz em 1935 e aperfeiçoada pelo americano Walter Freeman, chegou ao Brasil por intermédio de Aloysio Mattos Pimenta, neurocirurgião do Hospital Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo, logo seguido por outros médicos. Esta medida foi aplicada em mais de mil pacientes internados não só para fins curativos, mas também para aprimorar tecnicamente a cirurgia, uma vez que os experimentos preliminares com animais eram escassos. No Brasil, a técnica foi adotada até 1956, passando a ferir o Código de Nuremberg, de 1947, concebido para regulamentar e conter os abusos da experimentação médica em seres humanos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial.

E é justamente esse tratamento abusivo, experimental e desumano que Nise se recusou a aplicar. Como a ciência considerada em evolução na época se dava por meio dessas técnicas, a psiquiatra foi colocada no setor abandonado de terapia ocupacional. E, mesmo com muitas dificuldades, como a não aceitação de seus métodos e até certo preconceito por ser mulher (visto em vários momentos do filme, mas, principalmente, em um trecho em que um de seus colegas fala que é difícil trabalhar com mulheres), deu início a uma revolução magnânima.

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Com toda a delicadeza e cuidado femininos, Nise torna esse setor mais agradável e acolhedor, ensinando que no local não há pacientes, mas clientes, pois ela e seus colegas estão ali a serviço deles e que a melhor forma de intervenção é tratando-os como humanos. A força, a coragem, a resistência e a persistência de Nise também são marcantes, mostrando esse aspecto que caracteriza a mulher em geral.

Contando com a ajuda do artista plástico Almir Mavignier, Nise implanta a arte-terapia no tratamento de doenças mentais. Indivíduos que antes eram tratados como farrapos, passaram a serem vistos como artistas. Interessada na trajetória das pinturas de cada cliente, Nise enxerga nelas um pouco da psicologia analítica, pois, muitas lembravam mandalas ou traziam formas circulares.

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Segundo Carl Gustav Jung (1875, apud Romano, 2015):

[…] ao fazermos uma mandala ocorre uma descarga de tensão e é comum surgir imagens espontâneas internas enviadas pelo inconsciente. Quando criamos uma mandala estamos produzindo nosso próprio espaço sagrado. A circunferência é um campo delimitado que remete à proteção, e o centro nos leva a olharmos para nós mesmos, saindo do externo, de tudo que nos tira do contato com nosso EU.

O que Jung fala fica bem claro nas obras produzidas pelos clientes de Nise. No início, as pinturas eram abstratas, sem formas. Depois, conforme o tratamento da arte-terapia ia evoluindo, as pinturas também foram ganhando formas e vida, mostrando que esses indivíduos de fato expressavam o seu mundo interno, ora bagunçado e assustado, ora organizado e tranquilo. Essas obras estão expostas hoje no Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro.

Fonte: http://migre.me/wbMs4
Fonte: http://migre.me/wbMs4

Nise da Silveira deu voz à loucura. Diferente de todos os envolvidos naquele lugar hostil, ela não tinha medo dos indivíduos que estavam sob os seus cuidados. Ela permitiu que eles se expressassem e, o mais importante, fossem tratados com dignidade e humanidade. Seu nome marca uma revolução e a história na psiquiatria brasileira, além da implantação da arte-terapia como tratamento para as doenças mentais e da abordagem junguiana no país. Mas, além de tudo, ela marca uma história de mulheres que fizeram a diferença, não se conformando com o que havia de errado em seu meio e lutando para conseguir melhorias e transformação.

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“Meu medo é não saber morrer como um gato, embora a morte propriamente não me faça medo. É não saber como morrer como os gatos sabem. É isso que peço que eles me ensinem. Um gato, quando não quer saber de uma pessoa, levanta a cauda e sai. Não parece que esteja com emoção de raiva como eu fico às vezes. Desprezo. Sutileza completa. Eles são grandes mestres.” – Trecho de entrevista com Nise da Silveira.

REFERÊNCIAS:

SANTOS, L. G. P.   Nise da Silveira – Entrevista. Scielo Brasil, Psicol. cienc. prof. vol.14 no.1-3 Brasília 1994. Disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98931994000100005.Acesso em 04 mar 2017.

VELOSO, A. M. A.  Quem foi Nise da Silveira, a mulher que revolucionou o tratamento da loucura no Brasil.  HuffPost Brasil, 27/01/2017. Disponível em: http://www.huffpostbrasil.com/2016/04/19/quem-foi-nise-da-silveira_n_9671732.html Acesso em: 04 mar 2017.

MASIERO, A. L. A lobotomia e a leucotomia nos manicômios brasileiros. Scielo Brasil, Hist. cienc. saúde-Manguinhos vol.10 no.2 Rio de Janeiro May/Aug. 2003. Disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702003000200004.Acesso em: 04 mar 2017.

ROMANO, C. T. Mandalas: a expressão do inconsciente. Clínica de Psicologia Relacional. Disponível em: http://terapiarelacional.com.br/mandalas-a-expressao-do-inconsciente. Acesso em: 04 mar 2017.

FICHA TÉCNICA DO FILME: 

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NISE – O CORAÇÃO DA LOUCURA

Diretor: Roberto Berliner
Elenco: Glória Pires, Fabrício Boliveira, Roberta Rodrigues, Augusto Madeira
País: Brasil
Ano: 2015
Classificação: 12

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Negociando com a loucura por meio da arte

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O artista tocantinense Sérgio Lobo conta que, desde a infância, gostava de pintar e desenhar. Por motivos pessoais, a vida o levou por outros caminhos: formou-se em Licenciatura Plena em Letras – Português e se pós-graduou em Língua Portuguesa e Literatura. Tornou-se professor. Dores físicas, depressão e ansiedade o ausentaram da profissão. Então, ele começou a negociar com a loucura.

(Obras do artista visual Sérgio Lobo)

“Espírito inquieto e criador”. Assim que Vone Petson, curador da última exposição do artista, o define. O (En)Cena entrevistou o artista visual e indagou sobre o processo de novas escolhas durante um período da vida e como isso se deu.

(En)Cena –  Em 2012, você escreveu um Ensaio para o (En)Cena contando um pouco de sua situação de depressão e ansiedade. Lá, você conta que não leciona mais. Por que você parou de ministrar aula? O que te fez tomar essa decisão?

Sérgio Lobo – Parei de lecionar por determinação médica. Depois de fortes dores na coluna tive que me ausentar do ofício de ser professor, fiquei muito tempo em casa me recuperando, fazendo fisioterapia e acompanhamento médico, quando tive que retornar para sala de aula, tudo voltou, tive uma ojeriza só pelo fato de pensar em voltar. Então, tive crises de ansiedade e depressão, tive que ficar de licença médica outra vez. Até então, eu achava que daria conta de superar sozinho a “barra”, mas não aguentei. Procurei ajuda especializada e tive a graça de conhecer o psiquiatra Dr. Wordney Camarço e passei a fazer terapia com o psicólogo Dr. Daniel Marques. O médico solicitou um remanejo de função a Junta Médica Oficial do Estado, o que geralmente demora muito, enquanto eles não deferiram o pedido eu ficava em casa. O que não ajudava muito na minha recuperação, porque me sentia um inválido. A minha esposa trabalhando, a vida passando e eu querendo ser “aproveitado” em outra função que não fosse sala de aula, porque achava que ainda era capaz de fazer alguma coisa útil. Até que fui remanejado de função.

(En)Cena – Como você descobriu a pintura na sua vida? Como foi o processo inicial de buscar essa forma de arte para reabilitação?

Sérgio Lobo – Desde criança gostava de desenhar, na adolescência fiz alguns cursos de desenho e fui aluno ouvinte de um Mestre Holandês no curso de Arquitetura e Urbanismo na UFPA, na disciplina Plástica I. Sempre fazia desenhos e amizades com outros desenhistas… em Brasília onde morei e depois em Belém, conheci pintores já famosos e desenhistas. A minha vontade era fazer um curso superior na área, mas as constantes mudanças de cidades fizeram com que eu me afastasse do meu objetivo. Em Palmas, conheci amigos que trabalhavam na área. Então, participei de curso de escultura com a profª. Sandra Oliveira, cursos de desenho e pintura, cursos de História da Arte todos no Espaço Cultural. A pintura começou aqui em Palmas. Depois fiz curso desenho e pintura na falecida Galeria Magenta, com o Prof. Antonio Netto. Em 2011 com o meu problema e como não tinha nada a perder, resolvi desenhar e pintar. Posteriormente entrei na AVISTO (Associação dos Artistas Visuais do Tocantins) e passei a conhecer mais de perto os artistas, os seus problemas e anseios.

(Autorretrato de Sérgio Lobo)

(En)Cena – Como a arte em pintura te auxiliou a ver uma nova fase na vida?

Sérgio Lobo – Sempre tive vontade de trabalhar com artes visuais, mas as circunstâncias, o local e os acontecimentos em minha vida, fizeram com que eu desviasse… Fiz uma graduação e pós-graduação em outra área, me tornei servidor público, professor… casei, separei, casei, separei, tive filhos, bater ponto, ou seja, a velha “corrida de ratos”. E de tanto fazer o que não gostava, resolvi como terapia fazer cursos de pintura e tentar recuperar o tempo perdido… Isso foi um alento e um motivo pra permanecer na estrada e negociando a loucura. O próprio fato de fazer artes visuais no Tocantins já é uma loucura! Apesar de termos bons artistas visuais (desenho, pintura, escultura, fotografia…), não há incentivo governamental. A Galeria Mauro Cunha foi fechada em 2011 e nunca reabriram, o Tocantins é um dos únicos estado da federação que não tem uma galeria oficial. Faz 2 anos que o Estado do Tocantins não lança os Editais de Incentivo à Cultura, há uma política cultural ineficiente, além do fato de estarmos distantes dos centros culturais do Brasil. Mas, o desejo,  a persistência e o prazer no fazer artístico, no momento da criação é algo divino. Isso é o que nos move.

(En)Cena – E por que você escolheu a pintura abstrata? Ela te representa melhor?

Sergio Lobo – Eu gosto do desenho, pinturas figurativas, mas gosto também das pinturas abstratas. Geralmente, o artista que faz arte figurativa, não gosta de pintura abstrata e vice-versa. No meu caso, gosto de pintores abstratos (Pollock, Mabe, Antonio Bandeira, Marcos Dutra, Mahau…) e pintores figurativos (Miró, Françoise Nielly, Patrice Murciano, Voka, Marina Boaventura, Solange Alves, Costa Andrade…). Foi a proposta do Curador Vone Petson Coordernador de Artes plásticas do SESC que fosse uma exposição toda abstrata.

(En)Cena – A exposição Desvelar a Cor, que está em apresentação no SESC de Palmas, se baseou em alguma inspiração específica?

Sérgio Lobo – Não, mas na proposta do curador Vone Petson, que queria uma exposição só com telas abstratas. A proposta era desvelar, descobrir e experimentar cores e técnicas variadas até “acertar”.  É o que venho tentando fazer…

(Exposição Desvelar a Cor, de Sérgio Lobo que esteve até 19 de novembro  no hall do Centro de Atividades do SESC)

(En)Cena – Você recomenda a arteterapia, em especial a pintura, para reabilitação e tratamentos? Funciona?

Sérgio Lobo – Não cheguei a fazer arteterapia. Uso a arte como escape terapêutico. Tenho uma professora de desenho, a Norma Brügger que é Pós-graduação em Arte terapia pela UFG e conversamos sobre o assunto. Mas, sei e acredito no poder da arte para reabilitar e como tratamento. Recentemente li a biografia do Arthur Bispo do Rosário (Luciana Hidalgo) e como a arte foi fundamental em sua vida. Assim, como no final da vida do pintor Van Gogh, no hospício ele foi incentivado pelo seu psiquiatra a continuar pintando, alguns biógrafos dizem que foi um tratamento de “arte terapia” da época. Drª. Nise da Silveira incentivou os pacientes do Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro no RJ a expressarem através das artes as suas emoções… E surgiram belas obras de arte e podem ser vistas no Museu de Imagens do Inconsciente. Eu considero o desenho e a pintura uma meditação em movimento. É um autoconhecimento. Funciona.

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As Cores da Utopia: da arte à loucura

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“E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.”
Friedrich Nietzsche

Arte: Reginaldo Bonfim

“As Cores da Utopia”, é o titulo do documentário produzido e dirigido por Júlio Nascimento em 2011, narra a história do artista plástico baiano Reginaldo Bonfim – O Louco.

Reginaldo Bonfim (Salvador, 1950 – 2007) pintava desde os cinco anos de idade e seu trabalho sempre chamou a atenção de todos. Chegou a fazer o Curso Livre da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), mas não se limitou à técnica. Destacava-se pela habilidade de pintar com o que tivesse à mão. Era capaz de variar entre todas as escolas, dominando com excelência as mais variadas técnicas e estilos, com um jeito único de brincar com as cores.

Seu destaque e notoriedade na cidade de Salvador – BA, rendeu-lhe a oportunidade de apresentar seu trabalho em um programa de TV, no Rio de Janeiro. Nesse período teve uma crise. Reginaldo Bonfim foi então diagnosticado com esquizofrenia, passou a ser alvo que fortes críticas e resistência da sociedade, principalmente em Salvador, sua cidade natal. Seu comportamento de falar sozinho enquanto pintava era tido como “excêntrico”.

O documentário traz o retrato de um Reginaldo que possuía um traçado livre, e uma liberdade Ímpar na sua pintura. Suas telas são um retrato fiel da história do Brasil, em especial sobre a questão social e a condição do negro. Engana-se quem se deixa levar pela esquizofrenia de Reginaldo Bonfim, mas é bom que se deixe, afinal é preciso ser louco para aventurar-se a pintar um Brasil com essas formas e cores.

Um fato interessante abordado no documentário, é que os clientes de Reginaldo se aproveitavam de seus momentos de delírio para pagar valores mínimos por seus quadros, beneficiando-se da sua insanidade. Comportamento que me fazem indagar quem é o normal? O que caracteriza uma pessoa como louca?

A imparcialidade do Brasil no enfrentamento à questão do sofrimento mental não é novidade. É preciso frisar que a questão não era uma peculiaridade do nosso país, pois a falta de políticas nessa área foi por séculos uma demanda de proporção global, mas, como no resto do mundo, a sociedade brasileira sempre omitiu seu papel de responsabilidade, e preferiu ignorar a situação do louco a enfrentá-la. As políticas nacionais de Saúde Mental são muito recentes. Os primeiros mecanismos eficientes e que proíbem a instauração de manicômios no Brasil datam de 2001.

E não há como negar, e nem a quem culpar. A sociedade só repetiu com Reginaldo o que já vinha fazendo há muito tempo com o sofrimento mental, rotulando-o de louco, asilando-o e o entupindo de medicamentos, de forma frenética e descontrolada.

Reginaldo Bonfim foi apenas mais um, de muitos, que sofreram as consequências de viver em uma sociedade pouco preparada para lidar com o sofrimento mental, e que, até certo momento da história, não se engajou e/ou não viu necessidade de se engajar nesse processo. O homem que hoje é relembrado como: gênio talentoso; crítico social; e artista referência foi, na verdade, ridicularizado e rotulado de “esquisito” por muitos. Pois só bastou o diagnóstico de um comportamento esquizofrênico para que o Artista sumisse, dando lugar ao Louco. E este persistiu e persiste até hoje, mas há também que se pensar no ganho positivo, o trabalho de Bonfim é sem duvida creditado por essa loucura que permite, dentre outras coisas, esse debate que aqui se faz à cerca da condição do louco.

O filme mostra ainda um outro lado, o do emprenho da família de Reginaldo que sempre o apoiou, e esteve ao seu lado. Mesmo entendendo pouco do que era essa esquizofrenia seus familiares nunca lhe voltaram às costas. Na história da loucura isso é um fator incomum, e talvez sem o apoio de sua família, como aconteceu com muitos que se viram abandonados em asilos psiquiátricos, sem amparo algum, Reginaldo tivesse conhecido um destino diferente, e bem menos feliz.

A pintura era, sem sombra de dúvida, sua ponte de ligação com o mundo. Quer fosse pintando suas belas negras de lábios carnudos, suas paisagens tropicais ou o Menino Jesus rodeado por todos os seus santos e anjos, a pintura era sua maneira peculiar de lidar com o mundo. Reginaldo não parava de produzir, nem mesmo em momentos de crise, e sonhava um dia poder abrir um museu para expor toda a beleza de seu trabalho.

Arte: Reginaldo Bonfim

O documentário traz um pintor vigoroso, com hábito de pintar à noite (relatado pelo próprio Reginaldo como o horário do dia de maior inspiração), e com verdadeira devoção por um inseparável macacão, sua armadura. São Ideias de Referência de um homem acometido por sua esquizofrenia, ou um capricho de excentricidade do pintor? Ainda me questiono qual a real diferença entre ambos? Se é que existem. E aqui está o perigo da patologização que tem sido disseminada e difundia passivamente por todas as camadas da sociedade, pois é mais fácil justificar nossas ações por meio de uma doença, como se nós todos fossemos vítimas, totalmente passivos e alheios à nossa própria vontade, que aceitar a verdade por trás dos fatos, e assumir nossa culpa e responsabilidade pelos nossos atos.

Não muito diferente de um Dom Quixote, mas que empunha um pincel, Reginaldo Bonfim era um personagem, que usou e abusou do louco, para dar visão e notoriedade ao artista. E quem garante que ele não se divertiu?

A impressão que eu trouxe comigo ao fim do documentário é a de que, mesmo imerso em sua loucura, Reginaldo Bonfim era tão normal quanto outras pessoas que já conheci. Na verdade, precisa-se de certa dose de loucura para desafiar qualquer modelo de ordem, para ser livre, para ser grande, para ser artista. Eu não saberia dizer se o trabalho de Reginaldo teria sido o mesmo se ele não fosse Louco.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

AS CORES DA UTOPIA

Diretor: Julio Nascimento
Roteiro: Julio Nascimento
Ano: 2011
País: Brasil
Gênero: Documentário

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Leonid Afremov - Night Loneliness

Alheio e Adverso

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Isso não é mais um relato da história de vida de um “louco”, é um relato das emoções, de um homem que tinha paixões que de tão intensas o levou a loucura.

Vicent foi um homem que tinha uma visão diferente do mundo que o cercava, sua vida foi marcada pela intensidade de suas emoções e pela forma como as expressava. Era filho de um pastor e, como seu pai, também queria se dedicar a religião, porém não foi bem sucedido. Não foi admitido na universidade de teologia, fracassou nos estudos da escola missionária protestante e sua dedicação a um trabalho temporário como missionário foi tão grande que desagradou seus supervisores. Nesta ocasião, Vicent distribuiu todos os seus bens aos mineiros a que estava ajudando.

Após se decepcionar com a experiência missionária decidiu se dedicar a arte. A vida religiosa não foi o seu único fracasso, ele era financeiramente dependente, não conseguiu construir uma família e era incapaz de estabelecer relações sociais. Com poucos recursos, passou a ser sustentado por seu irmão mais novo, Theodorus, situação esta que o deixava extremamente angustiado. Em certa ocasião escreveu para seu irmão “… em ocorrer sentir-me já velho e fracassado, com tudo ainda suficientemente apaixonado para não ser um entusiasta da pintura. Para ter sucesso preciso ter ambição, e a ambição me parece absurda. Não sei o que será, gostaria especialmente de viver menos a suas custas – e doravante isto não é impossível – pois espero fazer progresso de forma que você possa, sem hesitação, mostrar o que faço sem se comprometer”. (sic)

Em relação a sua vida amorosa, Vicent também teve várias decepções, durante sua adolescência se apaixonou por uma inglesa por quem foi desprezado. Mais tarde, já adulto, apaixonou-se novamente, agora por uma prima. Chegou a pedi-la em casamento e novamente foi rejeitado. Na tentativa de convencê-la do contrário, ele colocou sua mão sobre a chama de uma lâmpada de óleo até se queimar. Esse episódio de auto-flagelo foi o primeiro a ser relatado  sobre sua vida, porém não foi o único.

Seu jeito estranho e hábitos excêntricos não eram bem vistos pela sociedade, seu temperamento não era fácil e suas variações de humor fizeram com que sua amizade com Gauguin, com quem dividiu moradia por dois meses, chegasse ao fim. A rápida convivência entre os amigos teve um ponto final quando, após uma intensa discussão, Vicent foi atrás de Gauguin e o surpreendeu com uma navalha, mas felizmente não chegou a machucá-lo. Vincent voltou para casa e mais uma vez cometeu auto-flagelo: cortou um pedaço de sua orelha esquerda e o enviou para uma prostituta da cidade, com quem tinha um caso.

Alguns dizem que Vicent estava com inveja de Gauguin – que começava a fazer sucesso como pintor; outros dizem que Vicent estava com ciúmes pois tinha descoberto que sua amante estava apaixonada pelo companheiro. Depois deste episódio, Vicent foi internado, permanecendo 14 dias no hospital, e ao retornar para sua casa  fez seu auto-retrato com a orelha cortada. A partir de então, passava a ter sintomas psicóticos, achava que várias pessoas queriam lhe envenenar. Assustados, os moradores da cidadezinha onde morava exigiram que ele fosse internado novamente.

Com 36 anos, após ser abandonado pelo seu amigo Gauguin e com o casamento de seu irmão Theodorus, Vicent sentiu-se muito solitário e caiu em depressão. Desta vez, ele mesmo pediu pra ser internado no hospital psiquiátrico St-Rémy-de-Provence. Na ocasião, foi diagnosticado com perturbações epilépticas, porém o médico que o diagnosticou não era especialista. As crises ocorriam de tempos em tempos e eram precedidas de sonolência e seguidas por apatias. Durante suas crises não conseguia pintar. Nesse período, escreveu para Theodorus, “Após a experiência dos ataques repetidos convém-me a humildade. Assim, pois paciência. Sofrer sem se queixar é a única lição que se deve aprender nesta vida”; “Eu me atrapalhei na vida e meu estado mental não somente é como foi abstraído, de forma que independentemente do que fizerem por mim, eu não posso equilibrar minha vida. Quando eu tenho que seguir uma regra como aqui no hospício, sinto-me tranqüilo”. (sic)

No ano seguinte, já com 37 anos, mudou-se para França para poder ficar mais próximo de seu irmão Theodorus. Entretanto, Vicent deparou-se com o irmão em situação financeira medíocre e ainda com um sobrinho doente. Inconscientemente, culpou-se por tudo que estava ocorrendo e continuou com consultas freqüentes ao psiquiatra. E em 27 de julho de 1890, Vicent pegou suas tintas e seu cavalete e foi para um campo onde pintou seu último quadro. Em mais uma de suas crises, atirou contra seu peito e morreu dois dias depois. Ele foi um homem que teve a vida pessoal marcada pelo fracasso, seu jeito esquisito e fora dos padrões o levou para um isolamento social. Houve vários momentos em que demonstrou um desequilíbrio emocional com variações de humor, porém – em meio a toda essa “loucura” da sua vida pessoal – existia um artista excepcional, cujo reconhecimento só aconteceu após a sua morte.

Vicent Willem Van Gogh é, atualmente, considerado um gênio e, para muitos, um dos maiores artistas de todos os tempos. Tinha uma percepção diferente; ele via beleza e arte no que para os outros era comum. Sua paixão pela pintura e suas emoções eram tão intensas que é possível percebê-las em suas telas. Ao contrário de outros artistas, não gostava de pintar em ateliê. Gostava do ar livre, de sentir a emoção do ambiente e gostava, sobretudo, de pintar pessoas. Admirava-as.

Em trechos de cartas enviadas por Vicent a Theodorus ele narra:

“É uma coisa admirável achar um objeto e acho belo, pensar nele, e dizer em seguida: Vou desenhar e trabalhar então ate que eu esteja produzido. Naturalmente, contudo, esta não e ponto de acreditas que não precisava melhora-la. Mas o caminho para fazer melhor mais tarde é fazer hoje tão bem quanto possível, e então naturalmente haverá progresso amanhã”.

“Com tudo prefiro pintar os olhos dos homens, mais que as catedrais, pois os olhos há algo que nas catedrais não há, mesmo que elas sejam majestosas e se imponham a alma do homem, mesmo que seja um pobre mendigo ou uma prostituta, é mais interessante aos meus olhos”. (sic)

A arte de Van Gogh só ganhou notoriedade 10 anos após sua morte, numa exposição de quadros feita por sua cunhada, em 17 de março de 1901. Durante toda a sua vida, Van Gogh só vendeu uma tela.
Paremos um pouco para pensar: qual era a visão desta época? Por que Van Gohg não fora aceito pela sociedade? Por que ele incomodava?

A sociedade em questão era considerada burguesa,  valorizando o pensamento racional. Van Gogh viveu no século XIX, época em que o modelo asilar da psiquiatria já tinha se consolidado. Os asilos eram locais para onde iam os indivíduos que fugiam dos padrões éticos e morais da época. Tais indivíduos eram aqueles que viviam na ociosidade, que pensavam e agiam de maneira diferente daquela vigente na época, sendo considerados, assim, loucos. Era mais fácil prendê-los em asilos do que tentar compreendê-los.

Vicent Van Gogh era tão diferente na sua forma de ser, de ver o mundo e de expressar suas emoções, que incomodava a sociedade, a ponto de se tornar detestável e isolado. O que nos intriga e nos faz buscar esses questionamentos 120 anos após a sua morte é que, o perfil da  “loucura” para a época era o perfil de Vincent Van Gogh, contudo a visão que se tem dele hoje é completamente diferente. Quem antes era um “louco” hoje é um gênio, um incompreendido. Os costumes mudaram. O que é loucura mudou.

Se for feita uma análise, é ainda mais assustador o fato de que ainda hoje desprezamos o que não entendemos, o que achamos estranho, o que não aceitamos. Os motivos mudaram, mas a prática continua, não mandamos mais as pessoas para asilos mas continuamos a exilá-las das nossas vidas.

E fica a pergunta: daqui a 100 anos, o que será normal e o que será loucura? Qual a visão que se terá da moral e dos costumes do século XXI?

Nota: o texto é resultado de uma atividade da disciplina de Psiquiatria do curso de Medicina do ITPAC – Porto.

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