A diversidade e o preconceito linguísticos no Brasil: uma luta da psicologia e do multiculturalismo

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O preconceito linguístico existe no Brasil e persiste ao longo da história desde o período colonial. Os portugueses ignoraram a língua nativa dos moradores que aqui viviam e passaram a ensinar o português. E por não saberem a língua portuguesa, os nativos perdiam os seus direitos garantidos diante da Corte.

Quanta injustiça os índios não viveram? E para sobrevierem, muitos tiveram que aprender o português que aos poucos fez com que muitas línguas indígenas fossem esquecidas, já que não foram documentadas e não mais ensinadas para as gerações futuras.

Na sociedade atual, diariamente somos surpreendidos com notícias de que alguém sofreu algum tipo de preconceito, seja social, sexual, preconceito físico, de gênero, etc., e também preconceito linguístico. Mas, como definir o preconceito linguístico em um país que tem 26 Estados e o Distrito Federal, onde no mesmo Estado ou região, pode haver variação de sotaques e usos de palavras para um determinado objeto?

Primeiramente vamos compreender o significa de lingüística. Segundo o dicionário Houaiss, “linguística é a ciência que estuda a linguagem humana, a estrutura das línguas e sua origem, desenvolvimento e evolução”. Ou seja, cada lugar, cada povo possui a sua própria língua, a sua forma de se comunicar uns com os outros. Além da língua, existe o dialeto, o qual conforme o dicionário citado anteriormente é “qualquer variedade linguística coexistente com outra e que não pode ser considerada outra língua (p.ex.: no dialeto português do Brasil, o dialeto caipira, o nordestino, o gaúcho, etc.)”. Logo, conclui-se que dialeto é uma variedade linguística, termo utilizado para se referir a formas diferentes de utilizar a língua de um mesmo país. Essas variedades linguísticas resultam da variação de uma língua que ocorre devido a vários fatores, como por exemplo, a faixa etária, a escolaridade, a região, o contexto social e cultural.

O PRECONCEITO LINGUÍSTICO

Agora é preciso compreender o termo preconceito. O dicionário de Evanildo Bechara define-o da seguinte forma: “Conceito, sentimento ou atitude discriminatória em relação a pessoas, ideias, etc.”. Assim, o preconceito linguístico se manifesta ante as diferenças que existem na forma diversificada de falar, que “cada indivíduo observa como errado”, considerando apenas como certa a variação de aceitação no que diz respeito à norma culta ou padrão, e diminuindo o valor das demais formas linguísticas, classificando-as como inferiores.

Pode-se dizer que preconceito linguístico é qualquer crença sem fundamento científico acerca das línguas e de seus usuários. Ora, a linguagem, como dito, é um mecanismo de comunicabilidade e deve ser usada por todos, sem discriminação. É um absurdo achar que somente a língua aprendida nas academias, que segue as regras da norma culta, é correta. Se a linguagem é uma forma de expressão do indivíduo, o que importa é que a mensagem emanada pelo emissor chegue até o ouvinte e por esse seja decodificada e compreendida. Se isso aconteceu, está tudo certo.

Outra questão que necessita ser observada é diferenciar a linguagem escrita, que segue regras e padrões de formatação que não podem ser alterados pelo fato da linguagem falada ser diferente. Se uma pessoa falar “nóis vai”, não quer dizer que irá escrever da mesma forma.

O sistema econômico subjugou a língua falada, padronizando o comportamento das pessoas, privilegiando alguns para exercer o poder. Isto é, quem pertence à classe social alta, tem mais acesso à educação, inclusive, alguns estudam em escolas que alfabetizam em duas ou mais línguas, além do português.

Tanto é verdade que, por exemplo, entre grupos de médicos, engenheiros, advogados, psicólogos, entre outras tantas profissões, há termos técnicos que são falados entre aqueles profissionais e que não fazem parte do vocabulário dos falantes daquela língua e nem por isso, estes, por se utilizarem de vocábulos “diferentes” são excluídos ou diminuídos pelos demais, ao contrário, são venerados.

Dessa maneira, estes são tratados de forma diferente daqueles que não têm acesso ao ensino básico de qualidade e não conjugam, por exemplo, os verbos da forma padrão. As salas de aula, quando tem aula e onde tem escola, são improvisadas e não há divisão de turmas, de idade entre os alunos, grau de escolaridade, etc., numa visão totalmente antagônica à anterior. Mesmo nos dias de hoje, podemos encontrar escolas como essas em alguns Estados brasileiros.

Fonte: Chico Bento – Tirinha de Maurício de Sousa. 1998.

Outro aspecto relevante a ser abordado são as diferentes formas de se comunicar entre os brasileiros. O Brasil, pela sua dimensão territorial, abriga povos que apresentam diferentes culturas e formas de se expressarem, a depender da região. E as regiões consideradas mais economicamente desenvolvidas discriminam as menos favorecidas no plano econômico.

Fato é que os meios de comunicação também reforçam essa diferenciação, inferiorizando algumas maneiras de falar. Muitas das vezes, o sotaque nordestino aparece quando é encenado por um trabalhador da limpeza ou que atua como humorista. Não se observa com frequência em posição de destaque e influência em papéis principais nos filmes, novelas ou telejornais nacionais.

De igual forma, há uma discriminação dos mais jovens para com os mais velhos, mesmo em relação à linguagem. Como explica Maria Homem, em seu canal, esse fenômeno consiste no embate estrutural, como sempre, que está implícito na palavra cringe, pois, durante milênios, os anciãos eram os que tinham mais respeito, em razão dos anos vividos, da experiência e com ela a sabedoria. Inverter essa estrutura se traduz na prepotência da modernidade, que não cuida dos mais velhos, ao contrário, maltrata, não abarca esse caldeirão de experiências, desvalidando aquilo que não se faz mais.

Ora, não é diferente com a linguagem. Os mais jovens desvalidam os mais antigos, a partir de gírias como “broto, pão, avião” que se referiam a alguém bonito e que representam uma determinada geração. Aqueles que reproduzem esses vocábulos são alvo de tratamento pejorativo, jocoso, demonstram estar fora de época, ultrapassados, cringe, como alguém que traz vergonha, e, portanto, algo que deve ser marginalizado, discriminado, numa verdadeira expressão do preconceito linguístico.

A prática desse tipo de preconceito é constatada em todos os lugares e ambientes. Como bem nos assegura Mariane (2008), o ato de julgar antecipadamente consiste na discriminação existente entre pessoas falantes do mesmo idioma que elegem esse outro idioma como oficial e exclui outras variações existentes.

Assim, o preconceito linguístico existe, inclusive, dentro das escolas. O bullying tem levado adolescentes à depressão, à ansiedade e até ao suicídio. Já que o ensino tradicional determinou quem fala certo ou errado, crianças, adolescentes e jovens, que mudam de uma região do Brasil para outra, podem ser alvo de piadas em sala de aula.

Fonte: Imagem por pikisuperstar no Freepik

É oportuno lembrar que existem dois tipos de gramáticas para os linguistas: a normativa e a descritiva. A primeira é a “base da maioria dos livros didáticos e gramáticas pedagógicas, em que se caracteriza um conjunto de regras. Considerada como o conjunto sistemático da norma, ou seja, para o falar bem e escrever. Essa concepção parte do princípio de que todos que falam, sabem de fato, falar. Essa fala segue regras que são consideradas legítimas do ponto de vista do uso e da comunicação entre os diversos tipos de falantes/usuários”. Já a descritiva “tem a preocupação de analisar, descrever e explicar a construção dos enunciados, que são utilizados de fatos pelos falantes”.

Dessa forma, os professores precisam ensinar a variação da língua de forma realista (gramática descritiva) e não utópica (gramática normativa), a fim de minimizar os impactos, fazendo com que o aluno reconheça a importância da própria história, sem perder a essência e ser inserido no novo ambiente, de forma que os demais o recebam com respeito.

Essa atitude está em conformidade com o que prega o Multiculturalismo, que defende a luta pelos direitos civis dos grupos dominados, excluídos.

É oportuno frisar que, diante desse contexto, o preconceito devia ser considerado um problema de saúde pública. O site Veja Saúde publicou uma pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (USFC), que “concluiu que vítimas de discriminação têm um risco quatro vezes maior de desenvolver depressão ou ansiedade e ainda estão propensas a agravos como hipertensão”. “A experiência crônica de intolerância estimula a liberação de hormônios relacionados ao estresse, como o cortisol”, explica o epidemiologista João Luiz Dornelles Bastos, um dos autores do trabalho”.

Desse modo, nota-se que não somente a pessoa que está sendo discriminada, mas, também quem está discriminando pode sofrer problemas psicológicos, como afirma na matéria: a “pessoa prestes a agir de maneira hostil se submete a um estresse interno”, explica Ricardo Monezi, psicobiólogo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Outro fator importante que precisa ser observado é a questão da rejeição e as consequências, pois pode levar o indivíduo que está sendo hostilizado à baixa estima, agressão, solidão e inseguranças, que causam medos de enfrentar os desafios de uma vaga de emprego, por exemplo. É aqui que a Psicologia entra em campo, no cuidado da saúde mental desses indivíduos que sofrem com preconceitos, inclusive o linguístico, já que as consequências são tão devastadoras quanto qualquer outro tipo de discriminação.

CONCLUSÃO

A classificação de certo ou errado para os usos da língua portuguesa não deveria existir, já que há a adaptação do contexto coloquial. A pessoa utiliza determinada maneira para falar, levando em consideração o ambiente familiar, a renda, região que mora, formando a sua própria identidade.

A diversidade na forma de falar torna o Brasil com múltiplas características, já que cada região tem um sotaque, seu vocabulário próprio, sua forma de se expressar, a exemplo das diversas línguas indígenas que carregam em si uma história.

O ser humano pertence a um determinado grupo e isso o torna autêntico, donde se conclui que a “língua” não poderia ser considerada como um problema, ao contrário, a “diversidade linguística, neste caso, está relacionada com a existência e a convivência de línguas diferentes. O conceito defende o respeito por todas as línguas e promove a preservação daquelas que se encontram em vias de extinção por falta de falantes”.

Portanto, a diversidade linguística se refere às múltiplas identidades de cada um e como tais merecem respeito e não preconceito.

REFERÊNCIAS

Pequeno Dicionário Houaiss da língua portuguesa/Instituto Antônio Houaissde Lexicografia, [organizador]; [diretores Antônio Houaiss, Mauro de Sales Villar, Francisco Manoel de Mello Franco]. – 1. Ed. – São Paulo: Moderna, 2015

BECHARA, Evanildo, Minidicionário da língua portuguesa Evanildo Bechara/ Evanildo Bechara. – Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2009, página 718.

HOMEM, Maria. O que é cringe? Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Hjh6p5Ip6Bg. Acessado em 24/11/21.

SANTOS, Patrícia da Cruz Ferreira dos [1], ANDRADE, Marta Mires Da Cruz de [2], ALMEIDA, Daiane Vithoft de [3], Preconceito linguístico: Intolerância que retrai, língua que marginaliza.Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 08, Vol. 15, pp. 12-33. Agosto de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/lingua-que-marginaliza, DOI:10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/lingua-que-marginaliza. Acesso em 17/11/21.

MATTA, Sozâgela Schemim da. Português, linguagem e interação. Curitiba: Bolsa Nacional do Livro Ltda, 2009.

BERGAMO, Karolina. A intolerância de hoje pode ser a doença de amanhã — inclusive entre quem pratica a discriminação. Publicado em 28 jun 2016. Disponível em https://saude.abril.com.br/mente-saudavel/preconceito-faz-mal-a-saude/amp/. Acesso em 24/11/21.

[1] Pequeno Dicionário Houaiss da língua portuguesa/Instituto Antônio Houaissde Lexicografia, [organizador]; [diretores Antônio Houaiss, Mauro de Sales Villar, Francisco Manoel de Mello Franco]. – 1. Ed. – São Paulo: Moderna, 2015, p. 593.

[2] Idem. p. 334.

[3] BECHARA, Evanildo, Minidicionário da língua portuguesa Evanildo Bechara/ Evanildo Bechara. – Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2009, página 718.

[4] HOMEM, Maria. O que é cringe? Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Hjh6p5Ip6Bg. Acessado em 24/11/21.

[5] SANTOS, Patrícia da Cruz Ferreira dos [1], ANDRADE, Marta Mires Da Cruz de [2], ALMEIDA, Daiane Vithoft de [3], Preconceito linguístico: Intolerância que retrai, língua que marginaliza.Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 08, Vol. 15, pp. 12-33. Agosto de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/lingua-que-marginaliza, DOI:10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/lingua-que-marginaliza. Acesso em 17/11/21.

[6] MATTA, Sozâgela Schemim da. Português, linguagem e interação. Curitiba: Bolsa Nacional do Livro Ltda, 2009, p. 136.

[7] Idem

[8] BERGAMO, Karolina. A intolerância de hoje pode ser a doença de amanhã — inclusive entre quem pratica a discriminação. Publicado em 28 jun 2016. Disponível em https://saude.abril.com.br/mente-saudavel/preconceito-faz-mal-a-saude/amp/. Acesso em 24/11/21.

[9] Idem

[10] Conceito da diversidade lingüística. Publicado em 2011/atualizado em 2019. Disponível em https://conceito.de/diversidade-linguistica. Acesso em 24/11/21.

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Museu da República recebe Encontro de Poetas da Língua Portuguesa

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EPLP chega a sua quinta edição com antologia comemorativa

A poesia celebra mais uma vez a língua portuguesa. A partir do dia 31 de agosto, será realizada a quinta edição do Encontro de Poetas da Língua Portuguesa (V EPLP). A abertura do evento será no Museu da República – Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Depois do Rio, as cidades de Olinda, Recife, Lisboa (Portugal) e Luanda (Angola) sediarão a edição. O evento é gratuito,aberto ao público e com classificação livre.

Segundo Mariza Sorriso, poeta e organizadora da iniciativa, o projeto, que teve seu princípio em 2013, visa integrar e reunir anualmente poetas de todos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), além de dar a conhecer a arte e a cultura de todo o mundo lusófono.

Fonte: https://goo.gl/SegE8k

Atividades

A abertura acontecerá no auditório do Palácio do Catete, a partir das 10h, no dia 31 de agosto. A programação da tarde vai contar com passeio literário guiado com visita à Associação Brasileira de Letras (ABL), Biblioteca Nacional e Real Gabinete Português de Leitura entre outros locais relevantes para a cultura.

No dia seguinte, 1º de setembro, será apresentada a palestra ‘A importância da integração dos poetas de língua portuguesa para a literatura’ pelo prof. Luiz Otávio Oliani. À tarde, haverá o lançamento da antologia comemorativa do encontro, intitulada ‘A Poesia do Fado e dos Tambores’ (Dowslley Editora).

– Apresentamos o fado representando o colonizador e os tambores as ex-colônias de Portugal. Ao todo, são 273 poemas de 135 poetas de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe – explica Mariza.

A mentora do encontro comenta também que o livro evidencia a diversidade cultural que compõe os países lusófonos e reforça ainda mais os laços. “Os ‘sentires poéticos’ cumprem o papel de profetizar a história e traduzir a sensibilidade humana”.

– Na edição deste ano, reverenciamos alguns poetas consagrados em cada país sede de realização do EPLP, pela sua contribuição à cultura lusófona. Homenageamos os brasileiros Gonçalves Dias e Castro Alves, a portuguesa Fernanda de Castro e o angolano A. Agostinho Neto – declara a mentora do projeto.

Mariza destaca ainda que o desejo é integrar o maior número de poetas lusófonos, incluindo alguns que, por questões socioeconômicas, não teriam chance de serem ouvidos ou lidos. “Por isso, unimos poetas das mais variadas idades e níveis de vivência poética, renomados e premiados, ao lado de estreantes na poesia”.

Fonte: https://goo.gl/vnRwPp

Programação nacional e internacional

Depois do Rio, em setembro, nos dias 14 e 15, quem recebe o projeto são as cidades de Olinda, no Artes & Serenatas, e em Recife, no Gabinete Português de Leitura de Pernambuco.

Em seguida, os poetas se encontram em Lisboa (PT), que conta com ampla programação entre os dias 19 e 21, culminando, no dia 22, com a cerimônia na Biblioteca do Museu Nacional do Desporto-IPDJ. E, por último, o evento acontece em Luanda (Angola), nos dias 28 e 29, no Instituto Camões e no Memorial António Agostinho Neto (MANN).

 

Serviço:

Inscrições pelo e-mail 

Certificado de participação somente para poetas, professores e estudantes de letras.

Prazo até dia 26 de agosto

Grátis e Aberto ao Público

Classificação: Livre

Museu da República

Sexta-feira dia 31.08.18

De 10h – abertura do evento – Museu da República

Das 10h30 às 12h – sarau com convidados

Às 13h – Pausa para o almoço

Às 14hs – início do circuito literário guiado nos principais pontos da literatura e poesia do Rio de Janeiro (ABL, Gabinete Português de Leitura, Colombo, Biblioteca Nacional). Saída a partir da Confeitaria Itajaí, centro do Rio.

 

Sábado – Dia 01.09

De 10h às 12h – Atividades culturais e palestras

De 12h às 13h30 – pausa para o almoço

A partir das 14h – Apresentação dos poetas e lançamento da antologia comemorativa

Às 17h – Apresentação musical de ritmos lusófonos

Às 18h – Confraternização e encerramento do evento

 

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Um causo da Educação… e Saúde Mental

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NOIS MUDEMO
(Texto parafraseado)

“O ônibus da Transbrasiliana seguia tranqüilo pela BR-153, com destino a Porto Nacional. Era abril, mês das últimas chuvas. Havia no céu, uma lua enorme, pra nenhum amante por defeito. Baixo o generoso luar, o verde cerrado era um presépio encantador, todo poeta e místico.

Porém, estava cheio de amargura. O encontro que havia tido naquela tarde, aquele jovem sofrido, envelhecido precocemente, a dura memorização de um fato que parecia tão bobo… Procurei adormecer. Não consegui. Percorrendo com meus olhos a paisagem enluarada, esta não era nada para mim além de fundo de um acontecimento estúpido e traumatizante.

Era o primeiro dia da semana e as aulas haviam começado. A escola era de subúrbio, as classes de ambos os sexos com alunos atrasados. Havia uma criança maior, quase um jovem, magro, alto, cabelos crespos, desconfiado, um pouco assustado, tímido.
_ Porque não veio antes? Perguntei ao garoto.
_ É porque nois mudemo onti, fessora. Nós veio da roça.

A turma riu.
_ Não se fala “nóis mudemo”, garoto! Devemos dizer: “Nós mudamos, viu?”.
_ Viu, fessora!

No intervalo do lanche os colegas zombaram do garoto: Oi, nóis mudemo! Até amanhã, nóis mudemo!

No outro dia, a coisa se repetiu: risos, cochichos, piadas.
_ Bom dia, nóis mudemo! Como vai, nóis mudemo?

Já em casa, à tarde, o menino conta:
_ Não vô mais pra escola, Pai!
_ Ó xente! Pru quê, meu fio?

Após escutar o filho, o pai pensou e disse.
_
Meu fio, nun vai deixá a escola pru modi uma bobagem dessa! Não dá bola pras gozação da garotada! É assim mesmo, na cidade. Depois eles esquece.

Mas não esqueceram.

Dei falta do menino na quarta-feira. Ele não foi no resto da semana e nem na segunda-feira. Foi quando percebi que nem sabia o nome dele. Procurei no diário de classe. O nome era Lúcio. Lúcio Rodrigues Barbosa. Encontrei o endereço. Uma tarde fui lá. Era longe, um barraco apertado, um dos últimos casebres cobertos de telha de amianto.
_ Boa tarde, Senhor. Está o Lúcio?
_ Não, senhora. Ônti ele foi pra casa do meu irmão no Sul do Pará. É fessora, ele não agüentou as humilhação da mininada. Eu tentei fazê ele não saí da escola, mas não adiantou. Nóis não tem veis na cidade. Nóis num sabe falá certo. Agora ele ta socado naquele buraco…

Ó meu Deus! As mãos trêmulas sobre a cabeça baixa.

Eu não tinha experiência, estava confusa e não sabia o que dizer, apenas engoli em seco e me despedi.

Procurei a diretora e contei o que se passou.
_ Liga não! Essa gente é assim mesmo.


Faz dezessete anos que isto aconteceu e não me lembrava mais, pelo menos eu não.

Em uma tarde quente, numa lugarejo à beira da Belém-Brasília, eu estava prestes a pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, um rapaz mal vestido, encostado num poste, acenando e sorrindo pra mim, com a barba rala, magro, amarelo, curvado, parecia doente.
_ Quê, moço?
_ A senhora ta lembrada de mim, fessora?

Olhei pra ele. Tentei recordar. Vi passar sob minha cabeça os longos anos de dedicação ao magistério. Não conseguia lembrar. Um pressentimento ruim me invadiu.
_ Não me lembro, moço. De onde me conhece? Fui sua professora? Qual seu nome?
Fiz tantas perguntas, ele me respondeu arrasando-me:
_ Eu sou Nóis mudemo, fessora.

Meu Deus! Tremi.
_ Sim, moço. Estou me lembrando. Como se chama mesmo?
_ Lúcio Rodrigues Barbosa.
_ O que houve com você Lúcio?

O rapaz desatou a falar, contando-me recordações sofridas.
_ O que aconteceu? Ah! Fessora. Dizê o que não aconteceu é mais fácil. A vida foi dura pra mim. Fui garimpeiro na Serra Pelada, fui bóia fria, trabalhei numa fazenda desse tamanhão como escravo durante um tempão. Dormi no chão, passei fome, tortura, levei bala quando fugi. Tive tudo quando doença. Até fui pra cadeia. Nóis da roça, ignorante, as veis fazemo uma farta danada. Eu num devia tê ido embora da escola, fessora, mas não agüentei as piada dos colega. Eu sabia que num ia aprendê fala qui nem eles. Que pode fazê? Até hoje não sei. A escola não é feita pra gente que nem eu.
_ Meu Deus! As falas daquele garoto me deixaram angustiada. Foi muito pra mim. Sem conseguir me controlar, comecei a chorar compulsivamente. Como pude ser tão idiota e cruel? Abracei o rapaz, ou o que sobrava dele, e ele me olhou desconcertado.

A buzina insistente do ônibus fez o rapaz recuar serenamente.
_ Chora não, fessora!! A curpa não é da senhora.
_ Como? A culpa não é minha?  Deus do céu!

Entrei correndo no ônibus. Os olhos dos passageiros pareciam me acusar. O ônibus se foi. Pensei na minha sala de aula, eu era uma homicida a caminho do holocausto.


Hoje sinto raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos, mudamos, mudaamos, mudaaaamooos… hiper usada, mal usada, cansada, ela mata dentro da escola. A gramática faz humilhações com a língua materna – a língua aprendida com os pais, irmãos e colegas. Dessa forma, ela é o terror dos alunos. Ao contrário de estimular o crescimento, através da comunicação, ela reprime e oprime, com a cobrança de inúmeras regrinhas idiotas para aquela idade.

E os Lúcios da vida, os milhões de lúcios do subúrbio e do interior, presos na sala de aula. “Não é assim que se fala, menino!” Como se o professor dissesse: Você não sabe nada. Seus pais não sabem nada. Todos estão errados, seus irmãos, amigos e vizinhos. Eu sou a certa. Faça como eu! Copie-me! Fale como eu! Não seja você! Negue sua origem! Diminua-se! Despersonalize-se! Fique onde está! Seja um nada!”.

E continue indo sem arma para o matadouro da vida…”.

(BOGO, Fidêncio, O quati e outros contos. Palmas – TO, 2002, Parafraseado)

O texto conta a história vivenciada por uma professora que, imaginando estar ensinando da melhor forma possível, corrigiu seu aluno em voz alta e de certa maneira favoreceu para que os colegas o rotulassem como alguém ignorante, que não sabia falar corretamente.

Lúcio é o nome deste garoto pobre, sem instruções, advindo da zona rural. O pai, também carente de instruções, na tentativa de melhorar a vida da família, migra com esta para a cidade e tenta colocar Lúcio na escola para que este tenha uma vida melhor que a sua.

O garoto foi vítima de humilhação e de situações vexatórias por usar uma linguagem que foge da linguagem padrão. Lúcio e seu pai utilizam uma linguagem própria, materna, com características de quem não teve chances de estudar, uma linguagem sem a preocupação em usar corretamente as normas gramaticais. Vemos isto nas falas: “nois mudemo”, e “é fessora, meu fio não agüentava gozação da mininada”.

Lúcio e seu pai têm exclusivamente este tipo de linguagem porque foi assim que aprenderam com seus familiares, amigos e vizinhos, não tendo oportunidades em conhecer outra linguagem possível. Pode-se dizer que possuem uma língua materna, e como ambos não tiveram acesso a outro tipo de linguagem, uma vez que não puderam freqüentar a escola, só possuem a linguagem usual da família.

Após ser discriminado, humilhado e excluído na escola, Lúcio foi embora para o Sul do Pará, zona estritamente rural, trabalhar em atividades que não exigem nenhum grau de instruções. O garoto continuou sendo humilhado e excluído, só conseguiu trabalhos pesados, com baixa remuneração, às vezes até sem remuneração, podendo ser comparado ao trabalho escravo. Como não tinha instruções ou escolarização, não conseguiu trabalhos melhores, pois não dominava técnicas diferentes daquelas que aprendeu na roça.

Infelizmente, Lúcio pode ter sua história confundida com a de milhares de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza encontrando-se em situações subumanas e completamente esquecidos pelo poder público e pela sociedade.

O personagem da história são estes brasileiros que só teriam chance de ter seu destino mudado se tivessem acesso à escolarização. Se Lúcio não se sentisse excluído na escola talvez tivesse tido uma vida diferente. Com maior escolaridade, poderia ter encontrado trabalho na cidade, ajudando sua família, ou mesmo voltado para a zona rural, certamente seria mais valorizado, teria empregos melhores e não sofreria tanto.

O exercício de nos colocarmos no lugar do outro é bastante interessante. Se eu estivesse no lugar de Lúcio, quando este foi humilhado diante da professora e dos colegas, com certeza me sentiria a pessoa pior do mundo. Seria mesmo um peixe fora d’água. Alguém que não pertencesse àquele lugar.

Lúcio foi humilhado por falar “errado” no ambiente que existe para se ensinar como se fala “certo” ou “errado”. Se realmente existisse o “certo” e o “errado” aquele deveria ser o lugar de Lúcio. Lá, ele poderia aprender o que não teve chances de aprender em toda sua vida. Se todos fossem à escola já sabendo o que se pretende ensinar, então pra que serve a escola?

Este garoto foi excluído justamente onde deveriam acolhê-lo e ensiná-lo. Porém, infelizmente, não é assim que vemos acontecer. Muitas crianças são ridicularizadas por demonstrar “não saber”, vemos isto nos inúmeros casos de alunos que não perguntam ao professor por medo da reação dos colegas, se sentem envergonhados por “não saberem”. Esta realidade é cruel e massacrante, e só contribui para aumentar os índices de repetência e evasão escolar.

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