“Elize Matsunaga – Era uma vez um crime”: conteúdos psicológicos da controversa série brasileira

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A série brasileira “Elize Matsunaga – Era uma vez um crime” é um documentário televisivo original da Netflix em parceria com a produtora Boutique Filmes, dirigida por Eliza Capai. A produção lançada em julho de 2021, tem conteúdo com censura 14 anos, melancólico focado, especialmente, nos sintomas psicológicos e jurídicos da autora confessa de um dos crimes mais impactantes da história recente do país ocorrido em 19 de maio de 2012.

Figura 1 – (Crédito: Reprodução/Netflix)

A série explora fotos e vídeos de conteúdo intimista do antigo casal, apresenta vasto material jornalístico veiculado à época do julgamento, as falas de amigos, familiares e de especialistas sobre o caso oferecendo, e, por fim, destaca-se por conter muitas horas de declarações diretas de Elize tomadas durante uma saída oficial do ressesso de páscoa da prisão de Tremembé em 2019, falando em primeira pessoa, com iluminação e enquadramentos ajustados para fazer audiência sentir-se em frente a ela, olhando nos olhos, com expressiva proximidade.

Os episódios da série são: 1 – Estado civil: viúva; 2 – Uma vida de princesa; 3 – A infeliz ideia de Eliza e 4 – Ecos de um crime.

Figura 2- (Crédito: Reprodução/Netflix)

São apresentados temas de muito relevo para a psicologia e psicanálise, sadismo, masoquismo, depressão, e psicopatia foram conceitos diversas vezes mencionados pelos que tentavam enquadrar e compreender a subjetividade complexa da autora do crime bárbaro.

No julgamento, tanto a defesa como a acusação fundavam seus argumentos e aspectos psicológicos relativos a Elize. Os primeiros arguiam que a pena do crime deveria ser afastada, atenuada ou reduzida, pois no momento que atitou no marido, e esquartejou o corpo dele e o transportou em malas, ela não respondia por suas ações, pois estava tomada por violenta emoção.

Segundo a defesa, a autora do crime teve uma crise de ansiedade decorrente de longo período do medo que sentia de ser machucada e morta pelo marido, e tal medo estaria justificado no longo período de violência psicológica sofrida por ela contexto do casamento.

Já a acusação também faz uso da psicologia para pedir aumento da pena de Elize, que teria cometido o crime por motivo torpe, por mero ciúme e a associa a figura estigmatizada da mulher que deseja ser Cinderela, e ter “uma vida de princesa”, deixar as raízes humildes e ascender socialmente por meio do casamento do qual ela não estaria disposta a abrir mão.

Figura 3 – (Crédito: Reprodução/Netflix)

Neste contexto, entre argumentos de defesa e de acusação as personalidades de Elize e do marido assassinado tornam-se objeto de diversas discussões e especulações ao longo da série num esforço de compreensão e categorização da barbárie.

Como exemplo, tem-se a apresentação ao público de “fatos novos” que poderiam justificar para o público os comportamentos de Elize. Isso porque, foi descrito o impacto da morte prematura do pai na história dela. Foram retratados a vida difícil em termos de condições materiais que a família enfrentava e o contexto rural e muito rústico que ela viveu a infância e adolescência.

Além disso, tem-se um possível abuso sexual que ela teria sofrido aos 15 anos, perpetrado pelo padrasto e que teria marcado profundamente sua subjetividade e, por fim, a experiência vivida como profissional do sexo que a levou a sair do contexto familiar e a conhecer o futuro marido.

Por fim, vale destacar a releitura feminista que a série se propõe a fazer tanto do crime em si questionando diversos pontos de pré-conceitos ligados ao fato de a autora ser uma mulher, ter sido profissional do sexo e ter agido motivada por ciúmes, destacando, ainda, diversos casos famosos como o de Ângela Dinis morta pelo marido nos anos 60. O crime de Elize teria o mesmo fim caso fosse cometido por um homem? Fica a dúvida necessária e o convite à reflexão.

FICHE TÉCNICA

Elize Matsunaga – “Era uma vez um crime”

Ano produção: 2021

Dirigido por Eliza Capai

Classificação – Não recomendado para menores de 14 anos

Gênero: Documentário

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You – Quando a perversão é confundida com amor.

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É uma série de televisão americana de suspense psicológico, a primeira temporada é baseada no livro homônimo de 2014 escrito por Caroline Kepnes. Que descreve a história de Joe Goldberg (Penn Badgley) que é um gerente de livraria de Nova York, que se apaixona por uma cliente chamada Guinevere Beck (Elizabeth Lail).

Desde o inicio a série é narrada por Joe, o que dá a possibilidade das pessoas que assistem entenderem sua mente. Desde o momento que Beck entra na livraria em que Joe trabalha, o mesmo começa a descrevê-la. Ele gosta da forma como a observa e como busca maneiras de entender seus passos dentro da livraria, mesmo não a conhecendo. Joe antes mesmo de conhecê-la por um encontro ou algo típico de um início de relacionamento, o mesmo à procura nas redes sociais, busca o máximo de informações possíveis, obtendo assim, a sorte de encontrar o endereço de Beck. Joe passa a observá-la por vários dias, chegando a entrar na casa de Beck enquanto ela não estava e furta uma calcinha. Ele a observava até mesmo se relacionando com outros homens. Um desses homens é o Ben, no qual Beck demonstra interesse.

A verdadeira personalidade de Joe começa quando ele sequestra Ben e o deixa por vários dias no porão da livraria, sendo que depois o mata e queima o corpo em um bosque, tudo isso para que Ben ficasse fora de seus planos.  E os abusos de forma secreta continuam, Joe tem a sorte de furtar o celular de Beck sem que ela perceba, passando assim a ter acesso a todas as conversas dela.

Fonte: encurtador.com.br/lBLPU

Depois de alguns encontros, o casal começa a ter um relacionamento mais sério. O problema agora é com as amigas, Joe sempre afirma em suas narrações que as amigas não demonstravam nenhum companheirismo para com Beck, e a rivalidade maior era com Peach, a amiga mais próxima. Uma  grande hipocrisia na fala de Joe é quando ele afirma que Peach era perversa, porque sempre queria Beck por perto, guardava várias fotos da mesma, manipulava e a desejava. Peach também acaba sendo morta por Joe. O mesmo afirma que foi o  melhor para Beck.  O fim desta primeira temporada termina com Beck descobrindo a obsessão de Joe, ela encontra todos os objetos que ele furtou, mas, também encontra objetos da ex-namorada que também foi morta. Beck tenta fugir, mas acaba sendo assassinada por Joe.

Percebe-se que Joe tem um interminável desejo de satisfazer e proteger Beck, “Tudo para o Outro”. Esse é o objetivo dele. Joe até chegou a fazer terapia, mas no intuito de saber se Beck estava lhe traindo com esse psicólogo que ela fazia terapia. Fink, 2008 afirma que “A maioria dos clínicos não recebe muitos pacientes que possam ser classificados com exatidão como perversos, falando em termos psicanalíticos.” Joe jamais se acharia uma pessoa má, para ir à terapia, tudo que ele fazia era por amor a Beck.  Para a psicanálise a perversão é entendida como pessoas estruturalmente perversas, que não se relacionam com o outro como uma pessoa inteira. O perverso toma o outro como um objeto. A finalidade do perverso é sempre sua satisfação sem considerar o outro. Pode se dizer que o perverso não tortura necessariamente sua vítima de forma física, mas pode subjugar sua visão de mundo. O que de fato acontecia com Joe e Beck, ele não aceitava o mundo de Beck, em suas narrações afirmava que a vida dela seria diferente ao lado dele. De forma inconsciente, Joe não pensava em Beck, mas sim no desejo de tê-la somente para ele.

“É comum os perversos terem bastante certeza” (Fink 2008). Joe tinha certeza de que tudo que estava fazendo daria certo, ele transmite isso o tempo todo. Um homem confiante, onde tudo que fazia tinha um propósito, e esse propósito era de salva Beck de sua vida rodeadas de pessoas que não queriam o bem dela, pois apenas ele poderia dar o melhor para ela, exemplo de um relacionamento abusivo. Dessa forma, a psicanálise explica que “na perversão, o desejo parece como vontade de gozo, e o ato é praticado geralmente como vitorioso, isento de culpa. O perverso sabe o que quer.” (Ferreira, 2011)

Fonte: encurtador.com.br/eiyX7

Joe em sua grande perversão, não enxerga que está errado, sempre afirma que tudo isso era por amor, que ele a amou, mas não foi reciproco. O que ele faz nunca é sua culpa, faz porque tem um porque e a culpa é de Beck por ter pessoas ruins à sua volta. Dessa forma, a psicanálise explica que “na perversão, o desejo parece como vontade de gozo, e o ato é praticado geralmente como vitorioso, isento de culpa. O perverso sabe o que quer.” (Ferreira, 2011).  Pode se concluir que Joe é um exemplo clássico de psicopata, um perverso que não sente culpa ao mentir e principalmente ao matar.

REFERÊNCIAS

Fink, Bruce. Introdução clínica à psicanálise lacaniana. 1° edição. Zahar. 2008.

FERREIRA, Breno de Oliveira; MENESES, Hélem Soares de. Perversão à Luz da PsicanálisePsicologado[S.l.]. (2011). Disponível em: https://psicologado.com.br/abordagens/psicanalise/perversao-a-luz-da-psicanalise.  Acesso em 29 de maio de 2020.

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‘O Silêncio dos Inocentes’ e as relações humanas sob uma perspectiva fenomenológica-existencial

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O filme aborda aspectos como os traços psicóticos da personalidade de serial killer, o reflexo dos traumas de infância no desenvolvimento e suas consequências na vida adulta

Considerado um clássico do terror psicológico, ‘O Silêncio dos Inocentes’, lançado no início dos anos 90, apresenta uma narrativa extremamente cativante, capaz de prender o espectador com maestria durante duas horas de filme. A história, permeada de suspense, se desenrola e ganha intensidade a cada minuto até atingir seu clímax. Vencedor de cinco prêmios Oscar em 1992, a obra é, sem dúvidas, um dos grandes marcos e uma das maiores contribuições do diretor Jonathan Demme para o cinema.

Muito além de apenas uma narrativa de suspense e terror, “O Silêncio dos Inocentes” convida o espectador a refletir sobre a natureza humana e suas infinitas peculiaridades, apresentando personagens com perfis psicológicos complexos e bem trabalhados. Acompanhamos a dura trajetória de Clarice Starling, a tímida, mas forte e determinada detetive do FBI, durante o desenrolar do caso Buffalo Bill. Seus encontros com o psiquiatra e temido assassino em série Hannibal Lecter não só a tocam profundamente como contribuem para o próprio processo de investigação criminal.

Fonte: https://bit.ly/2XYcDij

Esses encontros desempenham um papel importante na trama e formam uma peça chave para entender como se dá na prática a relação fenomenológica entre dois sujeitos totalmente inversos em valores e vivências. O encontro entre a doçura e determinação da jovem Clarice e a postura intimidadora do sagaz e analítico Hannibal Lecter é o eixo narrativo que deverá pautar a discussão ao longo do texto, de modo a tecer considerações a respeito da fenomenologia existencial como base filosófica para compreender as relações humanas.

Resumo do Filme

Clarice Starling é uma estagiária do FBI que é designada para desempenhar um grande papel nas investigações do caso Buffalo Bill, um serial killer de mulheres cujas motivações seguem desconhecidas pelas autoridades. Como parte da investigação, ela é também a estagiária escolhida por seu superior para exercer uma tarefa um tanto quanto assustadora: visitar o terrível assassino Hannibal Lecter em sua cela, de modo a obter informações a respeito do caso. Na sua primeira visita, Clarice é intimidada e confrontada pelo psiquiatra, que chega a provocá-la com comentários irônicos e ofensivos, mas a jovem detetive consegue manter sua postura e conduzir a investigação sem demonstrar estar se sentindo atacada.

O diálogo entre os dois segue permeado por uma atmosfera de tensão, e Hannibal cada vez mais demonstra interesse pelas particularidades da personalidade da jovem detetive. A expectativa quanto ao interesse de Lecter em ajudar nas investigações era baixa, mas ele decide colaborar a seu próprio modo: utilizando-se de enigmas, anagramas, pistas e jogos mentais, envolvendo Clarice em sua teia de manipulação. Dessa forma, ele rejeita o questionário investigativo proposto pela detetive e faz sua primeira jogada, dando a ela a primeira pista sobre o caso, escondida atrás de um anagrama.

Seguindo as orientações e pistas de Hannibal, Clarice chega a uma garagem e encontra o cadáver de um homem, tendo o primeiro êxito na investigação. Sua segunda visita à cela do psiquiatra é ainda mais reveladora, e o vínculo entre os dois começa a se desenvolver com mais propriedade. A vítima encontrada na garagem era conhecida por Hannibal, mas não havia sido assassinada por ele, mas sim pelo próprio Buffalo Bill, que já havia tido um laço amoroso com o homem. Enquanto isso, o serial killer segue atrás de vítimas. Ele consegue enganar e sequestrar a filha de uma importante senadora, o que moverá ainda mais as autoridades posteriormente na trama.

Fonte: https://bit.ly/2Cn02vM

Trazendo mais pistas para o caso, um dos corpos das cinco vítimas do assassino é encontrado. Durante a necrópsia, é identificado na boca da mulher um objeto um tanto quanto incomum: uma pupa de mariposa. Esse item torna-se um dos padrões observados em cada vítima, além do fato de serem mulheres de corpos grandes e de terem tido suas peles retiradas.

Quando o sequestro da filha da senadora torna-se de conhecimento público e surgem os primeiros indícios de que ela teria sido mais uma vítima de Buffalo Bill, as investigações ganham mais intensidade. Em uma das cenas mais memoráveis do filme, Hannibal concorda em ajudar Clarice com mais pistas, sob uma condição: que ela exponha o mais íntimo de sua alma a ele. Inicialmente hesitante, a jovem detetive acaba por revelar uma importante parte da sua história a Lecter, contando sobre sua difícil infância. Órfã de pai aos dez anos, Clarice foi morar na fazenda de seu tio, mas uma situação fez com que ela fosse encaminhada para um orfanato: uma criação de ovelhas estava sendo mantida em cárcere para que tivessem suas peles posteriormente retiradas. Os gritos dos animais levaram a jovem Starling a tentar resgatar uma das ovelhas, mas, infelizmente, ela foi encontrada com o animal após fugir dos limites da fazenda. Hannibal, fascinado com a história, faz um paralelo entre a situação e o comportamento atual da detetive, que se vê obrigada a ajudar as jovens sequestradas pelo serial killer. O encantamento do psiquiatra com Clarice torna-se ainda mais evidente, e o vínculo entre os dois ganha mais força.

Em outra visita a cela de Hannibal, a jovem propõe outro acordo a ele: caso seus esforços para colaborar com a investigação e o resgate da filha da senadora sejam frutíferos, ele será presenteado com regalias especiais, como poder passar momentos numa ilha sob escolta policial. É organizado um encontro entre ele e a senadora, e mais informações são passadas. Ainda não convencida das intenções do psiquiatra, Clarice o visita uma última vez e tenta retirar dele a verdade sobre a identidade do serial killer, mas seu tempo com ele acaba e ela é retirada à força do local. Numa cena envolvida em tensão, dois policiais visitam a cela do psiquiatra para trazer comida, e ele consegue traçar uma estratégia de fuga, matando ambos e retirando a pele do rosto de um deles, para logo após trocar de roupa com ele, de modo a enganar as autoridades e a ambulância. É encontrado no teto do elevador um corpo com as roupas de Hannibal, mas é revelado que, na verdade, se tratava do corpo de um dos policiais. Dessa forma, o possível sobrevivente levado na ambulância era o próprio Hannibal, disfarçado com roupas de policial e com o rosto retirado da vítima. Com essa estratégia, Dr. Lecter consegue mais uma vez enganar as autoridades e fugir.

Fonte: https://bit.ly/2Favuz7

Enquanto isso, a jovem filha da senadora é atormentada por seu sequestrador, que a mantém presa dentro de um buraco. O serial killer, excessivamente maquiado e vestido com roupas femininas, faz uma grande pressão psicológica na vítima. Nas cenas que mostram seu esconderijo, entramos em contato com o fato de que Buffalo Bill é, na verdade, um transexual, ou que ao menos se enxerga dessa forma, e que o sequestro e assassinato das mulheres sempre teve como propósito usar suas peles para finalidades estéticas, de modo que ele conseguisse se sentir na “pele” de uma mulher. As pupas de mariposa, cuidadosamente alojadas na boca das vítimas, simbolizavam a transformação desejada pelo assassino e concretizada com a retirada das peles das vítimas.

As pistas dadas por Hannibal levam as autoridades a um caminho, mas Clarice, seguindo a sua intuição, decide continuar a investigação por si mesma. Ela visita a casa da primeira vítima do serial killer e descobre mais informações relevantes para o caso, inclusive o fato dele estar usando as peles para fazer suas próprias roupas. Reunindo pistas e informações, a detetive chega a casa do assassino, enquanto o FBI segue as orientações dadas por Hannibal e chega a outra casa. Clarice, sem ter ideia disso, conversa com o próprio Buffalo Bill buscando por mais informações, e só tem a certeza de que o homem em sua frente é o assassino que ela procura quando enxerga ao fundo uma mariposa exótica voando – a mesma espécie cujas pupas eram colocadas na garganta das vítimas. Inicia-se então o que pode ser classificado como o ápice do filme: a detetive persegue o homem dentro de sua própria casa e encontra a filha da senadora dentro do buraco.

Em um dado momento, as luzes são desligadas e somos levados a crer que o serial killer conseguirá matar Clarice, mas a jovem, com sorte, consegue mirar e atirar nele, encerrando de vez o caso e, finalmente, “silenciando as ovelhas”.  Clarice consegue muito prestígio e reconhecimento pelo FBI e pela sociedade, e, no final do filme, Hannibal lhe faz uma ligação, parabenizando-a pelo seu sucesso, deixando evidente sua admiração e carinho pela jovem detetive.

Fonte: https://bit.ly/2TC2nxv

Análise

‘O Silêncio dos Inocentes’ é, sem dúvidas, um prato cheio para o estudo da psicologia. Repleto de nuances que trabalham a complexidade da psique humana, o filme aborda aspectos como os traços psicóticos da personalidade de serial killer, o reflexo dos traumas de infância no desenvolvimento e suas consequências na vida adulta, e questões para além do campo psicológico, como o machismo no ambiente de trabalho. Indo ainda mais além do que já foi citado, há presente no filme algo ainda mais delicado e complexo de se debruçar sobre: a relação entre Hannibal e Clarice.

O primeiro contato entre a detetive e o psiquiatra dá-se quando ainda há um grande distanciamento entre os dois, expresso não só pela cela que separa Hannibal da jovem, como também pela própria história, personalidade e universo de ambos. Os encontros, para Clarice, possuíam um único e claro objetivo: colher informações sobre o caso Buffalo Bill. Para Hannibal, a presença da detetive significava uma rotina já vivenciada por ele inúmeras vezes antes, repleta de interrogatórios, questionários e entrevistas. As percepções individuais de cada um dos polos envolvidos na relação, no caso, Hannibal e Clarice, refletem a história de vida de cada um, ou seja, seus modos de existir, o ser-no-mundo.

Para a fenomenologia existencial, o ser-no-mundo reflete a maneira de existir de cada ser humano, baseada em suas vivências e percepções (TEIXEIRA, 1997). As formas de existir estão atreladas a três tipos de relações: o homem com o meio que o cerca, o homem com o outro e o homem consigo mesmo. Trazendo para o contexto do filme, Clarice e Hannibal, com a soma de suas vivências individuais e suas vivências sociais com seus respectivos meios, se encontram na dimensão da relação eu-outro, construindo assim um vínculo inicial que se desenrolará ao longo da trama.

Conforme Teixeira (1997), o ser-no-mundo torna-se patológico quando as relações do indivíduo são infrutíferas no âmbito pessoal, ou seja, quando o ser é incapaz de adentrar seu mundo interno e estabelecer conexões saudáveis consigo mesmo. Partindo desse ponto, o indivíduo também seria incapaz de manter boas relações nas outras esferas (eu-outro e eu-meio). Essa dinâmica é observada em Hannibal, cujas atitudes e vivências no mundo foram conduzidas de modo a trazer sofrimento ao outro e satisfazer o próprio desejo.

Fonte: https://bit.ly/2HwMSjq

A incapacidade do indivíduo de tecer uma reflexão sobre as próprias atitudes ao relacionar-se consigo mesmo levaria à incapacidade desse mesmo indivíduo de se relacionar com o meio e com outras pessoas. Dessa forma, o primeiro encontro entre os dois personagens é permeado pelo fenômeno patológico de Hannibal, que se manifesta na relação através de comentários irônicos, sarcásticos e até mesmo ameaças contra a detetive. Essa dinâmica de relação pouco a pouco sofre alterações. De encontro a encontro, Clarice e Hannibal fortalecem o vínculo e passam a enxergar além dos rótulos de detetive e assassino para enxergarem a essência de cada um, o ser-no-mundo como ele é. Para isso, um elemento mostra-se indispensável.

De acordo com Silva (2013), o diálogo é a base para que a relação eu-outro seja construída e se desenvolva de maneira saudável. Sem a presença de uma relação dialógica, a dimensão eu-outro é ineficaz e não gera frutos. Como observado no filme, os diálogos entre Hannibal e Clarice, apesar de serem poucos e acontecerem em curtos períodos de tempo, servem como uma ponte entre o muro que os separa. A aproximação entre os dois personagens atinge o ápice quando o psiquiatra pede que a jovem conte sobre sua infância e seus traumas – dessa maneira, o rótulo “detetive” é substituído pela pessoa Clarice, e o foco da relação acontece no encontro entre duas pessoas, muito além do significado social da existência de ambos.

Feijoo e Mattar (2014) atentam para os preceitos filosóficos da fenomenologia de Sartre. Entre eles, as autoras citam um aspecto que norteia a visão fenomenológica como um todo: a importância de ver as coisas como elas são, para além da objetividade e subjetividade. O objeto, para a fenomenologia, deve ser apreendido pelo ser da maneira mais pura e reduzida possível, ou seja, sem um viés objetivo e prático e muito menos emocional, subjetivo ou individual. Enxergar o mundo dessa forma significa, em outras palavras, enxergá-lo como ele acontece – sem ideias pré-concebidas, sem o peso de uma análise. Em O Silêncio dos Inocentes, tanto Hannibal quanto Clarice sentem-se desafiados e até mesmo intimidados pela presença um do outro, e apreendem a realidade da relação entre eles de um modo carregado de análises, percepções e hipóteses.

A redução fenomenológica (epoché), ou seja, o ato de reduzir o fenômeno ao modo como ele acontece, puro e simplesmente, apresenta-se como um desafio durante a trama. O distanciamento evidente entre Hannibal e Clarice dificulta que a relação seja construída desprovida de estigmatizações e hipóteses. Entretanto, uma aproximação acontece entre os dois, ainda que tímida e com restrições, e nela o vínculo é formado. A curiosidade de Hannibal em conhecer a individualidade da jovem, mesmo servindo como uma forma de colher material para análise, o aproxima da essência de Clarice. Há, então, uma tentativa de chegar ao núcleo desse objeto (o outro), atravessando as inúmeras barreiras sociais entre os dois, a cela real e simbólica que os divide. É possível dizer que, após esse nível de percepção ter sido alcançado, Hannibal passa a enxergar Clarice como uma pessoa, humanizando-a. A relação do psiquiatra com o outro é baseada na desumanização.

Fonte: https://bit.ly/2u8Vl4m

Dessa forma, cria-se um distanciamento entre a sua pessoa e a pessoa da vítima, que é tratada por ele como um pedaço de carne, literalmente. Deve-se ao vínculo formado entre ele e Clarice e pela relação embasada no diálogo e na vivência real, sem interferência de elementos externos, o fato da jovem não se tornar um dos seus alvos no final do filme. A própria tem certeza de que não será perseguida pelo psiquiatra quando este consegue fugir.

Outro fenômeno relevante presente na trama, já mencionado anteriormente, é o modo como as vivências passadas de Clarice afetam seu aqui e agora. Barco (2012) conceitua o fenômeno da presentificação ou presentação como o ato de direcionar a consciência para o momento presente, agindo sobre o agora, ainda que os meios para chegar a esse estado sejam pela imaginação ou fantasia. Atrelada aos traumas de seu passado, é possível inferir, ainda que esse não seja o propósito de uma abordagem fenomenológica, que a detetive age no presente guiada por experiências de seu passado, como a morte do pai (por um assaltante) e seu insucesso em salvar as ovelhas que teriam as peles retiradas. Ambos os eventos podem estar diretamente relacionados com o contexto de sua vida adulta: sua atuação no FBI, guiada por um senso de justiça possivelmente despertado logo após a morte do pai e também dos animais, e sua atuação no caso Buffalo Bill, onde as vítimas tinham o mesmo propósito das ovelhas. A solução de seus conflitos do passado é presentificada e vivida na cena que conclui o caso, quando a detetive atira e mata o serial killer, fazendo justiça pelas vítimas e, em analogia, pelas ovelhas e seu pai.

Sem dúvidas, há uma complexidade de relações intra e interpessoais que são trabalhadas em O Silêncio dos Inocentes, e são inúmeras as possibilidades de interpretação dos personagens e eventos da trama. A aproximação de Hannibal e Clarice, inusitada pela diferença de valores e preceitos de cada um, convida o espectador a refletir.

O filme evidencia que, por mais diferentes que sejam os indivíduos, um encontro é possível – e a relação sempre terá como resultado um produto capaz de tocar a essência de cada sujeito que esteja em interação. Ser-no-mundo é individual e intrapessoal. Ser-com é um convite para o encontro, para o estabelecimento de relações interpessoais. E as duas maneiras de existir se completam para formar um produto que é dotado de possibilidades: o ser humano, com seus fenômenos e complexidades, capaz de transformar e de ser transformado.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Fonte: https://bit.ly/2TFfTR0

O SILÊNCIO DOS INOCENTES

Título original: The Silence of the Lambs
Direção: Jonathan Demme
Elenco: Jodie Foster, Anthony Hopkins,  Ted Levine,  Scott Glenn;
País: EUA
Ano: 1991
Gênero: Suspense; Terror

REFERÊNCIAS:

BARCO, Aron Pilotto. A constituição do espaço na
fenomenologia de Husserl
.
109 f. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2012.

FEIJOO, Ana Maria; MATTAR, Cristine Monteiro. A Fenomenologia como Método de Investigação nas Filosofias da Existência e na Psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa; Out-Dez 2014, Vol. 30, n. 4, pg. 441-447.

SILVA, Edna Maria. O ser na relação com o outro. Revista de Psicologia, Edição I. pg. 123-124, 2013.

TEIXEIRA, José A. Carvalho. Introdução às abordagens fenomenológica e existencial em psicopatologia (II): as abordagens existenciais. Análise Psicológica, 2 (XV). pg 195-205. 1997.

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‘Um simples favor’ e a representação da psicopatia

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‘Um simples favor’ é uma ótima produção cinematográfica para quem quer conhecer até que ponto um psicopata pode chegar para obter aquilo que deseja.

Fonte: encurtador.com.br/bgPQY

Um simples favor é um filme de 2018, dirigido por Paul Feig, interpretado por Blake Lively e Ana Kendrick. O drama conta a estória de duas mulheres e uma amizade que esconde vários segredos.

O que você diria se uma amiga sua lhe pedisse para buscar o filho na escola para cuidar por algumas horas? Esse pedido é consideravelmente simples, e provavelmente você não veria problema algum em atendê-lo. Foi nesse contexto que Stephanie e Emily se tornaram amigas.

Emily Nelson é uma mulher que não passa despercebida em lugar algum. Ela ocupa um cargo de alto nível para uma grande empresa, sendo rica e bem-sucedida. Casada com Sean e mãe de Nicky, residente numa casa fantástica, ela não teria do que se queixar (em tese). Já Sthephanie é a típica mãe adorada pelo sistema patriarcal. Possui altas habilidades culinárias, além de ser muito boa em cuidar da casa e de seu filho Miles. Ela é viúva, tendo seu marido ceifado por um acidente de carro.

Mas por que descrever as duas personagens principais nessa configuração? É interessante perceber como o filme traz uma mensagem de antagonismo entre as duas mães, mesmo que esse não seja um dos principais focos do enredo. Sthephanie e Emily possuem maneiras de ser mulher totalmente diferentes, no entanto, veem uma na outra um exemplo a ser conquistado.

Fonte: encurtador.com.br/iETZ4

É possível também observar como o longa trata essas diferentes formas de ser, de maneira natural e sem julgo, retratando assim a possibilidade de ser mãe e/ou mulher, para além da forma tradicional adotada como certa pela sociedade patriarcal.

A amizade construída entre Emily e Sthephanie se deu de maneira muito rápida, e a partir disso, Sthephanie passou a cuidar regularmente de Nicky, sempre que sua amiga precisava. Em um dia desses comuns, Sthephanie busca os meninos na escola e cuida do filho de Emily enquanto ela retorna do trabalho, no entanto, ela não voltou nunca mais.

Quatro dias se passaram e ninguém tem notícias do paradeiro de Emily. Então a polícia foi acionada e cartazes com sua foto foram espalhados pela cidade, na tentativa de encontrá-la. E ela é encontrada, mas já sem vida, no fundo de um lago. Com esse desfecho, a vida dos envolvidos muda totalmente. Sean e Sthephanie decidem ficar juntos como um casal, cuidando de Miles e Nicky. Assim, Emily é enterrada para sempre da história de todos.

Porém, o ditado popular “Quem é vivo sempre aparece!” se faz real na trama. Emily passa a realizar aparições para Nick, fazendo dele seu mensageiro para a nova família que foi construída. E é aqui, que Sthephanie se questiona se realmente a amizade que havia entre elas tinha sido real ou se de fato ela não conhecia verdadeiramente quem era Emily Nelson.

Emily representa uma personagem com traços de psicopatia. Mas isso você só descobre no clímax da trama, e os detalhes deixarei para você leitor conferir com seus próprios olhos. Entretanto, uma breve história de como Emily se constituiu como indivíduo será retratada aqui.

Fonte: encurtador.com.br/avIPR

Emily nasceu de uma gestação de três bebês, uma delas faleceu, sobrevivendo ela e sua irmã gêmea. Quando adolescentes tiveram a criação de um pai muito agressivo e protetor, a ponto de não deixar que elas frequentassem sozinhas os lugares, buscando-as a força quando isso acontecia e agredindo-as fisicamente de forma brutal. Tal acontecimento pode ter sido fator influente no desenvolvimento da psicopatia em Emily (GOMES e ALMEIDA, 2010).

Certo dia as irmãs atearam fogo na casa onde o pai estava, matando-o, e depois fugindo de casa. Desse dia em diante, elas passaram a se esconder da polícia assumindo diferentes identidades e tomando caminhos opostos.

A irmã bem-sucedida que é a nossa protagonista, não chegou aonde chegou através de métodos convencionais de se relacionar, mas sim, usando de grande manipulação e mentiras, performadas do modo mais natural e eficaz possível. De acordo com Gomes e Almeida (2010, pág.14) “após se concretizar, a psicopatia se torna um fator de risco: podem ocorrer atos infracionais, pois os indivíduos acometidos por este transtorno têm maior facilidade em utilizar charme, manipulação, mentira, violência e intimidação para controlar as pessoas e alcançar seus objetivos (APA, 2002; RICHELL ET AL., 2003; VALMIR, 1998).”

As características presentes num psicopata se encaixam perfeitamente no modo de ser de Emily Nelson. Tais características de acordo com Cleckley (1998) apud Gomes e Almeida (2010, pág.14) são: “(…) charme superficial, boa inteligência, ausência de delírios e de outros sinais de pensamento irracional, ausência de nervosismo e de manifestações psiconeuróticas, falta de confiabilidade, deslealdade ou falta de sinceridade, falta de remorso ou pudor e tentativas de suicídio. Comportamento antissocial inadequadamente motivado, capacidades de insight, julgamento fraco, incapacidade de aprender com a experiência, egocentrismo patológico, incapacidade de sentir amor ou afeição, vida sexual impessoal ou pobremente integrada e incapacidade de seguir algum plano de vida (…) escassez de relações afetivas importantes, comportamento inconveniente ou extravagante após a ingestão de bebidas alcoólicas, ou mesmo sem o uso destas, e insensibilidade geral a relacionamentos.”

Fonte: encurtador.com.br/HINTW

Como dito anteriormente, Emily não era uma mulher que passava despercebida, visto que era dona de um charme estonteante e uma presença e segurança de si admiráveis. Além disso, a protagonista é expert em contar mentiras para manipular as pessoas e as situações ao seu favor. Esse comportamento é reproduzido durante todo o filme, fazendo com que até mesmo o telespectador que está vendo a trama de fora, duvide se o que ela diz é verdade ou mentira.

Para Gomes e Almeida (2010) o indivíduo psicopata é um ator da vida real que possui a habilidade de conquistar o que quiser se aproveitando dos pontos fracos humanos. Um exemplo a ser citado, é a cena em que ela diz à Sthephanie que a considera sua melhor amiga alegando nunca ter se aproximado tanto de alguém, contudo, na cena seguinte, ela tenta matá-la a tiros.

‘Um simples favor’ é uma ótima produção cinematográfica para quem quer conhecer até que ponto um psicopata pode chegar para obter aquilo que deseja. Ainda acrescento que a atriz Blake Lively faz uma interpretação digna de aplausos, provocando no telespectador amor e ódio por sua personagem, despertando o típico sentimento que as pessoas com as quais o psicopata interage sentem.

FICHA TÉCNICA

 UM PEQUENO FAVOR

Titulo Original: A Simple Favor 
Direção: Paul Feig
Elenco: 
Anna Kendrick,Blake Lively,Henry Golding
Gênero: 
Suspense,Policial
Ano:
2018
País: EUA

REFERÊNCIA:

GOMES, Cema Cardona; ALMEIDA, Rosa Maria Martins de. Psicopatia em homens e mulheres. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio Grande do Sul, v. 62, n. 1, p.13-21, fev. 2010. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v62n1/v62n1a03.pdf>. Acesso em: 18 dez. 2018.

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Ser ou não ser psicopata, qual o remédio?

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A personalidade dos grandes homens faz-se das suas incompreensões.

ANDRÉ GIDÉ

Cheguei com o livro Psicopatas do Cotidiano a casa da minha avó, um lugar bem tranquilo nos fins de semana, para conversar um pouco com ela e, após o café com cuscuz, ler um pouco. Além dos seus setenta anos, mas curiosa como uma criança de cinco, logo perguntou do que se tratava aquele livro. Capa dourada e com um espelho no lugar do rosto de um homem, era mesmo de chamar a atenção. Respondi que era um livro da área de psicologia, com o intuito de mostrar características específicas que algumas pessoas possuem e que podem ser prejudiciais a elas e àqueles que a cercam.  Ela sorriu, disse que tinha um livro assim também. Levantou da cadeira, adentrou seu quarto, ouvi o barulho do guarda-roupa sendo aberto, revirou, fechou e surgiu sorridente com seu “guia”. Em suas mãos estava o Horóscopo 2016. Folheando, disse que aquele livro já tinha “avisado” ela sobre muitas pessoas e, com o adicional, ajudava a escolher os melhores dias para comprar, vender ou viajar. Sem graça, respondi que não era a mesma coisa, que o meu livro era baseado em pesquisas e o dela em superstição. Com a sabedoria da idade, não se ofendeu, mas me desafiou, pediu para ler alguma coisa que parecesse interessante e científico para ela. Sem pensar muito, abri no capítulo que falava dos obsessivos-compulsivos, como são apegados a regras, com tendências a inflexibilidade e comportamento rígido e teimoso. Do nada, ela falou alto: VIRGEM! Fiquei sem entender… vendo minha cara de tonto, ela esclareceu que aquelas características eram “sem tirar e nem por” de virginianos, signo considerado muito organizado, beirando a chatice. “Veja o caso do seu tio João, só vive para trabalhar e ir à igreja. E junto tem que ir a família.” Fiquei refletindo, tio João realmente tinha traços de personalidade obsessivo-compulsivo. Bufei. Não satisfeito pulei para outro capítulo. Narcisistas – conhecidos por sua busca por atenção, o que pode, às vezes, levar a arrogância e insolência. LEÃO! Bradou inesperadamente. “Lembra do teu primo Leandro, aquele metido, só porque fez medicina acha que é melhor que os outros.” Suspirei, as lembranças que tinha do primo não me deixavam negar, ele era um tremendo narcisista. Não querendo mais jogar com o acaso, apelei ao índice, decidido a escolher a psicopatia mais moderna e estranha que tivesse ali, nada que levasse a personalidades que minha vó poderia conhecer com sua experiência. “Ouve esse, vó. Bordeline”. Nome estrangeiro, pronúncia difícil. Citei as características: não se ajusta as normas sociais, incapacidade de planejar o futuro, descaso com a própria segurança e… ÁRIES! Disse animada, como se estivesse em um bingo. “Lembra daquele teu amigo, Zezinho? Era sábado e domingo bebendo, sempre com uma namoradinha diferente. Falava que ia ganhar muito dinheiro com um novo negócio, mas só sabia gastar o dinheiro do pai.” Fiquei olhando para o rosto da minha vó, satisfeito na sua sabedoria, e tinha que concordar – José era um borderline nato. Deixei o meu livro sobre a mesa e, humildemente, pedi que ela me emprestasse o dela. Esperta, passou o seu tesouro para mim e complementou “O melhor é que todo ano sai uma edição atualizada.”

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A pequena crônica acima serve para reflexão sobre o livro da psiquiatra Katia Mecler, Psicopatas do Cotidiano (Ed. Leya, 2015) que procura caracterizar, com uma linguagem acessível, transtornos de personalidades normatizados pela Classificação Internacional de Doenças (CID-10) e no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). Assim temos dez transtornos – esquizóide, esquizotípico, paranóide, antissocial, borderline, histriônico, narcisista, dependente, evitativo e obsessivo-compulsivo. – divididos em três grupos distintos – os “excêntrico-esquisitos”, os “dramáticos-emocionais-volúveis” e os “ansiosos-temerosos”.

Classificar é uma característica da espécie humana. Fazemos isso com tudo que permeia nosso ambiente, de plantas, pedras a nuvens. Nomear traz segurança, passamos a entender os “sinais” que determinado ambiente emite para que o ser humano melhor usufrua dele, em miúdos, criamos uma sensação de controle. E é assim também com a nossa espécie. O primeiro a fazer tal tentativa foi Hipócrates, na Grécia Antiga, que caracterizava o homem em quatro tipos: sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico. Já no século XXI, há várias formas de classificação e estas dependerão da proposta a que é direcionada, seja para descobrir talentos, líderes ou transtornos.

Transtornos de personalidade, segundo Mecler (2015, p. 55), são perturbações mentais, caracterizadas por uma alteração no desenvolvimento da personalidade, decorrente de falhas na estruturação do caráter. Para a autora, a personalidade seria a junção de duas características:

(…) a interação entre dois componentes: o temperamento e o caráter. O temperamento é herdado geneticamente e regulado biologicamente. Já o caráter está ligado à relação do temperamento com tudo o que vivenciamos e aprendemos na relação com o mundo (MECLER, 2015, p. 24).

Assim, se a personalidade é o que define o homem, qual o parâmetro utilizado para identificar os transtornos sem buscar uma massificação ou eliminação do que distinguiria uma pessoa de outra? Simples, a própria sociedade. A autora, no decorrer do livro, demonstra que cada transtorno tem sua época para classificá-lo de maneira positiva ou negativa – vide a cultura narcisista atual em comparação com os evitativos do século XIX. Ou seja, podemos nos achar únicos, mas a realidade é que nos adequamos socialmente. A máxima “nasceu na época errada”, tem seu fundo de verdade

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Outro fator preponderante para levar a identificação, classificação e tratamento de tais psicopatias é a necessidade do mercado em manter uma população apta para produção e consumo, como esclarece Miguel Chalub no prefácio do livro:

Na Idade Média eram considerados no máximo como marginais (à margem da sociedade): vagabundos, prostitutas, bandoleiros, mendigos e outros, mas não “doentes”. Agora, no entanto, era preciso que entrassem na ordem de produção. O capitalismo, em especial o industrial, não tolera aqueles que não produzem (2015, apud MECLER, p. 12).

Com esse pensamento, transformamos, teoricamente, grupos de marginalizados em potenciais consumidores (usuários de remédios e práticas terapêuticas) e, também, produtores (enquanto medicados, aceitos socialmente). Imagina internar, no antigo modelo psiquiátrico, todos aqueles diagnosticados com transtorno de personalidade antissocial ou narcisista?! Esvaziaríamos o Congresso Nacional e o Facebook.

Mecler, durante todo o livro, faz ressalvas aos leitores quanto aos julgamentos que possam ser tomados ao passar os olhos por cada transtorno.

Quando o excesso de rigidez e a repetição de aspectos comportamentais, a partir da adolescência, assumem um padrão negativo, que causa prejuízos diversos nas relações interpessoais, podemos ter o indicativo de um traço patológico de personalidade (MECLER, 2015, p. 247).

Como o ditado popular avisa que de médico e louco, todos temos um pouco, a advertência é clara para não termos leigos (possivelmente com traços encontrados no livro) diagnosticando parentes, amigos e colegas de trabalho. Até porque a própria Associação Americana de Psiquiatria tem suas ressalvas

Tanto o DSM-5 quanto a CID-10 não consideram uma condição médica (as psicopatias). Apesar de muito debate, a hipótese mais aceita hoje é de que se trata de um transtorno grave de personalidade antissocial (Idem, 2015, p. 58).

Com ressalvas até para os profissionais da área, é necessário atenção e cuidado com o conteúdo do livro – ótima introdução para futuros psicólogos e psiquiatras – e visto como conteúdo para conversas com os amigos ou para aqueles que, após um diagnostico correto, queira conhecer mais sobre o transtorno que alguém ou o próprio esteja passando. Até porque será mais tolerável alguém lhe apontar o dedo e dizer, “típico de um leonino” do que um apocalíptico “procura um tratamento, você está com traços narcisistas”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A crítica, talvez insustentável na sua forma, mas não ao seu conteúdo, está para a praticidade do título, sutileza publicitária de um livro de receitas (Psicopatas do cotidiano: como reconhecer, como conviver, como se proteger). Trata-se de um exagero ou uma simples brincadeira, porque quando o leitor olha para a capa, se depara com a própria face a encará-lo.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

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PSICOPATAS DO COTIDIANO : COMO RECONHECER, COMO CONVIVER, COMO SE PROTEGER

Autor: Katia Mecler
Editora: Leya
Ano: 2015

Lista de figuras:

Figura 1-http://www.updateordie.com/wp-content/uploads/2015/07/1Toilet-Paper-Roll-Masks-by-Junior-Fritz-Jacquet-990×7391.jpg

Figura 2-http://2.bp.blogspot.com/-tHHh4x3RBsI/U-1wgcbwuGI/AAAAAAAAADo/B1OKM8yhrlY/s1600/faces.jpg

Figura 3-https://ominutodosaber.files.wordpress.com/2011/08/varias-faces.jpg

Figura 4-http://necesitodetodos.org/wp-content/uploads/2013/02/mascaras-personalidad-enga%C3%B1o.jpg

Figura 5-http://www.leblogdefanaworld.fr/wp-content/uploads/2013/09/i-robot-wallpaper.jpg

Figura 6-http://f.i.uol.com.br/livraria/capas/images/15238233.jpeg

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O quiproquó de Hannibal Lecter em “O Silêncio dos Inocentes”

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“Você me diz o que quero saber
e eu digo a você o que quer saber”

Hannibal Lecter

 

O personagem Hannibal Lecter, criado por James Harris já apareceu numa série de livros do escritor norte-americano, a saber: Domingo Negro (1975), Dragão Vermelho (1981), O Silêncio dos Inocentes (1988), Hannibal (1999) e Hannibal, A Origem do Mal (2006). Nesta plêiade de romances, acompanhamos a construção, desenvolvimento e desdobramentos da complexa e imensurável argúcia e sapiência da mente do médico e psiquiatra lituânio, naturalizado estadunidense, que também tem como principal característica seu insano gosto pela antropofagia, de preferência dos seus próprios pacientes que não apresentam melhoria ao longo das sessões de tratamento.

Neste texto será feita uma forma de análise dualística, pois, poucas vezes, com felicidade rara, a obra fílmica e literária, dialogaram tanto uma com a outra em seus conteúdos, enredos, personagens e ambientes com harmonia, autonomias particulares e respeito mútuo. Portanto, vez ou outra serão trazidos à tona tanto elementos do filme dirigido por Jonathan Demme em 1991, como a obra original homônima lançada por Thomas Harris em 1988.

Jodie Foster e Anthony Hopkins arrebataram ambos os prêmios de melhor atriz e melhor ator, na premiação do Oscar de 1992, por suas atuações como Clarice Starling e Hannibal Lecter respectivamente na adaptação de Harris, e outras premiações divididas em categorias como melhor direção, melhor filme estrangeiro, adaptação de roteiro, mixagem de som, trilha sonora, edição, dentre outros.

No filme Lecter aparece por meros 18 minutos, num total de quase duas horas de projeção, e, do mesmo modo, no livro menos de uma dezena dos sessenta e um capítulos são dedicados ao doutor canibal. Esta característica da exposição da personagem central, do romance e do suspense, mostra de maneira explícita a capacidade possuída por Lecter de prender tanto o leitor como o espectador em seus olhares, trejeitos, falas, manifestações e interações com os demais integrantes da trama.

Por outro lado, no que diz respeito à Clarice Starling, o seu cotidiano, emoções, reações, pensamentos, reações e situações também são mostradas aos poucos, principalmente no romance. A exposição dos pensamentos, muitas vezes em reações de indecisão, contrariedade ou insegurança, é passada com friso por Harris, e, infelizmente, no filme por haver uma clara diferença na representação etária da estagiária do FBI por Foster, estes elementos, que fortalecem o enredo do livro, acabam se perdendo, mas sem um prejuízo considerável a despeito da força das imagens alcançado por Demme.

A personagem que mais sofreu alteração na comparativa entre o filme e o livro foi Jack Crawford, já que na referência fílmica possui um ar muito mais amigável e aprazível que o cinzento, introspectivo e metódico original de Harris. Mas, este detalhe não diminui a relevância e originalidade da versão fílmica da estória, pelo contrário, contribui para individualizá-la ainda mais, mesmo perante sua fonte inspiradora, no romance de James Harris.

Imago Oximóron

Vemos em Clarice a herança de personagens femininas que quebraram barreiras no cinema de grande porte, em searas como o suspense, terror, aventura e ação, como Ellen Ripley (da tetralogia Alien, interpretada por Sigourney Weaver), Sarah Hardin (The Lost World, 1995 de Michael Crichton) e Amelia Donaghy em The Bone Collector de Jeffery Deaver. Em todas estas histórias a protagonista feminina precisa enfrentar desafios inconcebíveis, colocando-a em ampla situação de enfrentamento com suas limitações, medos e perspectivas de superação para tais desafios de tão grande alcance, sempre com uma representação, de alguma maneira, figurativa à um monstro ou algo desta natureza.

Em dado momento, num dos raros e profundos diálogos com o Dr. Lecter, Clarice Starling tenta perfilar as características do assassinode jovens mulheres conhecido como Bufallo Bill, já que esta foi a missão delegada à ela pelo seu superior Jack Crawford. E, mesmo sabendo de muito mais informações do que aquelas selecionadas em transparecer ao FBI, Lecter entrega pistas para Starling, a fim de que esta consiga chegar ao feitor dos esfolamentos e feminicídio sozinha.

A metáfora utilizada por Lecter para definir Bill se dá pelo termo imago, comum à psicanálise e depreciada pelo doutor, mas de muita utilidade na compreensão do que é ou do porque do comportamento tão peculiar de Buffalo Bill. Conforme segue, nas palavras do próprio Dr. Lecter à Starling, imago: “É um termo da falecida religião da psicanálise. Imago é uma imagem dos pais enterrada no inconsciente desde a infância e cercada de infantil afeto. A palavra vem das imagens de seus ancestrais feitas de cera que os romanos antigos carregavam em procissões fúnebres” (Dr. Lecter, 1989, p. 144).

E, no auge de sua atitude ministerial, o Dr. Lecter não se mostra muito afeito a explicar para a recruta os detalhes a que esta não consegue alcançar, ou desmembrar, exibindo parte de sua arrogância e prepotência perante tais atitudes, inevitavelmente imaturas, de Starling: “Quando você mostra essa estranha inteligência contextual, eu perdoo sua geração por não saber ler, Clarice. O Imperador aconselha a simplicidade. Princípios primários. Sobre cada coisa particular pergunte: o que ela é em si mesma, em sua própria constituição? Qual é sua natureza casual?” (Dr. Lecter, 1989, 150).

Em relação ao termo oximoro, este não aparece em ambas as obras, mas pode ser modulado como complementação ao de imago. O verbete oximoro vem do grego ?ξ?μωρον e significa algo que, em si, abarca um paradoxo em manifestação e definição – o clássico soneto sobre o amor de Luís Vaz de Camões é o melhor exemplo de oximoro em língua portuguesa. O encaixe de tal expressão se relaciona com a de imago, como sugerida pelo Dr. Lecter, pelo fato do assassino transexual Buffalo Bill desejar ser aquilo que não pode, ou seja, uma mulher (vide a cena em que encarna este desejo ao som de Goodbye Horses em dado momento do filme), e, encontra na esfoladura de jovens mulheres uma sádica alternativa em realizar este desejo impossível, no processo de “costura” destas peles para se transformar naquilo que não conseguira ser, em nascimento ou maturidade: uma mulher.

Portanto, não é de se surpreender que o símbolo ao qual as obras fílmica e literária utilizam como remetente à Búfallo Bill seja a emblemática mariposa asiática também conhecida como cabeça da morte (Acherontia styx), por seu singular sinal em formato de caveira no dorso na fase adulta. Conforme explica Dr. Lecter, o calvário do feminicida se consuma em seu eterno estágio psicológico de pupa, rejeitando sua condição inicial, masculina, sem jamais poder chegar ao ponto que almeja e deseja em sua psicose, tornar-se uma mulher, como as jovens a quem caça impiedosamente.

O aprendiz profano de Delfos

Aníbal, o grande rei cartaginês, viveu em meados do século III a.c, sendo considerado um dos maiores déspotas e estrategistas militares da antiguidade. Não por coincidência este é o nome dado por Harris ao seu personagem principal, conferindo-lhe ainda mais vigor, supremacia, intimidação e poder. Na ficção proposta, o Dr. Lecter nasceu na Lituânia, vindo a se refugiar com seus pais na América, após os conflitos da segunda Grande Guerra, tanto por parte de pai, de origem báltica, como de mãe, de ascendência italiana, havia ascendência de famílias tradicionais, o que ajuda a reforçar em grande medida a pomba e trejeitos sofisticados – ao menos sem contar com suas práticas antropofágicas – do Dr. Lecter.

Por traz da personalidade monstruosa, da fala metálica e dos olhos vítreos de Hannibal Lecter se esconde uma mente, que, para além de sua loucura, possui um dos intelectos mais impressionantes da literatura e do cinema. Assim o fascínio causado pela inteligência do mais ilustre paciente do Hospital de Insanidade Criminal de Baltimore, possui sua justificativa, mesmo emanando o seu poder ao fitar as pessoas ao redor.

O Dr. Lecter se torna, portanto, objeto de estudo, curiosidade, pavor e admiração por todos que o cercam, até mesmo do FBI, que solicita sua ajuda em casos especiais, de difícil resolução, como a caçada à Bufallo Bill. Assim como na mitologia helênica, a residência do arauto é circundada de uma mística peculiar, aumentando ainda mais o símbolo por detrás do homem. Como exemplo a isto há as prosaicas descrições de Harris a respeito do covil de Lecter em suas sessões com Starling:

A cela do Dr. Lecter ficava bem separada das outras, de frente para um armário embutido, e era especial também sob outros aspectos. A parte da frente era composta por barras, mas por trás das barras, a uma distância maior que o alcance de um braço humano, havia uma segunda barreira, uma forte rede de náilon estendendo-se do chão ao teto e de parede a parede. […] Por um rápido momento teve a impressão de que o olhar dele produzia um zumbido, mas o que ela ouvia era a pulsação do seu próprio sangue (HARRIS, 1989, p. 20).

E, em outro momento são ressaltados outros aspectos, que juntos, singularizam ainda mais todos invólucros simbólicos da monstruosidade do psiquiatra, acrescendo a angústia para com aqueles dispostos defronte da cela que habita, exalando o poderio de sua intimidação muitas vezes sem ao menos mencionar uma palavra sequer: “Os cheiros da galeria dos presos violentos pareciam mais intensos na semi-escuridão, um aparelho de TV ligado sem som no corredor lançava a sombra de Starling nas barras da cela do Dr. Lecter” (HARRIS, 1989, p. 55).

Crawford é o interessado maior nas informações proféticas de Delfos, e como “oferenda” aos deuses escolhe o seu  mais astuto e valioso “cordeiro” corporificado na persona de Clarice Starling. O que o chefe de homicídios do FBI não esperava acontecer era o surgimento de uma inesperada e perigosíssima afinidade por parte do monstro oracular para com seu cordeiro, situação esta aprofundada no delongar da estória contada nos filmes e livros de James Harris.

E há, ora de modo explícito ora mais implícito, uma relação de mentor e aprendiz entre as dualidades da obra, seja entre Bufallo Bill e Hannibal Lecter, como Clarice Starling Jack Crawford, e, numa amplitude maior de interpretação, devido à jornada estabelecida, entre Starling, e Lecter, resultando em sua também transformação ao final dos eventos vividos pela recruta do FBI. Nas palavras do filósofo Friedrich Nietzsche em sua obra Além do Bem e do Mal aforismo 146: “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você” (NIETZSCHE, 2001, p. 79), pois é enfrentando um monstro e o abismo de sua condição nadificante que Clarice desvela suas próprias estruturas morais, éticas, o fosso abismático de seus medos, lembranças e mais profundos temores inefáveis, ou seja, a revelação do seu próprio monstro interior.

E também Hannibal utiliza o “?ν ο?δα ?τι ο?δ?ν ο?δα” (Só sei que nada sei), como estratégia inicial para extrair sempre os primeiros sinais, olhares, feições, estado de espírito, cheiro, movimentos, vestimentas, interações societais, e finalmente as palavras, para, enfim, adicionar suas próprias manifestações dialógicas em posição de domínio e condução perante aquele que se coloca em sua frente. Neste processo, Dr. Lecter finca em sua presa o auto-questionamento como primeiro ponto de partida para o diálogo, como um arauto da caverna de Delfos, esperando as próximas assertivas, para, a partir de então, prosseguir em seu intento de uma verdadeira “genealogia” psíquica, em direção do conhecimento de si. Por sinal, este é processo registrado no arco do livro/filme em relação à Clarice Starling, tendo como base suas “sessões” com o psiquiatra canibal.

Dentro de sua cela reforçada com barras especiais e uma espessa tela de vidro e náilon (com modificações entre o filme e o livro), o Dr. Lecter potencializa ainda mais a sua retórica, num exercício exímio e minucioso da maiêutica socrática, a partir da qual estabelece o ciclo do seu “quiproquó”, trocando informações pessoais do interlocutor com outras que ele mesmo possua, como, por exemplo, a respeito de outros criminosos, assassinos, casos não resolvidos pela polícia e que precisam da consultoria de um especialista no assunto, dentre outros.

O Dr. Lecter faz uso, em todos os encontros do método socrático, ou seja, por meio de sua hábil e inconfundível capacidade de articulação verbal induz Clarice a revelá-lo as contradições em sues dizeres e pensamentos. A partir destas exposições o psiquiatra consegue desvelar e analisar seu interlocutor, desnudando-o em seus valores e concepções, de modo a, ao final de tal processo, retirar uma conclusão possível no derradeiro momento, entregando-a também no formato de entredizeres e metáforas. E, como réplica a esta postura emerge o quiproquó, sugerido pelo Dr. e mantido por Starling, nos limites de suas habilidades retóricas frente à inibidora figura de Lecter.

O jogo de câmera e o trabalho de edição são impecáveis na representação destes momentos, fazendo com que o espectador sinta a profundidade do olhar Hopkins em sua personificação sobrenatural do antropófago, ao mesmo tempo em que Foster – que admitiu sentir um medo inicial de seu parceiro de cena nestas tomadas específicas – consegue passar a fragilidade, não física, mas psíquica de sua personagem todas as vezes em que se encontrava interagindo com Hannibal.

Logicamente, neste ciclo ao fundo do conhecer-se (“γνωθι σεαυτ?ν” do grego que significa conhece-te a ti mesmo) o detentor do estandarte da luz no mundo das penumbras – como na caverna platônica – não mede esforços, prejuízos ou sequelas naqueles que desejam seguir em frente na escolha da desconstrução construtiva, a qual Starling se submete no momento em que troca as primeiras palavras com Hannibal no hospício. E este caminho é trilhado por ela até o último momento, tanto na captura de Bill, na fuga de Lecter ou na resolução reticente da trama.

Mas, Hannibal Lecter saboreia sua habilidade retórica e dialógica, literalmente destruindo os embasamentos identitários de seus “pacientes” até o ponto em que estes rendem-se aos flagelos de sua psique esfarelada no sopé soberano do doutor, em seu deleite em oferecer seu mote refratário, seja pelo medo, respeito, desespero, asco ou pusilanimidade que fazem nascer em cada indivíduo que o desafia, enfrenta ou simplesmente aceita o pedido de troca casualístca de orações aparentemente sem sentido, mas, com andar e findar destinados ao seu encontro abismático.

A permanência do ruído

A força de Starling é suscitada como circunstancial tanto no filme como livro, e as situações pelas quais a protagonista perpassa em sua jornada evidenciam isto. Muitos são os momentos, por exemplo, em que a recruta do departamento de comportamento de polícia se vê cercada de homens, muitos dos quais com patentes superiores à sua, no FBI, como também a quantidade considerável de investidas sexuais que recebe, de igual modo, do sexo oposto. Interessante notar, que, em nenhum momento, tais atitudes são direcionadas à ela pelo Dr. Lecter, cabendo a este muito mais uma relação de angústia, temeridade e diálogo, durante todo o desenvolvimento da trama.

E também Crawford e Gumb (o Bufallo Bill), de maneira muito sagaz por parte do escritor e diretor das obras, não são postos como contraponto sexual de Starling, cabendo tal papel, e ainda de forma quase satírica à Frederick Chilton, diretor do hospital psiquiátrico visitado por Clarice, ridicularizado em diferentes momentos, seja por Starling, Crawford e pelo próprio Dr. Lecter.

Em todas estas situações Clarice se impõe seja dialogicamente ou fisicamente – como no momento que vai buscar as evidências de um assassinato num galpão abandonado, sozinha e sem reforços. E, de forma mais clara, os embates retóricos na relação Starling-Lecter emana ainda mais o poderio de enfretamento que a jovem policial possui, pois, em nenhum momento, recua, nega ou teme de suas obrigações e funções na caçada a Bufallo Bill e trato com Hannibal Lecter.

Agora, voltemos aos cordeiros, que dão título ao original inglês do livro e filme. Trata-se de uma mensagem representativa e interpretativa dos temores joviais de Starling, já que remetem a uma experiência em sua infância, ao tentar salvar os cordeiros em sua fatídica destinação na fazenda de seus tios. E os cordeiros aguardam a seleção e envio à morte com uma produção incessante de ruídos de horror, parecendo saber de seu desfecho.

A jovem Clarice iria ficar marcada por toda vida com tal cena, guardando para si a busca interior pela quietude dos inocentes, que nunca chegara, até o momento do encontro com a representação humana – ao menos para ela – do mal em si, ou nas palavras do próprio ente (Lecter) um mero acontecimento, pelos caprichos da causalidade possibilitando seu nascituro, mesmo sendo seu propósito retirar a vida alheia e saborear suas vísceras.

Ao se deparar com a encarnação do Nêmesis, segundo suas próprias palavras, Clarice Starling não apenas coloca em xeque sua estabilidade emocional e integridade física, num patamar superior ela alcança o questionamento sobre suas próprias bases existências, em abalos contínuos nas suas convicções, formação profissional e diretiva em sua relação incomum com o Dr. Lecter. Em suma, Starling obtém o vislumbre do nada, além do  bem e do mal, no imperativo da causalidade como desvelamento moral e ético na pseudo obrigação do propósito, finalidade ou teleologia:

Lecter – Nada aconteceu comigo, policial Starling. Eu aconteci. Você não pode reduzir-me a um jogo de influências. Vocês trocaram o bem e o mal pelo behaviorismo, policial Starling. Puseram todo mundo vestindo fraldas morais – nada mais é culpa de ninguém. Olhe para mim, policial Starling. Você pode afirmar que eu sou o mal? Eu sou o mal, policial Starling?
Starling – Penso que o senhor foi destrutivo. Para mim é a mesma coisa.
Lecter – O mal é, portanto, destrutivo? Então as tempestades são o mal, se tudo é tão simples. E temos o fogo, e temos o granizo. As companhias de seguro listam-nos todos como “Atos da Providência”.
Starling – A deliberação…
Lecter – Eu coleciono desabamentos de igrejas, por distração. Você viu o último, na Sicília? Maravilhoso! A fachada caiu sobre sessenta e cinco avós numa missa especial. Isso foi um mal? Se Ele está lá em cima, Ele adora isso, policial Starling. Febre tifoide e cisnes, ambos têm a mesma origem.
Starling – Eu não posso explicar-lhe, doutor, mas conheço alguém que pode.
Lecter – fê-la calar levantando a mão. A mão tinha um belo formato e o dedo repetia-se de um modo perfeito. Era a forma mais rara de polidactilia. (HARRIS, 1989, p. 26).

Este diálogo, presente no livro e, infelizmente não representado no filme, pode ser considerado uma das melhores passagens da obra de Harris. Nestas linhas vemos o posicionamento pueril de Starling, ao passo que Dr. Lecter expõe de maneira profunda como ele próprio se define, para além das superficiais tentativas de análises da jovem policial, ao tentar rotulá-lo em seus padrões morais, éticos e culturais, não admitindo, como sugere o próprio doutor, a não presença de um fundo de justificativa para suas motivações, ações e reações, estando todas estas fundadas para além do bem e do mal – ao menos no que se refere ao julgamento humano comum –, em uma consciência nadificante, refletida em si mesma no imperativo da causalidade para sua ocorrência.

No arrebol das obras cabe ao Dr. Lecter procurar mais uma vez sua mais recente pupila se esta tivera alcançado, enfim, a quietude dos cordeiros que assolava seu ser, seu sonhos e cotidiano diariamente. Afinal de contas, em seu quiproquó ambos haviam trocado informações sobre comportamentos, algumas informações de maior importância e, porque não, uma afinidade tão estranha a ambos como para os outros que os circundavam, seja no hospício ou em outros lugares nos quais a relação entre Starling e Lecter havia toma ciência.

Atualmente está em transmissão a série Hannibal pela emissora NBC, sendo o protagonista interpretado por Mads Dittmann Mikkelsen num exímio trabalho de acúmulo e aperfeiçoamento tanto do original no romance como das representações do psiquiatra canibal pela sétima arte.Ressalta-se que, no caso as série, o foco imagético está na exploração dos rituais, intimidade e atributos intelectuais do Dr. Lecter, ao mesmo tempo em que apresenta um apelo e apuro visuais muito bem trabalhados.

Há uma dialética do humano com o além-humano, na relação entre Starling e Lecter, pois, enquanto esta ainda, por vezes debilmente, procura ajustar-se aos preceitos morais, éticos e culturais que a cerca, por parte do antropófago nada há antes e nada haverá após a temporalidade de sua existência, não se apegando, embasando ou justificando sua entidade, seja na imanência ou transcendência, de modo a fundar-se no nada e na causalidade seu julgamento, independente da forma como a sociedade o veja, aceite ou rejeite, na constituição de um dos mais assustadores psicopatas, assassinos e penetrantes personagens já criados.

“I’ve seen the sky, just begin to fall
And you say, all things pass, into the night
And I say, oh no sir, I must say you’re wrong, I must disagree, oh no sir, I must say you’re wrong
Won’t you listen to me?
Good-bye horses, I’m flying over you”

“Goodbye Horses” (Q Lazzarus)

FICHA TÉCNICA

O SILÊNCIO DOS INOCENTES

Direção: Jonathan Demme
País de Origem: EUA
Antecessor: Red Dragon
Continuação: Hannibal
Música composta por: Howard Shore
Ano: 1991

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O Anjo Malvado – Psicopatia infantil?

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O Anjo Malvado foi lançado há 20 anos e sua temática atemporal mostra-se, tristemente, tão atual. O filme conta a história de Mark (Elijah Wood) e Henry (Macaulay Culkin), que iniciam uma convivência depois que ambos passam por tragédias familiares.

Cada personagem do filme parece viver sob múltiplas tensões, desde a resistência em sair da fase da negação do luto, até na distorção que fazem da realidade. O filme inicia-se com a morte da mãe de Mark e com a influência que suas últimas palavras tiveram na construção que seu filho fez do luto. A mãe disse que sempre estaria com ele, o que poderia ser uma metáfora do amor que os une, no entanto, devido aos momentos de stress que se seguiram à sua morte, Mark acreditou nas palavras de forma literal, assim fez uma projeção de sua mãe na mãe de Henry, com quem foi morar temporariamente em virtude do trabalho do pai.

A família de Henry vive sob a sombra de um acidente que matou um dos seus filhos (afogado na banheira), deixando a mãe com uma permanente sensação de culpa e dor. Aparentemente, os outros filhos do casal (uma menina de uns 8 anos e Henry) possuem uma rotina normal. Mas, o problema é justamente esse: quase tudo parece normal na superfície, mas há uma estranha sombra de horror ao se observar as ações que compõem o dia-a-dia de Henry.

“Se eu te soltar, acha que vai conseguir voar?”

A primeira experiência que Mark tem com a face mais obscura de Henry quase custou-lhe a vida. Em uma tentativa de subir na casa da árvore, ele fica a mercê de sua ajuda, pois sem isso muito possivelmente cairia de uma altura imensa e, pela reação de Henry, ele começou a se dar conta do seu estranho senso de humor.

Como eles passavam muito tempo juntos, Henry mostrou ao Mark muito de sua personalidade, aquelas nuances que os pais não enxergavam por não suportarem o peso do entendimento do que estava sob a superfície, ou por não prestarem atenção suficiente nos detalhes.

Mark foi percebendo, rapidamente, que Henry não suportava ser contrariado, que mínimas coisas poderiam trazer à tona uma forte irritação. O cão que latia foi um dos seus alvos. Ao mostrar uma arma que inventou ao primo e depois usá-la com a desculpa de assustar o cão, Henry, na verdade, apontou diretamente no animal e o matou. Esse fato provocou medo e horror em Mark. Um horror baseado na ausência de elementos que o fizessem entender as ações do primo. Ele não conseguia alcançar os motivos que levavam Henry a dar tão pouco valor à vida ou as consequências dos seus atos.

Segundo Hare (1998 apud DOLAN, 2004), a psicopatia é um transtorno de personalidade caracterizado por uma série de características afetivas, comportamentais e interpessoais.  As primeiras conceituações dessa patologia sugeriam se tratar de um fenômeno unidimensional, mas estudos posteriores revelaram que as medidas de psicopatia  envolvem múltiplos fatores. Mais recentemente, foi proposta uma estrutura de três fatores (COOKE & MICHIE, 2001 apud DOLAN, 2004), a saber:

1. Um estilo interpessoal enganador e arrogante, incluindo desinibição ou charme superficial, egocentrismo ou um senso grandioso de autoestima; mentira, trapaça, manipulação e enganação.

2. Experiência afetiva deficiente, com pouca capacidade de sentir remorso, culpa e empatia; uma consciência fraca, insensibilidade, afeto superficial e falha em aceitar responsabilidade pelas ações (utilizando-se de negação, desculpas etc.).

3. Um estilo de comportamento impulsivo ou irresponsável, incluindo tédio, busca contínua por emoção, falta de metas em longo prazo, impulsividade, falha em pensar antes de agir e um estilo de vida parasita (tais como, dívidas, hábitos de trabalho insatisfatórios).

O personagem do filme (Henry), apesar de ser uma criança, apresentava muitas dessas características. Fingia-se de ingênuo e querido, usava de sua inteligência e perspicácia para que os outros acreditassem nas verdades que ele criava. Fazia o mal sem um motivo aparente, provocava dor sem qualquer resquício de remorso (como os detalhes que contou do afogamento do irmão e pelas ações que fez que quase resultaram na morte da irmã). E tinha um comportamento impulsivo regido, muitas vezes, apenas pela necessidade de sair do tédio.

Por exemplo, Henry convenceu o primo a lhe ajudar a levar um boneco para uma ponte,  mas lhe escondeu que sua real intenção era provocar um acidente na estrada. Fez isso apenas por diversão. E a sequência dessa cena tem um dos diálogos mais perturbadores do filme:

Henry: Quando você percebe que pode fazer qualquer coisa, você é livre. Você pode voar. Ninguém pode te tocar. Ninguém. Não tenha medo de voar.
Mark: Você é doente.

Nesse ponto, Mark já não tinha dúvida da maldade que havia em Henry. Uma maldade que ele não compreendia, mas que estava latente, apesar de distante da percepção dos pais do menino. O stress de ter que proteger a prima, a projeção de sua mãe (representada pela mãe de Henry) e a si próprio desencadeou um transtorno em seu comportamento, o que fazia com que a sua palavra não significasse muita coisa, ainda mais tendo alguém como Henry para manipular tranquilamente os fatos. E Henry, aproveitando-se de sua insensibilidade afetivo-emocional, conseguia fazer com que as peças do tabuleiro estivessem sempre a favor de sua próxima jogada.

Em uma conversa com a terapeuta, Mark tentou entender que tipo de pessoa era Henry:

Mark: O que torna as pessoas más?
Terapeuta: Mau é uma palavra que as pessoas usam quando desistem de tentar entender alguém. Há uma razão para tudo, se nós pudermos procurar.
Mark: E se não houver uma razão? Se algo simplesmente é?
Terapeuta: Por que, Mark? Você se acha mau? Por que deixou sua mãe morrer? Você sabe que não é verdade.
Mark: E se houvesse um garoto e ele fizesse coisas terríveis porque ele gosta de fazer? Você não diria que ele é mau?
Terapeuta: Não acredito no mal.
Mark: Pois devia acreditar.

Atualmente, não há nenhum teste padrão para a avaliação de psicopatia em crianças, mas segundo uma matéria publicada no NY Times em 13/05/2012 (1), “um número crescente de psicólogos acredita que a psicopatia, como o autismo , é uma condição neurológica distinta – que pode ser identificada em crianças a partir dos 5 anos”.

A existência e a avaliação de psicopatia em crianças e adolescentes é uma questão controversa (EDENS et al , 2001 ; HART et al , 2002 ; SEAGRAVE & GRISSO, 2002 apud DOLAN, 2004). A principal preocupação reside na confiabilidade e validade das ferramentas de avaliação em curso, a adequação do desenvolvimento dessas medidas, a presença de dimensões distintas do construto da psicopatia e, principalmente, o impacto potencialmente negativo de rotular alguém com traços de psicopatia quando o indivíduo ainda nem atingiu a maturidade.

As principais preocupações sobre a avaliação de psicopatia em jovens (DOLAN, 2004):

  • O quão confiáveis são os traços psicopáticos precocemente identificados?
  • Há medidas apropriadas para a verificação do desenvolvimento de psicopatia para utilizar em crianças e adolescentes?
  • Qual é a prevalência de psicopatia na infância e adolescência?
  • Qual é a estabilidade do desenvolvimento da psicopatia ao longo da vida?
  • Qual é o impacto de atribuir um rótulo de psicopatia na infância e adolescência?

A hipótese de que o transtorno de personalidade e psicopatia pode ser diagnosticado na infância e adolescência já provocou acirrados debates na literatura. Alguns (por exemplo, FRICK, 2002; LYNAM, 2002 apud DOLAN, 2004 ) argumentam que, teoricamente, os traços de personalidade são relativamente estáveis em toda a adolescência até a idade adulta e que existem semelhanças notáveis entre a literatura sobre a psicopatia em adultos e os estudos apresentados sobre o mesmo tema em crianças e adolescentes. Outros (por exemplo SEAGRAVE & GRISSO, 2002 apud DOLAN, 2004) sugerem que a psicopatia como um construto tem uma alta taxa de falso-positivo na adolescência, pois este é o período de considerável mudança no desenvolvimento. Cleckley (1976 apud DOLAN, 2004) também observou que certos comportamentos transitórios que surgem na infância e na adolescência lembram traços psicopáticos, mas atenuam consideralmente depois de passada essa fase. Por exemplo, “os adolescentes são conhecidos por serem mais impulsivos e terem menos compreensão empática do que os adultos”, e se os testes não considerarem tal variável, um adolescente poderá ter uma pontuação elevada com relação a esse itens (falta de empatia e impulsividade).

No contexto do filme, as evidências da personalidade antissocial de Henry são presenciadas apenas por Mark, pois ele é uma variável passível de controle, ou seja, o primo pode manipular e criar um ambiente que negue qualquer “verdade” que ele possa tentar afirmar sobre sua natureza. A lógica da mente de Henry cria uma realidade baseada na total ausência de senso moral e ético, por isso é tão complexo tentar entender as variáveis que dão contorno e alicerçam sua personalidade. Para o menino, algumas pessoas atrapalham a construção do universo que ele imaginou, por exemplo, o irmão mais novo afastava-o da mãe, pois com a vinda dele já não era mais o centro da sua atenção. A liberdade absoluta que ele pensava ter dava-lhe o direito de agir conforme sua vontade, pois só os livres estão acima do bem e do mal. Para Henry, simplesmente, não havia o outro, já que não havia empatia.

Talvez o pior momento do filme seja quando a mãe começa a enxergar as patologias que envolvem a personalidade do seu filho. O entendimento de que aquela criança, que até então representava sua ideia de “bom filho”, era um ser tão insensível e malígno marca o início de uma espécie de morte. Por isso que qualquer avaliação que tenta atribuir um diagnóstico de algo tão complexo como a psicopatia requer, de fato, muita discussão e reflexão. Isso porque um diagnóstico desse, considerando o que se sabe até o momento dessa patologia, pode simplesmente refutar o direito a vida, ao menos, a vida em sua plenitude, os direitos que nos permitem ir e vir, ter ideais, sonhos e objetivos.

A ideia de que uma criança poderia ter tendências psicopatas permanece controverso entre os psicólogos. Para o desenvolvimento da matéria sobre Psicopatia para o NY Times (1), a jornalista Jennifer Kahn  ouviu alguns psicólogos sobre o assunto.  Laurence Steinberg, psicólogo da Universidade de Temple, argumentou que a psicopatia, assim como outros transtornos de personalidade, são quase impossíveis de serem diagnosticados com precisão em crianças, ou até mesmo em adolescentes. Para corroborar seu argumento, ele apresenta dois pontos: que, nessa fase, o cérebro ainda está em desenvolvimento e que o comportamento normal de crianças e adolescentes pode ser mal interpretado, dando margem a inferência errônea da psicopatia. Outros temem que, mesmo se tal diagnóstico pudesse ser realizado com precisão, o custo social de marcar uma criança como psicopata é muito alto, pois esse transtorno tem sido apresentado historicamente como algo que não é passível de um tratamento eficaz.  John Edens, um psicólogo clínico na Universidade  Texas A & M, alertou sobre o fato de que dificilmente haverá apoio financeiro em pesquisas que busquem identificar riscos de psicopatia em crianças. Ele observou que, diferentemente de outras patologias, como o autismo, dificilmente alguém se mostrará solidário com a mãe de um psicopata.

Já Mark Dadds, um psicólogo da Universidade de New South Wales, que estuda o comportamento antissocial em crianças, diz que ignorar as características que levam a tal diagnóstico pode ser pior. Segundo outros estudos recentes apresentados em (1), foi revelado que parece haver diferenças anatômicas significativas nos cérebros de crianças e adolescentes que tiveram uma alta pontuação no Inventário de Psicopatia de Hare Versão Jovens (FORTH et al, 2004), “uma indicação de que o traço de psicopatia pode ser inato”. Em outro estudo (apresentado em (1)), que acompanhou o desenvolvimento psicológico de 3.000 crianças durante um período de 25 anos, foi apresentado que os sinais de psicopatia podem ser detectados em crianças a partir dos 3 anos. Um número pequeno, mas crescente de psicólogos, “diz que enfrentar o problema antecipadamente pode apresentar uma oportunidade de ajudar essas crianças a mudar de rumo”. Pesquisadores esperam, por exemplo, que a capacidade para a empatia, que é controlada por partes específicas do cérebro, possa existir, mesmo que fracamente, em crianças com Insensibilidade afetivo-emocional, logo, tal aspecto poderia ser reforçado.

No filme, a mãe de Henry não tem tempo para compreender todas as nuances dessa patologia,  a única coisa que entende é que seu filho está doente. As duas crianças (Henry e Mark) são marcadas profundamente pela escolha que ela deve fazer ao final.  E, no filme, como em muitas situações cotidianas, muitas vezes não há uma escolha que seja isenta de um profundo sofrimento.

Observação: Transtorno de personalidade antissocial (TPAS) é a classificação nosográfica atual que mais se aproxima e que veio a substituir no DSM o transtorno de personalidade psicopática, este não mais incluso nas últimas edições do manual, embora os especialistas não considerem os dois diagnósticos equivalentes (DAVOGLIO et al, 2012).

Referências:

DAVOGLIO, Tárcia Rita; GAUER, Gabriel José Chittó; JAEGER, João Vitor  Haeberle  and  TOLOTTI, Marina Davoglio. Personalidade e psicopatia: implicações diagnósticas na infância e adolescência. Estud. psicol. (Natal) [online]. 2012, vol.17, n.3, pp. 453-460. ISSN 1413-294X.  http://dx.doi.org/10.1590/S1413-294X2012000300014

DOLAN, Mairead; Advances in Psychiatric Treatment (2004), vol. 10.  http://apt.rcpsych.org/

FORTH, A. E., KOSSON, D. S. & HARE R. D. (2004) The Hare Psychopathy Checklist: Youth Version (PCL–YV) – Rating Guide. Toronto, Ontario: Multi Health Systems.

(1) http://www.nytimes.com/2012/05/13/magazine/can-you-call-a-9-year-old-a-psychopath.html

FICHA TÉCNICA DO FILME:

O ANJO MALVADO

Título Original: The Good Son
Direção: Joseph Ruben
Elenco Principal: Macaulay Culkin, Elijah Wood, Wendy Crewson, David Morse
Ano: 1993

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