O psiquiatra, o psicólogo e o psicoterapeuta como barqueiros do inferno

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No filme “Amor além da vida”, de 1998, Chris (Robin Willliams) e sua esposa Annie (Annabella Sciorra) perdem os dois filhos em um acidente de carro. Annie, então, é internada em depressão grave. Chris passa a visitá-la regularmente, como se tentasse resgatá-la de um buraco sem fundo, de onde ela própria não tinha forças nem esperança para sair. O golpe final para Annie, quando já se recuperava, é a morte do marido num acidente quatro anos após a morte de seus filhos. Daí em diante o filme passa a ser contextualizado num universo extrafísico, apresentado como uma manifestação externa do ambiente intrapsíquico.

Portanto, o cenário em que Chris é recebido por um antigo amigo e mestre, Albert, parece pintado à tinta, como se estivessem dentro de um dos quadros que Annie pintava e Chris amava. “Este é o seu céu”, explica Albert. Quando descobre que Annie cometeu suicídio, Chris quer ir até ela de qualquer jeito e não há como impedi-lo. Albert leva-o à presença de um guia, alguém experiente e capaz de conduzi-lo ao estado de “inferno” psíquico em que Annie se encontrava, juntamente com outros de estado semelhante. Chris será guiado através de uma espécie de inferno de Dante pelo mundo que seria resultado de uma construção psíquica conjunta de seus “habitantes”. O velho e sinistro guia lhe diz: “Você teme o que? Perigo físico?” e adverte que todo perigo ali é – e obviamente só poderia ser – psíquico.

Fonte: encurtador.com.br/bfuG5

A viagem é norteada pela ligação mental entre Chris e Annie, mas é momentaneamente perturbada por uma lembrança de quando, ainda em vida, ele disse ao filho o quanto o admirava, “se eu tivesse que ir ao inferno, não ia querer outra companhia que não a sua”. Percebe então que Albert é na verdade seu filho, que diz ter escolhido aparecer como Albert para ele porque pensou que só assim seria ouvido. Os três atravessam grandiosos cenários de dor e aflição, onde corpos, rostos, seres pálidos se despencam, se amontoam soterrados ou afundam no chão ou na água. Chris pergunta ao guia o que ele fazia na sua vida. Ele responde: “Na última? Eu tinha um trabalho parecido com esse”. “Era psiquiatra” – conclui Chris.

Mostrando grande familiaridade com aqueles caminhos, o guia demonstra tensão e bom humor, como se conhecesse algum belo sentido secreto de tudo que se manifestava ali. Quando se aproximam no local em que estava Annie, uma versão retorcida e sombria da casa deles, espaço mental onde ela havia se sepultado em total alienação, o guia diz a Chris que ele só teria cerca de três minutos com ela antes de enlouquecer. Como enlouqueceria? “Quando a realidade dela se tornar a sua” (compreensão fundamental para todo aquele que comparece diante do sofrimento do outro). Segue-se o esforço se Chris de salvar Annie de seu inferno psíquico, como o fez em vida quando ela estava internada. E a resistência dela ao retorno a si e à consciência da dor.

Fonte: encurtador.com.br/nGJT0

Guia do ambiente psíquico em seus vários níveis subterrâneos, o profissional “da mente”, é navegante experimentado porque tem intimidade com sua própria escuridão, a ponto de perceber que essa não é outra que não a escuridão da humanidade. O mitologema do psicopompo faz referência a esse arquétipo que move o psicoterapeuta em geral, como aquele que transita entre os mundos, constituindo, portanto, seu elemento de ligação. Um representante mais explicito é o deus grego Hermes, responsável pela “condução das almas, uma atividade que se estende até mesmo além da vida”.

Fonte: encurtador.com.br/htuU6

Hermes é o próprio devir, “o espírito de uma configuração da existência que sempre retorna nas mais diversas condições”, neste mundo e no outro, pois não transita nos caminhos prontos marcados no chão, mas sim em caminhos outros, por onde passa pairando, volátil, pelos abismos de amores incríveis, ilhas e cavernas. Seu estado “é o de estar sempre em suspenso”. “Tudo ao redor se torna fantasmagórico-improvável para ele”, livre que está para percorrer todos os caminhos levando clareza e alinhavando os mundos. Assim Karl Kerényi (Arquétipos da religião grega) descreve esse mitologema, a quem Bolen (Os deuses e o homem), citando Murray Stein, chama “o deus das passagens significativas”, para evocar o mesmo papel para os psicoterapeutas, em seu caminho fora dos caminhos, além dos mundos, para guiar almas em liberdade de ir e vir entendendo em si próprio o jogo de luz e escuridão como o próprio e natural devir da existência.

FICHA TÉCNICA

AMOR ALÉM DA VIDA

Título Original: What Dreams May Come
Origem: EUA
Ano de produção: 1998
Gênero: Romance/Fantasia
Direção: Vincent Ward
Elenco: Robin Williams, Max von Sydow, Cuba Gooding Jr.

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CAOS: violência e sofrimento psíquico no trabalho é pauta no evento

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Participante de rede envolvendo pesquisadores, brasileiros e internacionais, sobre trabalho e a sua relação com a saúde na contemporaneidade, abordará o tema por meio da Psicodinâmica do Trabalho.

Violência e o sofrimento psíquico no trabalho é um dos temas tratados no Congresso Acadêmico de Saberes em Psicologia (CAOS), que acontecerá de 21 a 25 de agosto, no Ceulp/Ulbra. O assunto faz parte de um minicurso ministrado pela psicóloga Prof­ª. Dra. Liliam Deisy Ghizoni nos dias 21 e 22 de agosto.

O objetivo do minicurso é tratar o conceito de violência relacionada ao trabalho e suas consequências para o trabalhador na contemporaneidade. O aporte teórico para a abordagem no minicurso será o da Psicodinâmica do Trabalho. A metodologia a ser adotada será expositiva dialogada. Segundo Ghizoni, “os exemplos dos participantes são importantes de serem contextualizados teoricamente, para evitar repetições das manifestações de violência no ambiente de trabalho”.

Liliam Deisy Ghizoni – Foto: arquivo pessoal

Sobre a ministrante:

Liliam Deisy Ghizoni é doutora em Psicologia Social do Trabalho e das Organizações na UnB com Estágio Sanduíche na Université Catholique de Louvain la Neuve – Bélgica. Pesquisadora do Laboratório de Psicodinâmica e Clinica do Trabalho – LPCT/UnB. No CNPQ é líder do Trabalho e Emancipação: coletivo de pesquisa e extensão (UFT) e também membro do Grupo de Pesquisa Psicodinâmica e Clínica do Trabalho (UnB). Membro do GT Psicodinâmica e Clínica do Trabalho na ANPEPP.

A sua experiência com o tema vem das pesquisas desenvolvidas nos grupos que participa e da rede de pesquisadores brasileiros e internacionais que abordam a temática do trabalho e a sua relação com a saúde na contemporaneidade.

Por que CAOS?

A subversão de conceitos aparentemente fechados é uma das marcas das mentes mais invejáveis de todos os tempos. E pensar de forma subversiva é também quebrar com a linearidade das considerações pré-concebidas. Assim, resignificar e despir as “verdades” são a tônica de toda a produção científica, de toda a produção de saberes. Caso contrário, não se estaria produzindo ciência, mas, antes, dogmas.

A palavra CAOS, neste contexto, ganha especial sentido, já que remete à possibilidade do princípio da impermanência e da criatividade. A Física diz que é do princípio do CAOS que surge parte dos fenômenos imprevisíveis, cuja beleza se materializa na vida que se desnuda a todo instante.

É neste sentido que, também, para a Psicologia, o CAOS possibilita pensar sobre uma maneira de enxergar o Ser para além de rótulos ou de concepções a priori. Este microcosmo humano que é objeto de escrutínio do profissional de Psicologia guarda uma gama de imprevisibilidade e de originalidade que representam a própria riqueza da existência. Afinal, pelo CAOS pode-se iniciar intensos processos de mudanças, autossuperações e singularidades. É pelo princípio do imprevisível e do radicalmente distinto que se vislumbra a beleza da diferença. Estas são, em súmula, as bandeiras da Psicologia, área da ciência calcada essencialmente no Humanismo, que busca elevar a condição humana em toda a sua excentricidade, sem amarras, sem julgamentos. Esse é o princípio do CAOS, o Congresso Acadêmico de Saberes em Psicologia do Ceulp/Ulbra.

Mais informações:

Coordenação de Psicologia: Irenides Teixeira (63) 99994.3446
Assessoria do Ceulp/Ulbra: 3219 8029/ 3219 8100

Inscrições: http://ulbra-to.br/caos/

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Mundo do trabalho e sofrimento psíquico

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Esta Série traz resultados de pesquisas empíricas que envolveram escutas sobre o sofrimento no trabalho na contemporaneidade. Compõe a Série diferentes categorias de trabalhadores de norte a sul do país: catadores de materiais recicláveis, trabalhadores da Unidade de Operações Aéreas do DETRAN, trabalhadores de um hospital psiquiátrico público, educadores sociais de adolescentes em situação de rua, docentes do ensino superior privado e bancários.

Estes estudos partilham a abordagem teórico-metodológica da Psicodinâmica do Trabalho, que tem em seu bojo a prevenção da saúde em espaços de trabalho, através da mobilização subjetiva dos trabalhadores.

Trata-se de uma abordagem científica desenvolvida por Christophe Dejours na França nos anos 1980. Inicialmente, a Psicodinâmica do Trabalho éconstruída com referenciais teóricos da psicopatologia, evoluindo para uma construção própria em função do avanço das pesquisas e tornando-se uma abordagem autônoma com objeto, princípios, conceitos e métodos particulares (Mendes, 2007).

A transição da Psicopatologia para a Psicodinâmica do Trabalho aconteceu em 1993. Justifica-se a mudança pela proporção que a área tomou e, sobretudo, por seu objeto ser a normalidade, a saúde e não mais a doença; embora o foco continuasse sendo o sofrimento no trabalho, abriu-se espaço para o prazer (Lhuilier, 2011).

A Psicodinâmica do Trabalho é um referencial do campo da saúde mental e do trabalho que tem sido muito utilizado e tem oferecido grande contribuição às pesquisas e intervenções nesta área no Brasil (Mendes, Lima & Facas, 2007). Parte-se do pressuposto que otrabalho pode ser um gerador de saúde, mas também um desestabilizador patogênico; porém, jamais neutro, e, assim, se confirma a centralidade do trabalho enquanto construtora de identidade, conforme pontua Dejours (2011).

O quadro teórico de referência da Psicodinâmica do Trabalho, baseado em Dejours (2004) e Ferreira e Mendes (2003), contempla alguns conceitos centrais que partem da organização do trabalho entre o prescrito e o real. Para efeitos didáticos, podem ser assim apresentados: vivências de sofrimento psíquico no trabalho; vivências de prazer no trabalho; estratégias de mobilização subjetiva (espaço público de discussão, cooperação e inteligência prática) e estratégias defensivas (modos de pensar, sentir e agir individuais e/ou coletivos, conscientes ou não) que têm função de adaptação e proteção para evitar o adoecimento, mas não garantem a saúde.

 

 

Tais defesas podem ter efeito de alienação, uma armadilha para o adoecimento e para as patologias, como as citadas por Dejours (2008). Todos estes elementos são permeados pelo reconhecimento no trabalho, que se caracteriza como um caminho para a mobilização subjetiva através de: retribuição moral e simbólica às contribuições para a organização do trabalho (esforço e investimento); julgamento de utilidade e beleza, identidade e sentido no trabalho; conhecer para reconhecer. Para quem desejar aprofundar estes tópicos sugere-se os seguintes estudos: Mendes, (1994); Medeiros, (2012); Traesel, (2007); Bottega, (2009); Garcia, (2011); J. B. Ferreira, Mendes, S. C. da C. Lima, Facas e Ghizoni (2013) e A. da S. Ferreira, (2013).

Destaca-se, entretanto, que “a mobilização subjetiva é caracterizada pelo movimento do sujeito que viabiliza as capacidades de sentir, pensar e inventar para realizar o trabalho” (J. B. Ferreira et al., 2013, p. 101), assim, ela é composta pelas dimensões indissociáveis: inteligência prática, espaço de discussão, cooperação e reconhecimento (Mendes & Duarte, 2013).

Assim, a Psicodinâmica do Trabalho é uma clínica do trabalho, pois ‘investiga’ o sujeito em situação real, concedendo um espaço privilegiado para a fala do trabalhador sobre o seu sofrimento no trabalho, em uma perspectiva mais ontológica do que patológica (Lhuilier, 2011). Esta mesma autora ressalta a importância da escuta sobre o esforço do sujeito pela vida, apesar do sofrimento, de seus modos de resistência e de suas defesas.

Espera-se, com esta Série ampliar o olhar dos leitores para as possibilidades de atenção a saúde dos trabalhadores, estejam eles onde estiverem. Assim entram (En)Cena as reflexões sobre o “Mundo do trabalho e sofrimento psíquico”.

 

Referências:

Bottega, C. G. (2009). Loucos ou heróis: um estudo sobre prazer e sofrimento no trabalho dos educadores sociais com adolescentes em situação de rua.Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil, 201 p.

Garcia, W. I. (2011). Análise Psicodinâmica do Trabalho no Tribunal de Justiça do Amazonas: uma aplicação da clínica do trabalho e da ação.Manaus, AM. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Amazonas, Manaus, AM, Brasil, 109 p.

Dejours, C. (2004). A metodologia em psicopatologia do trabalho. In S. Lancman & L. Sznelwar. Christophe Dejours: da psicopatologia à Psicodinâmica do Trabalho. (pp. 105-126, F. Soudant, S. L. & L. I. Sznelwar trad.). Rio de Janeiro: Fiocruz Brasília: Paralelo 15.

Dejours, C. (2008). Alienação e Clínica do Trabalho. In:S. Lancman & L. Sznelwar.Christophe Dejours: da psicopatologia à Psicodinâmica do Trabalho. (2a edição ampliada, F. Soudant, S. Lancman e L. I. Sznelwar trads. pp. 255-286). Rio de Janeiro: Fiocruz Brasília: Paralelo 15.

Dejours, C. (2011). Addendum da psicopatologia à Psicodinâmica do Trabalho.In S. Lancman & L. Sznelwar. (Orgs.), Christophe Dejours: da psicopatologia à Psicodinâmica do Trabalho.(3 ed. rev, F. Soudant; S. Lancman & L. I. Sznelwar trads., pp. 57-123). Rio de Janeiro: Fiocruz Brasília: Paralelo 15.

Ferreira, A. da S. (2013). A Psicodinâmica do Trabalho de Profissionais de Odontologia do Centro Ambulatorial de um Hospital Universitário. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, DF, Brasil, 106 p.

Ferreira, M. C. & Mendes, A. M. (2003). Trabalho e riscos de adoecimento:o caso dos auditores-fiscais da Previdência Social brasileira. Brasília DF: Edições Ler, Pensar, Agir LPA.

Ferreira, J. B., Mendes, A. M., Lima, S. C da C., Facas, E. P. & Ghizoni, L. D. (2013). Entre a mobilização subjetiva e a subtração do desejo: estudos com base na psicodinâmica do trabalho. In A. R. C. Merlo; A. M. Mendes & R. D. de Moraes (Orgs.).O sujeito no trabalho: entre a saúde e a patologia. (Biblioteca Juruá de Psicodinâmica e Clínica do Trabalho, pp. 101-118). Curitiba: Juruá.

Lhuilier, D. (2011). Filiações teóricas das clínicas do trabalho. In P. F. Bendassoli & L. A. Soboll (Orgs). Clínicas do trabalho. (pp. 22-58). São Paulo: Atlas.

Medeiros, S. N. (2012). Clínica em Psicodinâmica do Trabalho com a Unidade de Operações Aéreas do DETRAN: o Prazer de Voar e a Arte de se Manter Vivo. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, DF, Brasil, 168 p.

Mendes, A. M. (1994). Prazer e sofrimento no trabalho qualificado: um estudo exploratório com engenheiros de uma empresa pública de telecomunicações. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, Distrito Federal, DF, Brasil, 82 p.

Mendes, A. M. (2007). Da psicodinâmica à psicopatologia do trabalho. Em A. M. Mendes. (Org.), Psicodinâmica do Trabalho: teoria, método e pesquisas (pp. 29-48). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Mendes, A. M & Duarte, F. S. (2013). Notas sobre o percurso teórico da Psicodinâmica do Trabalho. In L. G. de Freitas (Org.). Prazer e sofrimento no trabalho docente: pesquisas brasileiras (pp. 13-24). Curitiba: Juruá.

Mendes, A. M., Lima, S. C. & Facas, E. P. (2007). Apresentação. In A. M. Mendes, S. C. Lima & E. P. Facas. (Orgs.), Diálogos em Psicodinâmica do Trabalho. (pp. 09-12). Brasília: Paralelo 15.

Traesel, E. S. (2007). A psicodinâmica do reconhecimento: sofrimento e realização no contexto dos trabalhadores da enfermagem de um hospital do interior do Rio Grande do Sul.Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil, 128 p.

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