Rainha de copas: da albedo à rubedo, uma análise alquímica da função sentimento

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A obra de Lewis Carroll, Alice no país das Maravilhas é bastante popular, sendo tema de séries e filme.

O livro trata de um sonho da menina Alice. Ou seja, ela mostra um encontro dela com seu inconsciente, justamente em uma época de grande transição, a entrada da puberdade. E nessa descida ao inconsciente ela entra em contato com a Rainha de Copas, que mostra algumas facetas de sua personalidade e aponta para um caminho de desenvolvimento.

A Rainha de Copas é uma figura extremamente caprichosa, mimada, mandona e emocional. Seu pavio é curtíssimo, parecendo um vulcão em erupção. E é conhecida por seu bordão: “Cortem-lhe a cabeça!”. Todavia, mesmo declarando freqüentes sentenças de morte, poucas pessoas aparecem realmente decapitadas.

Ela é casada com o rei de Copas que silenciosamente perdoa muitos condenados quando a rainha não está olhando. E seus soldados costumam não obedecer a suas ordens. Não obstante, todas as criaturas no País das Maravilhas temem a rainha.

Por ser uma figura que dita normas e padrões de comportamento no País das Maravilhas (ela manda que todos joguem seu jogo favorito, o críquete, e ninguém pode desobedecer), podemos associar a Rainha de Copas a função sentimento.

Tanto que quando ela manda cortar as cabeças ela tenta eliminar o pensamento, a função oposta, que poderia colocar uma lógica em suas atitudes. Quando uma função domina a consciência ela se torna unilateral e tende a reprimir sua função oposta devido ao medo de perder o controle.

A função sentimento fala de nossos valores, nossas normas de conduta e aquilo que herdamos de nossa família e cultura que se tornam importantes ao longo da vida. Mas quando ela é unilateral se transforma em dogmas e crenças sem fundamento e estéreis.

Quando o individuo entra na puberdade, ele começa a questionar esses valores adquiridos e ele começa a ter contato então com as funções de julgamento: o sentimento e o pensamento. E é isso o que acontece com Alice, ela começa a questionar as normas que lhe foram passadas e ela deverá estabelecer seus próprios valores e a desenvolver seu pensamento critico.

Outro ponto importante a ser analisado é o naipe de copas. O naipe de copas é geralmente associado ao elemento água e às emoções. A Rainha de Copas seria a mais emotiva de todas as Rainhas do tarô. E a Rainha de Copas de Alice mostra o lado agressivo e extremamente emocional desse naipe. Ela simboliza as emoções indiferenciadas de Alice.

Alice terá agora por meio da Rainha que se defrontar com suas emoções e desejos mais secretos. A Rainha de Copas é considerada a mais feminina do tarô, portanto, ela irá se deparar com sua feminilidade mais profunda.

Além disso, como o naipe de copas se relaciona com a água, ele simboliza uma imagem do inconsciente. Isso se traduz no fato de que a feminilidade de Alice, bem como seus sentimentos, emoções, desejos e anseios ainda não são conscientes ela terá que se defrontar com eles, agora que está prestes a se tornar mulher.

Outra curiosidade, a Rainha manda pintar todas as rosas de vermelho. Bem, a rosa vermelha está ligada a Afrodite, a deusa da beleza, paixão e luxuria. Isso simboliza o fim da inocência da infância e o contato com o desejo sexual e a libido, que na puberdade atinge seu ápice. Agora ela terá que aprender a se relacionar com o sexo oposto e a criar normas e condutas que não assassinem nem reprimam seus desejos. A cor vermelha também está associada a rubedo da alquimia.

Rubedo representa o quarto e último estado da alquimia, chamado a iluminação. É precedido pelos estados nigredo (morte espiritual), albedo (purificação), e citrinitas (despertar). Conforme Jung, citado em Anatomia da psique de Edinger:

Na linguagem dos alquimistas, a matéria sofre até a nigredo desaparecer, quando a aurora será anunciada pela cauda do pavão (cauda pavonis) e um novo dia nascerá, a leukosis ou albedo. Mas nesse estado de “brancura”, não se vive, na verdadeira acepção da palavra; é uma espécie de estado ideal, abstrato. Para insuflar-lhe vida, deve ter “sangue”, deve possuir aquilo que o alquimistas chamam de rubedo a “vermelhidão”, da vida. Só a experiência total da vida pode transformar esse estado ideal de albedo num modo de existência plenamente humano. Só o sangue pode reanimar o glorioso estado de consciência em que o derradeiro vestígio de negrume é dissolvido, em que o diabo deixa de ter existência autônoma e se junta à profunda unidade da psique. Então, a opus magnum está concluída: a alma humana está completamente integrada.

No caso da mulher, a rubedo está associada à menstruação, quando ela se torna capaz de gerar vida. E é nesse processo que Alice está entrando por meio da puberdade. Ela vai se inflamar de vida e um novo mundo agora irá se abrir a ela.

No capítulo final, a Rainha sentencia Alice (por defender o valete de copas) e oferece uma visão interessante da justiça: sentença antes do veredicto. Alice a enfrenta dizendo: “Quem se importa com você? Vocês não passam de um baralho de cartas!”. E nessa hora ela acorda.

Nesse ponto Alice enfrenta seu lado mimado e infantil, questionando as normas sem sentido que lhe foram passadas e começando a adquirir um senso critico sobre elas.

A Rainha de Copas, então representa o lado infantil de Alice que deve morrer e também uma Mãe Terrível com regras e normas de comportamento, que expulsa a menina do paraíso representado pelo País das Maravilhas, (mas que mantém a menina presa a um estado regressivo) e a leva a seguir seus instintos e desejos para que seu ego possa entrar e iniciar o processo de individuação.

REFERÊNCIAS

EDINGER, E. F. Anatomia da psique – O Simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo: Cultrix, 1995.

JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

SHAMAN-BURKE, J. & GREENE, L. – O Tarô Mitológico. 27 edição Ed. Arx. São Paulo 2003.

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A Bela e a Fera: um conto sobre as irmãs invejosas

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A Bela e a Fera é um tradicional conto de fadas francês. Originalmente escrito por Gabrielle-Suzanne Barbot, A Dama de Villeneuve, em La Jeune Ameriquaine et les Contes Marins em 1740, tornou-se mais conhecido em sua versão de 1756, por Jeanne-Marie LePrince de Beaumont, que resumiu e modificou a obra de Villeneuve. Adaptada, filmada e encenada inúmeras vezes, o conto apresenta diversas versões que diferem do original e se adaptam a diferentes culturas e momentos sociais (WIKIPÉDIA, 2014).

A versão original de Villeneuve inclui alguns elementos omitidos por Beaumont. Segundo essa versão, a Fera foi um príncipe que ainda jovem perdeu o pai, e sua mãe partiu para uma guerra em defesa do reino. A rainha deixou-o aos cuidados de uma fada malvada, que tentou seduzi-lo enquanto ele crescia; quando ele recusou, ela o transformou em fera.

De forma resumida, o conto “A Bela e a Fera” relata a história da filha mais nova de um rico mercador, que tinha três filhas e três filhos, porém, enquanto as filhas mais velhas gostavam de ostentar luxo, de festas e lindos vestidos, a mais nova, que todos chamavam Bela, era humilde, gentil, e generosa, gostava de leitura e tratava bem as pessoas.

Um dia, o mercador perdeu toda a sua fortuna, com exceção de uma pequena casa distante da cidade. Bela aceitou a situação com dignidade, mas as duas filhas mais velhas não se conformavam em perder a fortuna e os admiradores, e descontavam suas frustrações sobre Bela, que humildemente não reclamava e ajudava seu pai como podia.

Um dia, o mercador recebeu notícias de bons negócios na cidade, e resolveu partir. As filhas mais velhas, esperançosas em enriquecer novamente, encomendaram-lhe vestidos e futilidades, mas Bela, preocupada com o pai, pediu apenas que ele lhe trouxesse uma rosa.

Quando o mercador voltava para casa, foi surpreendido por uma tempestade, e se abrigou em um castelo que avistou no caminho. O castelo era mágico, e o mercador pôde se alimentar e dormir confortavelmente, pois tudo o que precisava lhe era servido como por encanto. Ao partir, pela manhã, avistou um jardim de rosas e, lembrando do pedido de Bela, colheu uma delas para levar consigo. Foi surpreendido, porém, pelo dono, uma Fera pavorosa, que lhe impôs uma condição para viver: deveria trazer uma de suas filhas para se oferecer em seu lugar.

Ao chegar em casa, Bela, mediante a situação se ofereceu para a Fera, imaginando que ela a devoraria. Mas ao invés de devorar a moça, a Fera foi se mostrando aos poucos como um ser sensível e amável, fazendo todas as suas vontades e tratando-a como uma princesa. Apesar de achá-lo feio e pouco inteligente, Bela se apegou ao monstro que, sensibilizado a pedia constantemente em casamento, pedido que Bela gentilmente recusava.

 

 

Um dia, Bela pediu que Fera a deixasse visitar sua família, pedido que a Fera, muito a contragosto, concedeu, com a promessa de Bela retornar em uma semana. O monstro combinou com Bela que, para voltar, bastaria colocar seu anel sobre a mesa, e magicamente retornaria.

Bela visitou alegremente sua família, mas as irmãs, ao vê-la feliz, rica e bem vestida, sentiram inveja, e a envolveram para que sua visita fosse se prolongando, na intenção de Fera ficar aborrecida com sua irmã e devorá-la. Bela foi prorrogando sua volta até ter um sonho em que via Fera morrendo. Arrependida, colocou o anel sobre a mesa e voltou imediatamente, mas encontrou Fera morrendo no jardim, pois ela não se alimentara mais, temendo que Bela não retornasse.

Bela compreendeu que amava a Fera, que não podia mais viver sem ela, e confessou ao monstro sua resolução de aceitar o pedido de casamento. Mal pronunciou essas palavras, a Fera se transformou num lindo príncipe, pois seu amor colocara fim ao encanto que o condenará a viver sob a forma de uma fera até que uma donzela aceitasse se casar com ele. O príncipe casou com Bela e foram felizes para sempre.

O conto A Bela e a Fera traz muitos paralelos com o mito grego Eros e Psique. No mito, Psique era uma bela moça que competia em beleza com Afrodite e que também possuía duas irmãs invejosas. Por rivalizar com a Deusa da beleza, Afrodite lhe lança uma maldição, a de não se casar. As irmãs mais velhas de Psique já haviam se casado, e a menina a despeito de sua beleza e da quantidade de adoradores não havia sido pedida em casamento. Seu pai preocupado procura um oráculo que diz que ela desposará um monstro. Ele então a leva ao alto de um rochedo e a deixa à própria sorte. Ela é conduzida pelo vento Zéfiro a um palácio magnífico, onde todos os seus pedidos são atendidos. Mas na verdade, o palácio pertence a Eros, filho de Afrodite, que sem querer se apaixona pela moça.

No mito e no conto, há o tema do pai que entrega a filha a um monstro e também, temos o tema da menina que não tem mãe. Podemos supor então, que se trata de um embate com o animus, pois o animus na mulher se desenvolve a partir da experiência com o pai pessoal (VON FRANZ, 2010). Além disso, o fato de não ter mãe mostra uma fraqueza e incerteza sobre a feminilidade da heroína, o que a deixa suscetível a dominação pelo animus.

No amadurecimento do amor feminino há o encontro com o animus, mas também com a anima doanimus, representada pela sogra: “A mãe, que não quer nora, mas o filho apenas para si, a mãe que o beija “com lábios entreabertos“” (BRANDÃO, 1986). Alguns contos mostram o embate do herói com o animus de sua anima, como no conto O velho Rinkrank, mas aqui o embate é com o feminino por trás do animus.

No conto esse embate é mais sutil, e se encontrar no original na figura da bruxa que tenta seduzir o rapaz e sendo mal sucedida o transforma em fera. Aqui há um caráter regressivo do animus, que está preso a mãe. O fato de ambos serem monstros no mito e no conto (mesmo um sendo príncipe e o outro um deus) denota que essa simbiose com a mãe é destrutiva e animalesca, pois transforma o homem em menino mimado e intragável.

 

 

Outro símbolo da mãe e do feminino por trás do homem está na roseira, que a fera tanto preza. A rosa esta associada justamente a Afrodite. Além, disso conforme Jung (2008), a rosa é em geral disposta em quatro raios, o que indica a quadratura do círculo, isto é, a união dos opostos. Ou seja, o amor, é um grande aliado no processo de individuação, pois é a partir do seu roubo que ocorre a transformação de Bela e da consciência coletiva.

O roubo nos atenta a um importante aspecto, conforme Von Franz (2010), uma das atividades doanimus negativo é furtar, pois ele precisa tomar a vida onde ele se encontra, matando todo o aspecto feminino da vida. Além disso, para uma mulher conseguir tirar o homem dos braços regressivos da mãe deve cultivar sua feminilidade. Usar a força bruta e a verborragia do animusnão adiantará. Por isso é comum nos mitos e contos a heroína seguir o caminho da individuação sofrendo e fugindo, enquanto que os heróis lutam e vencem monstros.

Ao conviver com a fera, Bela percebe que ele é sensível e realizava todas as suas vontades a despeito de sua aparência. Ela se afeiçoa a ele, que a pede em casamento várias vezes, sendo recusado em todas elas. Assim como Coré se afeiçoa a Hades no mito, e passa a enxergar o masculino de forma menos hostil.

Sobre o tema do casamento nos mitos, Brandão (1986), diz:

 

“Para o mundo matriarcal, argumenta o psiquiatra israelense, “todo casamento é um rapto de Core, a flor virginal, consumado por Hades, o violador, ou seja, um simbolismo terreno do macho hostil. Desse modo, todo casamento é como uma exposição no cume de um monte em mortal solidão e uma espera pelo monstro masculino a quem a noiva é entregue.”

“Na mais profunda experiência do feminino os temas das núpcias de morte, da virgem sacrificada a um monstro, feiticeiro, dragão ou espírito do mal, recontados em inúmeros mitos e lendas, são igualmente um hieròs gámos. O caráter de rapto, que o evento assume, expressa, relativamente ao feminino, a projeção — típica da fase matriarcal — do elemento hostil sobre o homem.”

 

O homem no conto é indiferenciado, ou é um ladrão como o pai e furta a feminilidade a matando, ou é uma fera assustadora. E com o pedido de casamento ela terá de enfrentar essa projeção de hostilidade em relação ao masculino, por isso Bela reluta em aceitar. Mesmo a contragosto a Fera permite que Bela visite sua família, a qual ela sente saudades. Esse retorno ao lar de Bela pode representar uma regressão do ego ao inconsciente original, ao feminino, a mãe. Nessa regressão, Bela confronta projeções reprimidas matriarcais e sombrias suas inconscientes, representadas pelas irmãs.

As irmãs de Bela representam atitudes matriarcais sombrias onde o homem é visto como hostil e violador, e a mulher como esposa-vítima do monstro. A despeito da inveja que elas sentem de Bela, elas trazem um desenvolvimento para a personalidade dela e um amadurecimento muito grande Mesmo sendo bem tratada Bela vive então em um estado de servidão inconsciente, e é justamente contra isso que a consciência feminina deve protestar. Ela entra em conflito contra a fera, fica em duvida se volta ou não, pois a hostilidade e protesto das irmãs correspondem exatamente ao que se passa no interior da própria Bela.

Contudo é através dessa sombra feminina que Bela alcança autonomia em seu relacionamento, quebrando a simbiose com seu animus. E ao quebrar a sua simbiose e identificação a heroína sente falta do homem, e sincronicamente a Fera morre. O aspecto animal, hostil e assustador se vão e ela pode ver realmente quem é seu marido, e seu lado humano pode se manifestar.

Esse conto então, nos fala que a mulher, em termos coletivos, deve passar pela experiência de ficar presa ao seu animus fera (ou demônio), pois somente essa experiência o transforma em positivo. A partir dessa vivência, o animus animalesco, se liberta dos braços regressivos da mãe e o feitiço que condenou o príncipe a viver como Fera é quebrado. E com isso então Bela pode realizara coniunctio, ou seja, o casamento sagrado com seu lado masculino, uma vez que sua feminilidade foi fortalecida.

 

 

REFERÊNCIAS:

BRANDÃO, J. S. Mitologia Grega – Vol I. Petrópolis: Vozes 1986.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

WIKIPEDIA. A Bela e a Fera. Acesso em: 02 de setembro de 2014.

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