A loucura submissa à razão em Foucault

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A loucura sem a intenção de parecer um louco ou a simples intenção sem loucura merecem o mesmo tratamento, talvez pelo fato de obscuramente terem a mesma origem: o mal ou, pelo menos, uma vontade perversa.
Michel Foucault

O modo de o homem lidar com a loucura, passou por várias transformações ao longo dos séculos, e a forma como a mesma foi vista pelos olhos da razão também. Foucault descreve a loucura, em sua narrativa desde o Renascimento até a sua consolidação na sociedade. Tendo início com a disseminação da lepra, através das cruzadas. Estas, iam até o Oriente, onde era o foco dominante de contaminação da enfermidade, sendo trazida para a Europa, onde se espalhou rapidamente, atingindo numerosas pessoas.

A partir da alta Idade Média, e até o final das Cruzadas, os leprosários tinham multiplicado por toda a superfície da Europa suas cidades malditas. Segundo Mathieu Paris, chegou a haver 19.000 delas em toda a cristandade. Em todo caso, por volta de 1266, à época em que Luís VIII estabelece, para a França, o regulamento dos leprosários, mais de 2.000 deles encontram-se recenseados. Apenas na Diocese de Paris chegou a haver 43: entre eles Bourg-la-Reine, Corbeil, Saint-Valère e o sinistro Champ-Pourri; e também Charenton (FOUCAULT, 1972, p. 07).

O desaparecimento da lepra não foi efeito de práticas médicas, mas um resultado natural, da consequência do fim das cruzadas, e o rompimento com os focos orientais de infecção. Com a retirada da lepra, os lugares lúgubres que não eram usados para tratá-la, mas sim para fixá-la a uma distância sagrada, se tornam sem utilidade.

A Nau dos Loucos de Hieronymus Bosch. Fonte: http://zip.net/bgtHr3

Existindo para permanecer ainda, muito mais que a lepra, fazendo com o personagem do leproso excluído, fosse esquecido, à margem, retirados do mundo e da visibilidade da comunidade da igreja.

Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Frequentemente nos mesmos locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que salvação se espera dessa exclusão, para eles e para aqueles que os excluem. Com um sentido inteiramente novo, e numa cultura bem diferente, as formas subsistirão — essencialmente, essa forma maior de uma partilha rigorosa que é a exclusão social, mas reintegração espiritual (FOUCAULT, 1972, p.10).

De acordo com Foucault, a lepra foi substituída inicialmente pelas doenças venéreas. De repente, ao final do século XV, elas sucedem a lepra como por direito de herança. Porém as mesmas não terão tamanha importância, como a lepra e a loucura tiveram, sendo depois incorporadas à outras doenças mais comuns. No entanto, as pessoas acometidas pelas doenças venéreas, precisavam ser internadas para ter tratamento, o que os levaram à exclusão, junto aos leprosos e loucos. Eles foram considerados por Foucault, os excluídos da sociedade. Que precisaram desaparecer urgentemente da visibilidade das pessoas. Carregando marcas da exclusão e discriminação.

Quadro de Bosch. Fonte: http://zip.net/bdtHXM

Foucault (1972, p.12) diz que, de fato, a verdadeira herança da lepra tem que ser buscada em um fenômeno bastante complexo, do qual a medicina demorará para se apropriar. Esse fenômeno é a loucura. Porém, será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que esse novo espantalho, que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação que, no entanto, lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença.

O que se tinha, nesta fase, é a loucura, imersa nos jogos de semelhanças entre micro e o macrocosmo da Renascença, como espelho da experiência trágica da pequenez do homem diante da infinitude do universo, em sua proximidade constante com a morte. É o que ilustram os quadros de Bosch, de Brueghel, de Thierry Bouts e Dûrer ao mostrarem, não só a loucura, mas a própria realidade do mundo, absorvida no universo de imagens fantásticas, atravessado pela ameaça da fome, da tentação, da fatalidade e das guerras (SILVEIRA & SIMANKE, 2008 p. 27).

A loucura, cujas vozes a Renascença, acaba de libertar, cuja violência, porém ela já dominou, vai ser reduzida ao silêncio pela era clássica através de um estranho golpe de força. (FOUCAULT, 1972, p. 52). Na Renascença, os loucos eram carregados em navios e barcos para cidades distantes das suas, em busca da razão. Segundo Foucault (1972, p. 12), o louco era “prisioneiro da mais aberta das estradas”, comparando, assim, a pequenez duma prisão à imensidão do mar. O lugar para onde o insano estava indo não era a sua terra, muito menos era aquela que ficou para trás. A terra do louco se limita à distância entre ambas as terras, a que foi sua e a que nunca será. Dessa forma, a água simboliza esta territorialidade com a qual a loucura será presenteada pelo Ocidente. Literalmente, o louco não tinha chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha grades (FOUCAULT, 1972, p. 12).

A loucura, cujas vozes a Renascença, acaba de libertar, cuja violência, porém ela já dominou, vai ser reduzida ao silêncio pela era clássica através de um estranho golpe de força. (FOUCAULT, 1972, p. 52). Na Renascença, os loucos eram carregados em navios e barcos para cidades distantes das suas, em busca da razão. Segundo Foucault (1972, p. 12), o louco era “prisioneiro da mais aberta das estradas”, comparando, assim, a pequenez duma prisão à imensidão do mar. O lugar para onde o insano estava indo não era a sua terra, muito menos era aquela que ficou para trás. A terra do louco se limita à distância entre ambas as terras, a que foi sua e a que nunca será. Dessa forma, a água simboliza esta territorialidade com a qual a loucura será presenteada pelo Ocidente. Literalmente, o louco não tinha chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha grades (FOUCAULT, 1972, p. 12).

Segundo Foucault (1972, p.88), “a Igreja católica, bem como para os países protestantes, a internação representa, sob a forma de um modelo autoritário, o mito da felicidade social: uma polícia cuja ordem seria inteiramente transparente aos princípios da religião, e uma religião cujas exigências seriam satisfeitas, sem restrições, nas regras da polícia e nas coações com que se pode armar”.

Fonte: http://zip.net/brtHsL

Ainda de acordo com Foucault (1972, p.89),

A internação é uma criação institucional própria ao século XVII. Ela assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como esta era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido. Nasceu uma sensibilidade, que traçou uma linha, determinou um limiar, e que procede a uma escolha, a fim de banir. O espaço concreto da sociedade clássica reserva uma região de neutralidade, uma página em branco onde a vida real da cidade se vê em suspenso: nela, a ordem não mais enfrenta livremente a desordem, a razão não mais tenta abrir por si só seu caminho por entre tudo aquilo que pode evitá-la ou que tenta recusá-la. Ela impera em estado puro num triunfo que lhe é antecipadamente preparado sobre um desatino desenfreado. Com isso a loucura é arrancada a essa liberdade imaginária que a fazia florescer ainda nos céus da Renascença. Não há muito tempo, ela se debatia em plena luz do dia: é o Rei Lear, era Dom Quixote. Mas em menos de meio século ela se viu reclusa e, na fortaleza do internamento, ligada à Razão, às regras da moral e a suas noites monótonas.

“Do outro lado desses muros do internamento não se encontram apenas a pobreza e a loucura, mas rostos, bem mais variados e silhuetas cuja estatura comum nem sempre é fácil de reconhecer” (FOUCAULT, 1972, p. 90). Com isso, é evidente que o internamento, em suas formas primitivas, funcionou como um mecanismo social, e que esse mecanismo atuou sobre uma área bem ampla, dado que se estendeu dos regulamentos mercantis elementares ao grande sonho burguês de uma cidade onde imperaria a síntese autoritária da natureza e da virtude.

Daí a supor que o sentido do internamento se esgota numa obscura finalidade social que permite ao grupo eliminar os elementos que lhe são heterogêneos ou nocivos, há apenas um passo. O internamento seria assim a eliminação espontânea dos “a-sociais”; a era clássica teria neutralizado, com segura eficácia — tanto mais segura quanto cega — aqueles que, não sem hesitação, nem perigo, distribuímos entre as prisões, casas de correção, hospitais psiquiátricos ou gabinetes de psicanalistas. (FOUCAULT, 1972, p.90).

Assim, o desatino aparece, com todas as significações que o Classicismo nele elaborou, como um campo de experiência, demasiado secreto sem dúvida para ter sido alguma vez formulado em termos claros, demasiado combatido também, da Renascença à era moderna, para receber o direito à expressão, mas bastante importante para ter sustentado não apenas uma instituição como a do internamento, não apenas as concepções e as práticas referentes à loucura, mas todo um reajuste do mundo ético. É a partir dele que se torna necessário compreender a personagem do louco tal como ele surge na época clássica e a maneira pela qual se constitui aquilo que o século XIX acreditará reconhecer, entre as verdades imemoriais de seu positivismo, como a alienação mental.

Antigo hospital colônia de Barbacena. Fonte:http://zip.net/bgtHr5

Nesse campo, a loucura, da qual a Renascença tivera experiências tão diversas a ponto de ter sido simultaneamente não-sabedoria, desordem do mundo, ameaça escatológica e doença, nesse campo a loucura encontra seu equilíbrio e prepara essa unidade que se oferecerá, talvez de modo ilusório, ao conhecimento positivo; a loucura encontrará desse modo, mas através de uma interpretação moral, esse distanciamento que autoriza o saber objetivo, essa culpabilidade que explica a queda na natureza, essa condenação moral que designa o determinismo do coração, de seus desejos e paixões.

Anexando ao domínio do desatino, ao lado da loucura, as proibições sexuais, os interditos religiosos, as liberdades do pensamento e do coração, o Classicismo formava uma experiência moral do desatino que serve, no fundo, de 122 solo para nosso conhecimento “científico” da doença mental. Através desse distanciamento, através dessa dessacralização, a loucura atinge uma aparência de neutralidade já comprometida, dado que só é alcançada nos propósitos iniciais de uma condenação. (FOUCAULT, 1972, p.121).

Nosso saber positivo nos deixa incapazes para decidir se se trata de vítimas ou doentes, de criminosos ou loucos: estavam todos ligados a um mesmo modo de existência, que podia levar eventualmente tanto à doença quanto ao crime, mas que não lhes pertencia desde o início. É desse tipo de existência que dependiam os libertinos, devassos, dissipadores, blasfemadores, loucos. Em todos eles, havia apenas uma certa maneira, bastante pessoal e variada em cada indivíduo, de modelar uma experiência comum: a que consiste em experimentar o desatino. Nós, os modernos, começamos a nos dar conta de que, sob a loucura, sob a neurose, sob o crime, sob as inadaptações sociais, corre uma espécie de experiência comum da angústia. Talvez, para o mundo clássico, também houvesse uma economia do mal, uma experiência geral do desatino. E, nesse caso, ela é que serviria de horizonte para aquilo que foi a loucura durante os cento e cinquenta anos que separam a grande Internação da “liberação” de Pinel e Tuke (FOUCAULT, 1972, p.122). 

“Em todo caso, é dessa liberação que data o momento em que o homem europeu deixa de experimentar e compreender o que é o desatino — que é também a época em que ele não mais apreende a evidência das leis do internamento.” (FOUCAULT, 1972, p.123).

Antigo hospital colônia de Barbacena. Fonte: http://zip.net/bktHtw

Foucault vê que seria falso considerar que o internamento dos insanos nos séculos XVII e XVIII seja uma medida de polícia que não se coloca problemas, ou que pelo menos manifesta uma insensibilidade uniforme ao caráter patológico da alienação. Mesmo na prática monótona do internamento, a loucura tem uma função variada. Ela já periclita no interior desse mundo do desatino que a envolve em seus muros e a obseda com sua universalidade. Pois se é fato que, em certos hospitais, os loucos têm lugar reservado, o que lhes assegura uma condição quase médica, a maior parte deles reside em casas de internamento, nelas levando praticamente uma existência de correcionais.

De fato, essa ausência de cuidados médicos, exceção feita à visita prescrita, põe o Hospital Geral quase na mesma situação de uma prisão. As regras nele impostas são em suma aquelas que a ordenação criminal de 1670 prescreve para a boa ordem de todas as casas de detenção; se há um médico no Hospital Geral, não é porque se tem consciência de que aí são internados doentes, é porque se teme a doença naqueles que já estão internados. Teme-se a famosa “febre das prisões”. Na Inglaterra, gostavam de citar o caso de prisioneiros que tinham contaminado seus juízes durante as sessões do tribunal; lembrava-se que os internos, após a libertação, haviam transmitido a suas famílias o mal contraído nas prisões (FOUCAULT, 1972, p.128).

O internamento não é um primeiro esforço na direção da hospitalização da loucura, sob seus variados aspectos mórbidos. Constitui antes uma homologação dos alienados aos outros correcionais, como demonstram essas estranhas fórmulas jurídicas que não entregam os insanos aos cuidados do hospital, mas os condenam a uma temporada neles (FOUCAULT, 1972, p. 129).

Barbacena. Fonte: http://zip.net/bktHtx

O essencial, portanto, é saber se a loucura é real e qual o seu grau: quanto mais profunda for, mais a vontade do indivíduo será considerada inocente. Pelo contrário, no mundo do internamento pouco importa saber se a razão está de fato atingida; caso esteja, e seu uso está com isso impedido, é sobretudo por uma flexão da vontade que não pode ser inteiramente inocente, pois não pertence à esfera das consequências.

O fato de pôr-se em causa a vontade na experiência da loucura tal como é denunciada pelo internamento não está evidentemente explícito nos textos conservados, mas transparece através das motivações e dos modos de internamento. Aquilo de que se trata é todo um obscuro relacionamento entre a loucura e o mal, relacionamento que não mais é considerado, como na época da Renascença, como relacionado com todos os poderes ocultos do mundo, mas com esse poder individual do homem que é sua vontade. Assim, a loucura lança raízes no mundo moral (FOUCAULT, 1972, p.156).

A loucura sem a intenção de parecer um louco ou a simples intenção sem loucura merecem o mesmo tratamento, talvez pelo fato de obscuramente terem a mesma origem: o mal ou, pelo menos, uma vontade perversa. Por conseguinte, a passagem de uma para outra será fácil, e admite-se facilmente que alguém se torna louco pelo simples fato de ter desejado ser um louco (FOUCAULT, 1972, p. 156).

 Nisso consiste, sem dúvida, o paradoxo maior da experiência clássica da loucura; ela é retomada e envolvida na experiência moral de um desatino que o século XVII proscreveu através do internamento; mas ela está ligada também à experiência de um desatino animal que forma o limite absoluto da razão encarnada e o escândalo da condição humana.

Colocada sob o signo de todos os desatinos menores, a loucura se vê ligada a uma experiência ética e a uma valorização moral da razão; mas, ligada ao mundo animal e a seu desatino maior, ela toca em sua inocência monstruosa. Experiência contraditória, se se quiser, e bastante distanciada das definições jurídicas da loucura, que procuram estabelecer a divisão entre a responsabilidade e o determinismo, entre a falta e a inocência. Distanciada também dessas análises médicas que, na mesma época, prosseguem em sua análise da loucura como um fenômeno da natureza.

Fonte: http://zip.net/bntHt9

No entanto, na prática e na consciência concreta do Classicismo existe esta experiência singular da loucura, percorrendo num átimo toda a distância do desatino; baseada numa escolha ética e, ao mesmo tempo, inclinada para o furor animal. Dessa ambiguidade o positivismo não conseguirá sair, ainda que de fato ele a tenha simplificado: retomou o tema da loucura animal e sua inocência numa teoria da alienação mental como mecanismo patológico da natureza (FOUCAULT, 1972, p.180).

E mantendo o louco nessa situação de internamento que a era clássica havia inventado, ele o manterá, de modo obscuro e sem o admitir, no aparelho da coação moral e do desatino dominado. 181 A psiquiatria positiva do século XIX, e também a nossa, se renunciaram às práticas, se deixaram de lado os conhecimentos do século XVIII, herdaram em segredo todas essas relações que a cultura clássica em seu conjunto havia instaurado com o desatino; modificaram essas relações, deslocaram-nas; acreditaram falar apenas da loucura em sua objetividade patológica, mas contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela ética do desatino e pelo escândalo da animalidade (FOUCAULT, 1972, p.180).

A psiquiatria positiva do século XIX, e também a nossa, se renunciaram às práticas, se deixaram de lado os conheci-. mentos do século XVIII, herdaram em segredo todas essas relações que a cultura clássica em seu conjunto havia instaurado com o desatino; modificaram essas relações, deslocaram-nas; acreditaram falar apenas da loucura em sua objetividade patológica mas, contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela ética do desatino e pelo escândalo da animalidade (FOUCAULT, 1972, p.181).

Para Silveira (2008, p.34), a loucura é fragmentação da articulação corpo-ama, afetada pelas paixões descontroladas, no desequilíbrio das causalidades mecânicas, na contrução da conduta irracional e de um campo de irrealidade.

Fonte: http://zip.net/bxtJkL

Segundo López (2006):

A loucura num sentido trágico não pode pertencer à razão, ao discurso. O ato de nomeá-la suporia tê-la posto no espaço e no tempo da razão e da história. A loucura, num sentido trágico, é portanto, um fundo de sem-sentido a partir do qual se estabelece qualquer sentido, mas que sempre permanece inacessível a este e por isso o ameaça radicalmente. A obra da história, da razão, da linguagem só é possível sobre um fundo caótico. Trata-se de um espaço de sem-sentido que percorre a história por baixo, ameaçando-a, e que se renova a cada instante, com cada palavra e com cada novo gesto da razão, mas que é ao mesmo tempo o segredo de seu devir.

A loucura é para Foucault, “barulho surdo debaixo da história, o murmuro obstinado de uma linguagem que falaria sozinha –sem sujeito falante e sem interlocutor” (FOCAULT, 1961/1999a: 144). A loucura é linguagem, mas não discurso. É o ponto cego da linguagem, é isso que sempre escapa à linguagem, mas que faz parte de seu próprio devir, “raiz calcinada do sentido” dirá Foucault (1961/1999ª: 144). Não se trata então de fazer a história de um conhecimento, mas a arqueologia de uma experiência, nada menos de uma experiência que conduz até o fogo primordial onde se forja o sentido. Não estamos frente à história de um saber, mas à arqueologia de uma experiência do pensar (LÓPEZ, 2006).

REFERÊNCIAS:

FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Éditions Gallimard, 1972.

LÓPEZ, Maximiliano Valerio: “A ‘FILOSOFIA COM CRIANÇAS’ DESDE UMA PERSPECTIVA TRÁGICA”. (Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade do Estado de Rio de Janeiro. Orientador: Walter Omar Kohan). Rio de Janeiro, 2006.

SILVEIRA, Fernando de Almeida. A Psicologia em História da Loucura de Michel Foucault. – Disponível em: <http://www.uff.br/periodicoshumanas/index.php/Fractal/article/view/118/283> Acesso em 13 de março de 2017.

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Mortes

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Temos a arte para não morrer da verdade.

“A morte não é a maior perda da vida.

A maior perda da vida é o que morre dentro de nós enquanto vivemos.”

(Pablo Picasso)

 

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Nota: fotografias feitas a partir de figuras, colagens, tinta e plástico.

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O Cotidiano da Loucura: um novo elogio a um velho personagem

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Enfim, eis que nós, seres humanos, chegamos à absoluta era da razão, onde todas as decisões tomadas estão permeadas de um bom senso e mergulhadas no vasto lago de ponderação, cujo conteúdo foi depositado, gota após gota, por séculos de evolução do pensamento altruísta e beneficente! Bem vindo seja nessa época onde não existem as diferenças de credo, ideologia, cor, raça e onde somos todos humanos e para os humanos!
O parágrafo acima representa o ideal pelo qual estamos esperando e que a cada dia que passa é adiado por 20 anos. Nós vivemos uma era da funcionalidade extrema, desenvolvimento exponencial, jornadas de trabalho cada vez mais intensas, enfim, o verdadeiro “caos terreno”. Esses problemas e situações são bastante modernos, mas quando bem analisados e discutidos, surge uma personagem inesperada, já bem antiga e muitíssimo bem conhecida pelos pensadores e filósofos, sejam eles atuais ou de gerações passadas.
Uma personagem que está por trás das mais delicadas decisões e que age quando todos nós perdemos a razão, que torna a infância algo tão puro e a velhice um descanso tão gratificante, que torna o indivíduo culpado e que é a absolvição das massas. E quem haveria de ser essa personagem tão importante e tão decisiva? Ninguém mais, ninguém menos que ela, a Loucura. A Loucura, como personagem, da mesma forma que foi descrita por Erasmo de Roterdã em 1509, em seu livro “O Elogio da Loucura”.
 
Com todo seu sarcasmo, cinismo e, pasmem, bom senso, a Loucura nos é apresentada de uma forma personificada, em uma obra quase caricata e recheada de críticas à sociedade e aos “figurões” da época. Erasmo, que era amigo muito próximo de Thomas More, figura importante no Renascimento Humanista da cultura européia, pretendia criticar toda a sociedade de uma forma tão refinada e ácida que causaria revolta á todos os leitores que não tivessem a malícia de ver as entrelinhas de sua obra.
No entanto, a repercussão que a obra teve foi completamente diferente da qual Erasmo esperava. O livro foi elogiado pelo Papa Leão X como uma obra divertida, e foi aclamada pela população, fatos que desagradaram, e muito, Erasmo de Roterdã. Mas e atualmente? Como seria possível trazer idéias e situações de um livro do século XVI para a nossa avançada sociedade da aurora do século XXI? Em que pontos Erasmo teria sido “profético” ao ponto de criticar situações que só viriam a acontecer 500 anos após a publicação de sua obra? Podemos começar com o exemplo mais comum e talvez o mais triste deles. Bem disse Erasmo que aquele indivíduo que é capaz de ignorar toda a podridão dos defeitos e egoísmos do próximo, justificando-os por um senso pífio de “bem maior”, esse sim, pode ser considerado com a maior das certezas um digno devoto da “deusa” Loucura.
Pois bem, em nossa sociedade evoluída e politizada, o que não nos falta, lamentavelmente, são exemplos dos nossos representantes, “Os Políticos”. Aqui citados entre aspas devido ao senso de personificação e semi-divindade que os comuns deram-lhes, que se utilizam de sua posição privilegiada e seu “conhecimento” abundante para chegar aos limites de um comportamento completamente incoerente e esdrúxulo com o qual um dia foi prometido ao povo, aproveitando-se de todas as formas possíveis para garantirem nada menos que a autopromoção.
Até aí nada fora do normal, mas o que se equipara à Loucura de Roterdã está na atitude do povo que elegeu essa pessoa, que passivamente aceita, e de bom grado, tudo que lhe é imposto por essa figura tão louvada. Usando-me da licença poética de “citar o milagre, sem citar o santo”, somos levados a um ponto de Loucura tão exacerbada que escutamos de representantes do povo, os mais maltratados pelas ações mesquinhas do “Político”, o seguinte bordão: “Ele rouba, mas faz”. Em que situação, se não na Loucura explícita e quase pueril, um ser humano em posse de todas as suas faculdades mentais “normais” justificaria milhares de erros e egoísmos com um único ato de “boa vontade”?Saindo do já exaustivamente discutido cenário político, podemos encontrar os atos d’A Loucura em situações um tanto quanto comuns para nós, defensores do alvo e divino dever de Asclépio. Enganam-se os que pensam que a medicina encontra somente na Psiquiatria os indivíduos tocados pela Loucura, pois se considerarmos que Erasmo deixou bem claro em seu escrito que a Loucura vai desde o ato de agir como um bobo até o verdadeiro “Louco de Pedra”. Todos os dias somos apresentados à figura do Médico onipotente, que se equipara a(os) Deus(es) e proclama para si o direito sobre a vida e a morte. Os que entendem um pouco de mitologia greco-romana sabem que Asclépio, deus da Medicina, foi morto por um raio de Zeus quando cometeu o “erro” de trazer um ser inerte de volta à vida. Salvo as devidas proporções, porque deveríamos considerar mentalmente são um homem, tão mortal quanto eu ou você, divino ao ponto de decidir quem morrerá e quem será salvo? Temos, então, bem diante de nossos olhos um excelente exemplo de como a Loucura do século XVI ainda se mostra bastante ativa em pleno século XXI.

Outro aspecto para o qual a Loucura se mostra soberana é o atual estilo de vida que grande parte da população metropolitana desfruta. A cada dia estamos mais atrasados, mais apressados, mais cansados, mais atarefados e, conseqüentemente, mais loucos. Em prol de ter uma sociedade mais dinâmica e mais lucrativa, temos que abdicar de nossa sanidade mental, e nos submetemos a condições sub-humanas de trabalho. Somos considerados loucos ao tentar alcançar a perfeição social representada por Erasmo como uma colmeia de abelhas, e nos fala que foram necessários milhares de anos de aperfeiçoamento da natureza para que uma colmeia apresentasse uma organização social tão perfeita que todos os componentes dela já nascem sabendo o que fazer e cumprem seu dever incansavelmente até que a morte corte o fio que os prende à vida. Para Erasmo o simples fato de buscarmos o conhecimento e irmos contra toda a sabedoria da natureza é um ato explícito de Loucura.

Uma passagem interessante, a qual cabe uma citação, e que pode ser considerada completamente atual, é como Erasmo de Roterdã encara as três principais fases de um ser humano: a Infância, a Idade Adulta e a Velhice. A Loucura da criança, que brinca incansavelmente, devaneia com situações imaginárias, não mede os riscos das suas ações, está no simples fato de que ela não teve vivência suficiente para aprender com os seus erros e imprudências, ainda não é cobrada pela sociedade a ponto de ter que sustentar uma sobriedade de pensamento constante, ou seja, ela ainda tem a sua liberdade de pensar e agir contra tudo o que a sociedade considera moral ou imoral.

Mas, à medida que crescemos, aprendemos de nossos superiores que determinadas atitudes são mal vistas pelo grupo social onde estamos inseridos, e a partir daí começamos a nos policiar e a olhar todo o comportamento de uma criança como algo que passado, e então abrimos mão dessa Loucura. Quando chegamos à velhice, eis que nos é dada a oportunidade de desfrutar da doçura da loucura novamente, sem que a sociedade nos encare como tal.  Erasmo considera que se o ancião não “enlouquecesse” seria o ser mais importuno dentro de uma sociedade, posto que sua vasta experiência e vivência seria o suficiente para que os mesmos fossem irrefutáveis em qualquer discussão, sagazes em qualquer negócio e corretos em qualquer ação. Dessa forma Erasmo aproxima as crianças dos idosos, e conclui que a boa vivência entre ambos está única e exclusivamente ligada á loucura que ambos desfrutam.

E como um último exemplo de como a Loucura continua contemporânea, temos os exemplos dos monarcas, que movidos por ela, enviam seus exércitos para uma morte quase certa, apenas por caprichos egoístas de uma moral ferida. Ainda em pleno século XXI, temos líderes que forjam situações de conflito apenas com o interesse econômico de manter seus “reinos” felizes e prósperos, mesmo que isso custe milhares de vidas dos inocentes do “reino” atacado. Nesses casos a Loucura se torna algo tão sistematizado que temos uma metodologia aplicada a ela. Generais discutem estratégias e definem ataques, obedecendo a uma hierarquia e com uma sofisticação tão refinada que apenas a própria Loucura em pessoa poderia ter idealizado. Somos confrontados com a discrepância de que um homem, armado, que fere seu próximo, é um louco, mas que centenas dos mesmos, armados, mas motivados por um ideal nacionalista, e pela Loucura do seu líder, e não a sua própria, vêm a ser considerado um herói, e louvado por toda uma nação.

Esses foram alguns exemplos, dos inúmeros citados e devidamente criticados por Erasmo em 1509, e se fôssemos citar todos, com certeza seria uma discussão interminável. Mas o que podemos aprender e, acima de tudo, apreender do texto, é que, independente de como a Loucura se apresenta, sua interpretação nunca será a mesma, pois depende do seu contexto, da sua motivação, das suas conseqüências e, sobretudo, da ótica da pessoa que a observa. Nós, seres humanos, somos completamente diferentes, desde um nível microscópico e genético até um nível macroscópico e cognitivo, e, portanto, é muito improvável que compartilhemos de modo absoluto uma opinião. Cabe a nós pesar e entender que da mesma forma que julgamos a Loucura do próximo, a nossa será igualmente julgada, e com a mesma mão de ferro que a punimos, seremos punidos. Talvez, tão antiga quanto a sociedade, seja a Loucura que permeia a razão e os costumes, e por ser tão discreta, deixamos que ela passe completamente despercebida. Pois bem, então que sejamos Loucos, mas sejamos conscientes!

 

REFERÊNCIAS:

ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da Loucura. Disponível em:http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/elogio.pdf Acessado em: 17/10/2011.

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