A jornada do sentido da vida

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O que é o sentido da vida? Uma pergunta tão antiga, que ecoa pelas eras, o homem perpassa sua existência buscando essa resposta, para que ela o guie em seu viver. Encontrar significado, propósito e razão para existência é uma busca que atravessa gerações e culturas. Existe alguém que não apenas explorou essa questão, mas também a viveu de maneira intensa, e sua vivência foi como um farol de esperança nas sombras mais profundas da história, e essa luz permanece resplandecente até os dias de hoje.

Viktor Frankl, renomado psiquiatra e neurologista austríaco, não só entendeu o que é o sentido da vida, mas também dedicou sua vida a estudar essa questão. Sua jornada extraordinária nos leva das páginas de livros de Psicologia às atrocidades dos campos de concentração nazistas, onde a busca pelo sentido se tornou uma batalha pela própria sobrevivência.

De origem judaica e nascido em Viena em 1905, Frankl mergulhou nas profundezas da psique humana desde cedo, questionando o que impulsiona nossas ações e molda nossas vidas. Seus questionamentos eram tão proeminentes que, enquanto ainda era adolescente, ele
trocava correspondências com o próprio Freud. Sua busca pelo significado o levou a explorar as complexidades da mente e da espiritualidade, preparando-o para os desafios que estavam por vir.

Sua carreira foi marcada por uma dedicação incomparável ao estudo do ser humano e à busca pelo sentido da vida. Graduou-se em Medicina pela Universidade de Viena em 1930 e especializou-se em Neurologia e Psiquiatria. Entretanto, foi durante um dos períodos mais obscuros da história que Frankl enfrentou seu maior desafio: sua deportação para os campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial.

Sua experiência nos campos, principalmente em Auschwitz, foi um período de sofrimento indescritível, onde Frankl testemunhou a perda da dignidade e da liberdade, diante da brutalidade e da desumanidade, ele foi confrontado com o verdadeiro teste de suas convicções. E foi nesse contexto de extrema adversidade que ele fortaleceu sua compreensão do sentido da existência.

Enquanto outros sucumbiam ao desespero e à resignação, Frankl percebeu que, mesmo nas circunstâncias mais adversas, os seres humanos têm a capacidade de encontrar significado e propósito. Ele observou que diante daquele contexto, o natural seria se render ao sofrimento, e assim como muitos já faziam, dar fim à própria existência, se atirando na grade eletrificada que rodeava o campo de concentração. Porém ele notou que as pessoas que permaneciam vivas por vontade própria, eram agarradas a um sentido, a um significado, como reencontrar familiares (que era o próprio caso de Frankl, que ansiava rever seus pais e sua esposa). Quem se agarrava a um propósito, estava disposto a sobreviver na hostilidade. Foi essa percepção profunda que o inspirou a desenvolver sua teoria, a Logoterapia e Análise Existencial,
uma abordagem psicoterapêutica centrada na busca pelo sentido da existência.

Logoterapia significa terapia do sentido, do significado. O nome de sua abordagem reflete plenamente do que ela se trata. A busca por sentido é uma força que impulsiona a existência humana. Somos seres em busca de significado, constantemente buscando propósito e direção em nossas vidas. Essa busca não se limita à procura de prazer imediato, mas sim à necessidade profunda de compreender nossa existência e nosso papel no mundo. No entanto, quando nos deparamos com a falta desse significado, surge o vazio existencial, uma sensação
de desorientação e falta de propósito que pode levar ao sofrimento psíquico.

Para Frankl, superar esse vazio existencial envolve encontrar significado mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras. Isso requer um compromisso com atividades e valores que deem sentido à nossa vida, como o amor pelo próximo, o trabalho dedicado ou a adesão a princípios mais elevados. Ao fazê-lo, transcendemos o vazio existencial e encontramos uma sensação de plenitude e significado que vai além das circunstâncias externas.

Seu livro “Em Busca de Sentido” publicado em 1946, não é apenas um relato de suas experiências nos campos de concentração, mas também uma exploração profunda sobre a natureza do sofrimento humano e a busca pelo sentido da vida. Frankl nos leva em uma jornada emocionante através das profundezas da alma humana.

Mesmo diante do sofrimento e da adversidade, a capacidade de encontrar um propósito mais elevado pode fornecer uma fonte de esperança e resiliência. Sua teoria elenca também a ideia de que os sentidos da vida podem ser encontrados em até mesmo coisas do cotidiano, como por meio do trabalho, família, hobbies, ações que podem parecer pequenas, mas que enchem a existência de significado.

Os ensinamentos de Frankl sobre a importância do sentido da vida transcenderam as fronteiras da Psicologia, influenciando pessoas em todo o mundo. Seu pensamento sistêmico e sua abordagem humanista e esperançosa oferecem um farol de esperança em tempos de adversidade, lembrando-nos da resiliência do ser humano e do poder transformador de encontrar significado mesmo nas circunstâncias mais sombrias.

A vida e obra de Viktor Frankl são um lembrete de que, mesmo em meio ao caos e à desolação, podemos encontrar significado e propósito. Para o professor Johannes B. Torelló:

“Viktor E. Frankl ficará, na história da psiquiatria, como o médico da «doença do século XX»; como defensor corajoso da liberdade humana contra todo e qualquer determinismo científico-naturalista cego; como o admirável fenomenólogo do amor; como aquele que, cheio de otimismo, desvenda no homem uma abertura para a transcendência: com efeito, quem chega a compreender a existência humana como uma «missão» encontrará, mais cedo ou mais tarde, «Aquele que confia ao homem tal missão»”.

Atualmente, em meio ao turbilhão de desafios e incertezas que caracterizam o mundo moderno como a pandemia, guerras, crises econômicas e sociais, a Logoterapia se mostra como uma possibilidade de orientação. Em um contexto onde muitos se sentem perdidos ou desorientados, a ideia de buscar sentido pode fornecer um caminho para lidar com as adversidades da vida. A Logoterapia nos lembra que, mesmo nos momentos mais árduos, sempre há a possibilidade de encontrar significado e propósito, ela nos convida a refletir sobre nossos valores e a encontrar maneiras de viver de acordo com eles, mesmo em meio ao caos e à incerteza. A busca pelo sentido pode nos capacitar a encontrar significado, fornecendo força e resiliência diante das adversidades.

Referências:
FRANKL, V. Em Busca de Sentido: Um psicólogo no campo de concentração. Editora Vozes, 1946.
FRANKL, V. Psicoterapia e sentido da vida: fundamentos da logoterapia e análise existencial; tradução de Alípio Maia de Castro – 7ª ed. – São Paulo: Quadrante, 2019.
NERY, A. A vida sempre tem um sentido? Como encontrar significado nos altos e baixos da sua jornada. Paidós, 2023.

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Cegos e surdos esquecemos daquilo que buscamos na vida em “A Grande Beleza”

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Freud revelou que o homem é capaz passar uma vida inteira repetindo, compulsivamente, uma cena traumática – revisitando essa cena-clichê de diversas maneiras com roupagens diferentes. 

Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2014, muitos críticos consideram “A Grande Beleza” (2013), de Paolo Sorrentino, quase uma refilmagem de “A Doce Vida”, filme de Fellini de 1960. Roma, a “Cidade Eterna”, vista pelos olhos de Jep Ganbardella, um escritor de apenas um livro que vive no centro de uma vida mundana de festas e exposições de artistas, intelectuais, jornalistas e editores de revistas culturais. Cínico, zomba de todos, mas principalmente de si mesmo pelo vazio, desilusão e niilismo. Todos parecem zumbis, vagando em festas barulhentas e ensurdecedoras atrás da “grande beleza” esquecida, lá atrás na juventude. Cegos e surdos pelas distrações que criamos, esquecemos daquilo que passamos uma vida inteira procurando. No clássico filme “Cidadão Kane” era o “Rosebud”. E o que Jep Gambardella procura em “A Grande Beleza”? 

Era uma vez o Esclarecimento, o movimento filosófico Ocidental que libertaria o homem das mentiras, ilusões e mitificações, cujo empenho racional conduziria o homem para a felicidade, quebrando a compulsão da covardia, preguiça e comodismo. Mas nessa jornada da Razão alguma coisa deu errada.

Nietzsche falava em “eterno retorno”. Freud revelou que o homem é capaz passar uma vida inteira repetindo, compulsivamente, uma cena traumática – revisitando essa cena-clichê de diversas maneiras com roupagens diferentes. 

Adorno e Horkheimer (os temidos “marxistas culturais”, fantasmas que assombram a atual política brasileira) apontavam que a Razão paradoxalmente trouxe de volta os mitos, tidos como sepultados pela Modernidade – e o nazismo e o Holocausto foram a principal evidência disso.

Filmes como Cidadão Kane, 1941 (talvez, o mais freudiano filme jamais feito), mostram como uma vida inteira de um personagem pode ser marcada pela busca de um simples objeto emblemático da infância – o “Rosebud”. A procura de alguma coisa (objetos, cenas, conquistas etc.), até a morte, que trouxesse de volta aquilo que foi perdido numa vida: carinho, afeto, amor, segurança. Inconscientes, damos voltas e voltas em torno desse objeto ou cena mítica perdida no passado, procurando alguma coisa que nos traga de volta aquela experiência.

Fonte: encurtador.com.br/ruXZ1

Mas coube ao filósofo alemão Peter Sloterdijk o diagnóstico do estágio final dessa viagem do Esclarecimento: o momento em que a Razão desemboca na desilusão cínica. O Esclarecimento finalmente realizou sua missão (a ausência de ilusões), mas o resultado foi a paralisia do “cinismo esclarecido”.

Cinismo e desespero

É de tudo isso que trata o filme italiano A Grande Beleza (La Grande Bellezza, 2013), Oscar e Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, do cineasta Paolo Sorrentino, num estilo barroco e envolvente. Muito consideram praticamente uma refilmagem do clássico A Doce Vida (1960) de Fellini – sob as aparências de uma sociedade contemporânea jovem e enérgica, o cinismo que esconde a desilusão, niilismo e desespero.

A Grande Beleza aspira à universalidade, a partir do olhar do protagonista Jep Gambardella (o brilhante Toni Servillo) para Roma atual – Jep é um escritor de apenas um livro que vive no centro de uma vida mundana de festas e exposições de artistas, intelectuais, jornalistas e editores de revistas culturais. Cínico, zomba de quem assume ares pseudo-intelectual, com discursos sobre ética, arte, ativismo político e eterna juventude.

Mas, principalmente, zomba de si mesmo. Como todos, quer permanecer sempre jovem (tem 65 anos) desfilando com seu cinismo e ironia pelas intermináveis festas. Botox e cirurgias plásticas de milhares de euros ajudam bastante. Mas apenas criam máscaras que encobrem vazios profundos.

A Grande Beleza é um verdadeiro estudo desse “abismo das aparências” (Jean Baudrillard) – enquanto turistas de acotovelam pelas ruas de Roma para fotografar as ruínas de um Império que desapareceu (“acho os romanos insuportáveis, as melhores pessoas em Roma são os turistas”, dispara Jep a certa altura), a elite cultural dança freneticamente entre toda aquela herança cultural que de nada serve – são apenas ruínas de algo que não existe mais. Serve para criar uma imagem de exportação da Itália, ao lado de pizzas e moda.

Todos cínicos e esclarecidos: paralisados no comodismo e covardia, apenas festejam uma espécie de melancolia hiperativa. Porém, Jep, assim como todos, está inconscientemente em busca de um “Rosebud”.

Fonte: encurtador.com.br/vwxzZ

O Filme

No olho da tempestade está Jep Gambardella, um playboy sessentão que fez sua fortuna e reputação como jornalista e escritor de um livro de décadas atrás chamado “O Aparato Humano”, “obra-prima da literatura italiana”, mas que, apesar do título pretensioso, foi lido apenas pelos leitores frívolos daquela alta sociedade romana.

Quando o filme começa, Jep está celebrando seus 65 anos. Uma abertura impactante na qual parece que o diretor Sorrentino quer nos cegar e ensurdecer com imagens e música – de um lado um turista japonês ansiosamente tira fotos do horizonte romano, até cair na rua aparentemente com uma overdose do puro esplendor das imagens que tem diante de si; e do outro, a frenética festa com tipos fellinianos totalmente indiferentes ao cenário ao redor.

Parece querer nos dizer que do Coliseu àquela festa que rola sobre o terraço diante da majestosa cidade, tudo está em ruínas – ruínas físicas e psíquicas.

Jep reconhece em si mesmo tudo que é feio e provinciano em Roma. A partir dessa abertura feérica, a narrativa de A Grande Beleza começa a misturar o presente e a realidade com as memórias e, talvez, até sonhos. 

Sorrenttino quer transformar o seu filme num Grande Colisor de Partículas. A cada encontro de Jep com personagens da “doce vida” da elite cultural romana, parece uma colisão que esmaga o Sagrado e o Profano um contra o outro: o encontro com a stripper inteligente Ramona (Sabrina Ferili), cujo romance vazio acaba revelando o “Rosebud” de Jep – a primeira vez que viu o seio da mulher amada à beira-mar na juventude.

Ou o encontro com um cardeal respeitado, cotado para ser o próximo Papa, e que nada tem a compartilhar do que dicas de culinária; uma versão da Madre Tereza de Calcutá (a “Santa”) que fala em voto de pobreza em meio a uma celebração mundana; a performance vazia de uma artista que bate a própria cabeça nas ruínas do aqueduto romano; o dramaturgo mal sucedido que tenta buscar opiniões sobre sua próxima peça de artistas em meio às festas turbinadas por longas carreiras de cocaína.

Fonte: encurtador.com.br/dTY78

A Grande Beleza aplica o mesmo princípio da acumulação dos filmes de Fellini: a cada cena adiciona significados, ao invés de fatos. Aparentemente, nada acontece. Porém, a cada cena Sorrentino vai inserindo novos personagens para criar dicotomias e justaposições que serão progressivamente diluídas num imenso painel de figuras vazias, alienadas e entediadas. 

Cinismo esclarecido

Parece que a “Grande Beleza” da qual trata o filme refere-se aos meios utilizados pela sociedade para expressar esse mal-estar: através da arte, música, memórias pessoais e coletivas (ruínas), amizade e amor.

Mas aqui a jornada do Esclarecimento e da Arte se deteriora em cinismo e paralisia: todos os personagens, e principalmente Jep, são conscientes das máscaras vazias que portam em festas que celebram novas obras artísticas que são sempre mais do mesmo. São “cínicos esclarecidos”, como certamente os definiria o pensador Peter Sloterdijk.

Um tipo de cinismo característico de pessoas integradas aos seus postos e privilégios (gerentes, executivos, professores, jornalistas ou diretores) que mantêm um autodistanciamento irônico e melancólico sobre o que fazem, um sentimento de “inocência perdida”, de ironizar e depreciar a si mesmos e ao que faz, uma falsa consciência conformista e sem sonhos diante do sistema de onde tira seus privilégios – leia SLOTERDIJK, Peter, Crítica da Razão Cínica, Estação Liberdade, 2012).

Fonte: encurtador.com.br/gKMZ3

É uma razão que se pretende transparente e livre de ilusões e mentiras. Porém, como aponta Sloterdijk, “o marketing da falsidade é ser honesto” – uma transparência que alimenta as commodities do cinismo. A mentira parece que veio à luz e deixou de ser o fundo podre da civilização, como dizia Freud. O cinismo esclarecido tornou-se o bem de primeira necessidade.

Porém, por trás de todo esse mal-estar pulsa o “Rosebud”: como no personagem Jep Gambardella, ele, assim como todos os outros personagens, vagam como zumbis naquelas festas ensurdecedoras atrás daquela experiência marcante e decisiva na juventude, incompreendida e deixada lá atrás e esquecida.

Esse o principal tema gnóstico de A Grande Beleza: nos tornamos cegos e surdos com as distrações que criamos para nós, esquecendo que aquilo que procuramos (o nosso “Rosebud”) já está dentro de nós mesmos. 

E a Razão e o Esclarecimento falharam nessa busca.  

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Título Original: La grande bellezza
Direção: Paolo Sorrentino
Elenco:  Toni Servillo, Carlo Verdone, Sabrina Ferilli,
Produção: Indigo Film, Medusa Film, Pathé
País: Itália, França
Ano: 2013
Gênero: Comédia, Drama

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